Sou filha desse passado, mas sinto que não faço parte dele

por Ariana Furtado, em Buala

É uma das “filhas do Império” entrevistada no âmbito do MEMOIRS. As suas origens, as memórias da África colonial que os seus pais lhe transmitiram e a sua vida no Portugal pós-imperial revelamo que é ser-se filha de um passado colonial. A vida da Ariana confirma atitudes e interpela estereótipos comummente dirigidos a muitos daqueles cujas vidas continuam marcadas pelas histórias do colonialismo português.

Chamo-me Ariana Furtado. O meu nome foi sugerido aos meus pais por uma prima que, quando me viu tão pretinha, quis criar uma Ariana que não fosse loira, de olhos azuis.

Nasci em Cabo Verde, em 1976, onde vivi os primeiros quinze dias da minha vida. Vim para Portugal com a minha mãe para nos juntarmos ao meu pai que estava na Escola Prática da Polícia. Os meus dois irmãos mais novos nasceram em Portugal; os três mais velhos, frutos de outra relação do meu pai, nasceram em Angola – dois deles vieram connosco; o mais velho optou por viver em Luanda.

Cresci numa família africana, numa casa que se enchia com os nossos poucos familiares que residiam em Portugal e com os muitos amigos dos meus pais. Uma casa cheia de histórias partilhadas: histórias da guerra, da ditadura e da vida em Cabo Verde e em Angola daqueles tempos e que, desde que me lembro, ouvi sempre com tanta curiosidade. Lembro-me de me sentar na sala e de ficar simplesmente a ouvi-las.

Cresci na Margem Sul. Ironicamente, talvez por ter vivido nessa Lisboa periférica é que, enquanto cresci, não me senti diferente pela cor da minha pele. Talvez por ter estudado numa escola secundária muito eclética com alunos de diversas origens, muitos filhos de retornados e de timorenses, e com professores muito especiais (professores filhos da Revolução, que ambicionavam um mundo novo e o acesso à igualdade por via da educação), não me senti, nessa época, discriminada.

Infelizmente, rapidamente percebi que a cor da minha pele não era indiferente. Sou professora do primeiro ciclo e sei o que é ouvir alguns encarregados de educação comentarem, em surdina, “não pode ser boa professora porque é negra”; “tinha que me sair a preta na rifa”; “fala muito bem para uma pessoa africana”. Sei o que é preciso fazer para “dar tempo” para perceberem que sou tão boa profissional como qualquer outro professor.

Fui ouvindo, estes e outros comentários, sempre calada. Acho que nós, os afrodescendentes, temos tendência a fazer isso. Calamo-nos. Calamo-nos até que aconteça algo que nos faça sentir tão humilhados que nos obriga a reagir.

São situações que, curiosamente, só me tocam agora. Tocam-me sobretudo pela ausência da presença positiva da população negra, por exemplo, em órgãos de comunicação social e no sistema educativo e porque vejo uma geração de afrodescendentes tão bem preparada, tão consciente do papel que tem ou que deveria ter na sociedade e, ao mesmo tempo, tão marginalizada. Acho até assustador, numa sociedade tão multicultural como a nossa, ver como as minorias são tão invisíveis em posições valorizadas e, ao mesmo tempo, tão visíveis nas posições mais desfavorecidas da nossa sociedade.

O meu pai também sentia os efeitos que provocava a cor da sua pele. As histórias que nos contava, quando regressava a casa do trabalho, denunciavam-no. Como polícia contava-nos como era frequente ouvir insultos por causa da sua cor. O meu pai era uma pessoa muito altiva e não respondia diretamente. Reagia com dignidade dando o exemplo de excelência em tudo o que fazia e dizia e, sobretudo, por nunca ter mostrado qualquer rancor em relação às mesmas. Atitude que acho que herdei do meu pai.

A minha mãe é diferente: parece que traz em si um pouco daquela subalternidade do colonizado. A minha mãe, quando fala de África, remete sobretudo para as suas memórias familiares, felizes e muito afetivas. Fala, também, com muita tristeza, da prisão do Tarrafal e de como ela, e outros cabo-verdianos, levavam comida aos presos políticos para tentar amenizar o seu sofri- mento. Além disso, o que a minha mãe mais preza são as fotografias do nosso passado. Guarda-as e esconde-as com receio que os filhos as percam; até porque, de facto, tenho por hábito levá-las e não as devolver. São fotografias preciosas: do meu pai em Benguela; da minha mãe com os nossos antepassados negros e brancos em Cabo Verde; da nossa família em Portugal. Fotografias que estiveram sempre presentes na minha vida.

