A pauta da radicalização da campanha tem aparecido nas reuniões do Alto-Comando do Exército
Por Vinicius Sassine, na Época
O celular do general da reserva Antônio Hamilton Mourão (PRTB), candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), tocou além da conta na segunda-feira 17. Do outro lado da linha, colegas de farda e de hierarquia, na reserva e na ativa, pediram para Mourão se controlar. O vice andava falando demais. Naquela segunda, ele dissera a um público de empresários que famílias lideradas por mães e avós são “fábricas de desajustados”. Chamara de “mulambada” os parceiros comerciais do Brasil no Hemisfério Sul.
As ligações nas horas seguintes não foram motivadas somente pelas duas declarações. As manifestações de Mourão e de Bolsonaro que levantam suspeitas sobre a lisura do resultado das eleições ou suscitam temores de uma virada de mesa — uma tentativa de golpe, em bom português — incomodaram generais moderados das Forças Armadas. Foram eles que passaram a mão no telefone e pediram ao vice um mínimo de autocontrole. Esses militares estão de um lado. Há, porém, outro, para quem as palavras de Mourão e Bolsonaro soam como música.
ÉPOCA ouviu dois generais integrantes do Alto-Comando do Exército (ACE) que vão votar em Bolsonaro e três generais da reserva que participam ativamente de sua campanha. Uma parte demonstra incômodo com as declarações sobre “autogolpe” em caso de anarquia, sobre uma nova Constituição sem ser necessariamente feita por “eleitos pelo povo” ou sobre um Supremo Tribunal Federal (STF) com 21 ministros. Outra ala vê plausibilidade e contexto nas afirmações do presidenciável e de seu vice.
A escalada de propostas interpretadas como autoritárias ou golpistas pelos adversários e por parcelas expressivas dos eleitores acendeu um sinal amarelo na cúpula das Forças Armadas e no próprio entorno da campanha de Bolsonaro. O assunto passou a ser discutido nos encontros do ACE e também em reuniões de campanha capitaneadas por generais da reserva.
“Essa história de autogolpe é uma opinião puramente pessoal de Mourão. Qualquer solução passa pelo Congresso, e uma República como a nossa não abre mão dessa conquista. Isso é um arroubo de quem não tem experiência política”, disse um general. “Uma Constituição só pode existir pela vontade do povo. Se não for assim, não é democrático. Mourão tem de tomar mais cuidado com o que diz”, afirmou um militar do grupo que dá suporte à campanha. Esses dois militares integram o que se pode chamar de ala moderada diante dos rumos tomados pela chapa Bolsonaro-Mourão.
Uma divisão de percepções é real, tanto no ACE quanto no entorno da campanha. Um general que despacha com frequência com o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, enxerga razão nas propostas de Mourão. Numa situação de “caos generalizado” e de ausência de providências pelos Poderes constituídos, as Forças Armadas deveriam ser acionadas para “defender a população”, segundo esse general. Ele citou duas situações que acabaram resolvidas sem a necessidade de uma medida mais drástica: os ataques de black blocs a prédios públicos em protestos a partir de junho de 2013 e a greve de caminhoneiros, que paralisou o país em maio deste ano. “Essas situações por que passamos estão longe da linha de corte do que seria uma situação de anarquia (que justificaria o ‘autogolpe’ defendido por Mourão)”, disse o general.
Em pelo menos dois momentos-chave da radicalização da disputa política, antes da definição mais clara da polarização entre Bolsonaro e o PT na briga pela cadeira presidencial, coube ao próprio comandante do Exército dar o tom da crise e da incerteza. Em abril, na véspera do julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula no STF, Villas Bôas foi ao Twitter para dizer que as Forças estavam “atentas” ao cumprimento de “missões institucionais”.
A iniciativa do comandante levou a reações de diferentes instituições, como o Ministério Público Federal (MPF), que cobrou explicações. No mês seguinte, o MPF também decidiu investigar se empresários e caminhoneiros grevistas estavam tentando mudar o regime político vigente e o estado democrático de direito com emprego da violência — uma corrente a favor de intervenção militar contaminou decisivamente o movimento grevista.
No último dia 9, Villas Bôas voltou a gerar dúvida, ao dizer em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que um novo governo pode ter a “legitimidade questionada”. O PT entendeu como um recado ao avanço do presidenciável Fernando Haddad na corrida eleitoral e contestou, por meio de nota oficial, o general. O candidato do PDT, Ciro Gomes, sugeriu que, se presidente fosse, mandaria prender o general por descumprir o veto legal a manifestações políticas pelos militares. Citando o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), Ciro disse que ele tentava satisfazer as “cadelas no cio do fascismo”.