Mas, em geral, os meus pais falaram-nos sempre muito pouco sobre essas histórias de África. Acho que os deixava constrangidos! Sobretudo o meu pai por sentir que o lugar dos seus filhos era o Portugal atual, e que o passado tinha que ficar para trás; o passado era para ser falado entre os que o viveram, enquanto o presente tinha que ser dos seus filhos; tinha que ser o nosso presente para o futuro.

O que ele gostava era de colecionar revistas sobre a Guiné e Angola e sobre Amílcar Cabral, cuja família era nossa vizinha em Cabo Verde e que o meu pai conheceu pessoalmente. Lá mais para o fim, o meu pai ofereceu-me estas revistas dizendo “olha, guarda em tua casa; a tua mãe gosta muito de deitar tudo para o lixo e isto são coisas importantes”.

A paixão do meu pai, que faleceu há sete anos, era Angola, onde estava quando se deu o 25 de Abril de 1974. Foi para lá destacado quando cumpriu o serviço militar obrigatório para combater no seio das Forças Armadas Portuguesas contra os movimentos de libertação. Não me lembro em que ano o meu pai foi enviado para essa Guerra. Sei que levou um tiro numa perna; recordo como comentava que uma das suas maiores preocupações era tentar proteger o melhor possível as populações negras locais; sei também como carregou sempre consigo muita tristeza pelo que viveu nesse período, embora ele nunca o tenha dito.

Foi também lá que ficou a trabalhar como polícia quando terminou a sua comissão e onde manteve ligações com presos políticos a quem prestou auxílio antes da revolução de Abril. Há detalhes que desconheço. Estou a falar de memórias e lamento não saber mais. São histórias que ouvi entre os amigos do meu pai, mas cujos pormenores, infelizmente, não recordo. Vou ter que procurar.

Contudo, estas histórias, com as quais fui crescendo, não coincidiam com o que íamos ouvindo na escola. Transmitiam-se conteúdos sobre a época colonial, sobre a Guerra, sobre a Revolução, sobre as Independências, mas esses eram muito marcados pela branquitude. As histórias das nossas famílias não correspondiam à estranha beleza de muitas das histórias contadas. Sentia que essa não era a minha história! Seria a história dos meus colegas, dos filhos de portugueses que foram para Angola, para Moçambique, para a Guiné, para Cabo Verde e para São Tomé e Príncipe. Histórias dos filhos desses pais, mas não a minha.

Sinto que há uma história que ficou em África. Uma história sobre os horrores sofridos na Guerra e nas mãos da PIDE pela população em África; sobre o racismo, os maus tratos, o sofrimento do povo africano colonizado; sobre a tortura infligida aos negros em Angola e sobre a qual, isso sim, o meu pai falava com muita mágoa. A história da subalternidade e das hierarquias que a minha mãe ia revelando. A história glorificada e dos brandos costumes, que me seduziu durante muito tempo, não era a história da minha mãe neta de um português que foi para Cabo Verde onde teve várias mulheres e perfilhou os filhos todos, ao contrário de muitos outros que partiram e deixaram famílias completas desamparadas. Não era a história da minha mãe que tinha uma avó branca em casa, o que lhe dava um certo estatuto pelo facto dos seus filhos serem mais brancos do que “outros”.

Eu não. Eu sou negra como o meu pai. Mas só há pouco tempo tomei consciência da minha africanidade. Muitos de nós, afrodescendentes em Portugal, nem sequer conhecemos África. E, ao mesmo tempo que não conhecemos África, temos dificuldade em assumir que somos portugueses. Parece-me que nós, afrodescendentes, sentimos dificuldade em dizer “eu sou português”. É muito difícil para uma pessoa negra dizê-lo. E se nós refletirmos bem, muitos dos problemas que a Europa está a viver atualmente partem deste tipo de condição. “Nós” e “os outros”. “Nós”, os que nascemos aqui, e “os outros” que, mesmo tendo nascido aqui, são “outros”.

E isso é uma herança do passado colonial. O estereótipo do negro, do negro que não sabe falar bem, do negro que não se veste bem, do negro que não se comporta bem, do negro que não tem estudos, que não lê, não escreve, não pensa. Isto ficou. Essa herança do passado ficou. E eu sou esse passado. Eu nasci por causa desse passado; sou filha desse passado. Sei disso. Mas sinto que não faço parte dele.

Edição de Fátima Rodrigues.

Imagem: ‘Gosto muito desta fotografia… o meu pai é o polícia que está no meu meio das pessoas, com uma boina. foi tirada em Benguela nos anos 70.’

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