Em meio a esses posicionamentos, entre o velado e o explícito, Villas Bôas vem ganhando afagos, até mesmo da mais alta Corte do país. O novo presidente do STF, Dias Toffoli, pediu ao comandante do Exército a indicação de um general para seu gabinete na presidência do tribunal. Villas Bôas indicou o general Fernando Azevedo e Silva, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, que acabara de ir para a reserva.
Azevedo e Silva, convidado para ser assessor especial de Toffoli, integra um grupo de suporte à chapa formada por Bolsonaro e Mourão. O general participou de uma reunião que formulou propostas para a campanha e ofereceu um almoço, em sua casa, ao vice da chapa. Mourão esteve em Brasília dois dias antes da posse de Toffoli no STF, no dia 13, só para se reunir com o grupo que dá suporte à candidatura. Do aeroporto Juscelino Kubitschek, o vice seguiu para o almoço na casa do general da reserva que, agora, integrará o gabinete de Toffoli.
“Mourão é meu amigo do Alto-Comando (do Exército). Não participo diretamente da campanha. São sugestões para o Brasil. Foi um almoço com velhos camaradas. O voto é secreto… mas a candidatura de Bolsonaro é viável”, disse Azevedo e Silva. A assessoria de Toffoli confirmou o convite após a indicação de Villas Bôas e disse que o ministro já havia trabalhado com generais na Advocacia-Geral da União.
O grupo frequentado pelo assessor especial de Toffoli é capitaneado pelo general reformado Augusto Heleno, um dos militares mais próximos a Bolsonaro e um dos defensores do que Mourão diz. Heleno quase virou vice de Bolsonaro e tem afinação com Mourão. “O que ele fala não tem vínculo com autoritarismo. Em caso de caos institucional, está previsto na Constituição que as Forças Armadas sejam acionadas, diante de um descontrole. Carimbaram isso como ‘autogolpe’”, disse Heleno. “Pode ser que aconteça, mas ninguém quer que aconteça”, continuou. O general concordou que a caracterização de um estado de anarquia é subjetiva: “Essas decisões são subjetivas. Não há receita de bolo. É pura intuição.”
Radicalismos da chapa dos militares são discutidos com frequência no ACE. Horas após o atentado sofrido por Bolsonaro, que levou uma facada no dia 6 quando fazia campanha nas ruas de Juiz de Fora, Minas Gerais, um gesto de Mourão teve ressonância entre seus pares. O vice chegou a divulgar uma nota atribuindo ao PT a responsabilidade pelo atentado. Até agora, Adélio Bispo de Oliveira, o agressor de Bolsonaro, declarou ter agido sozinho, “a mando de Deus”. As investigações não apontam, até o momento, a existência de um mandante para o crime.
Na noite daquele dia 6, o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, e os comandantes das três Forças estavam reunidos no ministério para tratar de assuntos administrativos. Foi consenso entre eles que Mourão errou ao radicalizar e colocar “lenha na fogueira”, uma vez que os próprios adversários haviam manifestado solidariedade a Bolsonaro.
As abordagens de propostas que ensejam alguma sombra de flerte com autoritarismo por causa da defesa, por exemplo, da ditadura militar levaram a uma tentativa de modulação do assunto pelo grupo montado em Brasília para dar suporte à campanha. Essa tarefa coube aos cientistas políticos da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Flávio Testa e Paulo Kramer, que integram o grupo. A ideia deles é tentar “melhorar a mensagem”. O golpe que implantou a ditadura militar em 1964, por exemplo, ganhou uma nova roupagem: vai ser abordado como um “contragolpe” à ofensiva comunista naquele momento, conforme as elaborações dos cientistas políticos.
A liderança de Bolsonaro nas pesquisas, o avanço de Haddad e a total indefinição sobre o que pode acontecer num segundo turno passaram a ser um campo propício ao radicalismo. A campanha ganha outro tom na reta final do primeiro turno. E, diferentemente de ideias aventadas por Mourão como o “autogolpe” e a “Constituição sem povo”, a declaração de Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas — quase um chamado — não parece dividir os militares em alas. Moderados e extremados dão eco ao discurso do candidato do PSL de contestação do resultado das urnas, em razão da alegada fraude, apesar da inexistência de qualquer indício nesse sentido. Os generais citam a porta que o PSDB abriu em 2014, quando contestou na Justiça a derrota para o PT. O novo veredicto das urnas, portanto, talvez não ponha fim à crise. Pode ser um novo começo. Mas, como prega o pensamento marxista, a história só se repete como farsa.
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Bandeira queimada no Rio Grande do Sul. Foto: Caco Konzen/ Ag. RBS.