De Ricardo 3º a Trump, Stephen Greenblatt mostra como Shakespeare expõe a anatomia dos tiranos

“Existem momentos em que se espera que os líderes mantenham uma certa consistência nas suas posições e sejam responsabilizados por quaisquer mentiras que digam. Mas agora nós vivemos num tempo de extrema falta de vergonha.”

Por Nelson de Sá, na Folha

O historiador literário Stephen Greenblatt, talvez o maior especialista vivo em Shakespeare, não menciona Donald Trump uma vez sequer em “Tyrant”, livro em que aborda peças e personagens nas quais o dramaturgo inglês escreve “sobre política”.

Também em entrevista Greenblatt evita o nome a todo custo. Mas “Tirano” é uma obra de intervenção, resistência, com olhar voltado para Trump e outros tiranos em ascensão no mundo.

Ele próprio relata, no final, que estava preocupado com a campanha eleitoral americana em 2016 e perguntou para um amigo historiador: “O que eu posso fazer?”. Ouviu: “Você pode escrever alguma coisa”. Foi o que fez.

Com escrita envolvente e interpretações reveladoras, já conhecidas de obras como “Will in the World” (“Como Shakespeare se Tornou Shakespeare”, 2011), examina protagonistas como Júlio César e Macbeth, mas principalmente Ricardo 3º e Jack Cade.

Enquanto Ricardo é descrito como “patologicamente narcisista e supremamente arrogante”, ou seja, como Trump, Cade remete mais ao extremista Steve Bannon, também não nomeado no livro. “Tyrant”, lançado em junho nos EUA, não tem previsão de publicação no Brasil.

Ricardo 3º, na tragédia shakespeariana, tem a capacidade de forçar a sua entrada nas mentes daqueles que o cercam, como você escreve. Você diria que é uma característica comum aos tiranos de hoje, de Trump ao filipino Duterte e assim por diante?

Nós pensamos que essa capacidade, essa presença indesejada das faces e vozes dos líderes todos os dias e quase todas as horas, é resultado inteiramente das novas mídias digitais. Mas a peça de Shakespeare sugere que é uma característica essencial de um certo tipo de poder. Sugere também que isso reflete uma motivação compulsiva do próprio líder.

Sobre Jack Cade, de “Henrique 6º, Parte 2”, você escreve que, “com base na indiferença à verdade, na falta de vergonha e na autoconfiança”, ele leva seus seguidores a entrar no “mesmo espaço mágico” em que a afirmação mais recente pode contradizer as anteriores. Isso também é muito presente hoje.

Existem momentos em que se espera que os líderes mantenham uma certa consistência nas suas posições e sejam responsabilizados por quaisquer mentiras que digam. Mas agora nós vivemos num tempo de extrema falta de vergonha.

Por toda a nossa volta, podemos ver por nós mesmos um dos mecanismos-chave que Shakespeare percebeu na ascensão dos tiranos: as mentiras de um demagogo, mesmo quando são claramente percebidas como mentiras, não o derrubam. Pelo contrário, os seus apoiadores abraçam alegremente o prazer peculiar de compartilhar da fraude, de entrar em uma fantasia, liberando sua avidez e sua agressão.

Quais características, em Ricardo, Cade ou figuras da vida real, contribuem para esse seguir irracional, quase um culto? A ousadia de ser um “bully”, de intimidar abertamente e com ironia? 

O prazer de intimidar os fracos é com certeza parte disso, juntamente com o desejo de não ser um dos intimidados. E existe o sonho da impunidade. Alguém vai pagar, mas você nunca terá que pagar por nada que venha a fazer, por mais destrutivo, ganancioso ou esbanjador. Esse sonho me parece ser quase explícito no slogan “America First” [Primeiro os Estados Unidos].

E o que faz o resto de nós, o público em geral ou os eleitores de hoje, como uma plateia, assistir com fascínio à ascensão de personagens como Trump? Como você diz no livro, algo em nós se delicia com a horrível subida ao poder do tirano. Ansiamos e compartilhamos as notícias como nunca.

Os apoiadores estão como que tirando um feriado, como se fosse Carnaval, e seu líder os estimula a acreditar que o Carnaval vai durar para sempre. As regras comuns, a nossa teia de obrigações e de compromissos, não serão apenas suspensas, mas revogadas. Cade diz aos seus seguidores que queimem todos os registros do estado, “minha boca será o Parlamento da Inglaterra”.

Sobre Ricardo, você também fala dos “facilitadores”, que são usados pelo tirano ou então tentam ignorá-lo. Em especial, você questiona aqueles que pensam que vão subir com ele e conseguirão controlá-lo. Existe uma lição aí para os oportunistas de hoje e seu autoengano?

Pelo menos no meu país, temos esse espetáculo de políticos, executivos e líderes religiosos, razoavelmente honrados, apoiando os comportamentos mais escandalosos. Por quê?

Claramente, porque eles acreditam que vão conseguir o que querem, de alguém pelo qual sentem uma repugnância cínica, e depois vão descartá-lo, no momento certo. Mas o passado, não só Shakespeare, mas a história de Calígula a Hitler, sugere que esse descarte se mostra muito mais difícil do que as pessoas imaginam.

Você também lembra aqueles dispostos a se opor ao tirano, como o servo anônimo do Duque da Cornualha, em “Rei Lear”, que fala contra a tortura. Mas ele é morto. Isso significa que você é um pessimista? Algum tipo de punição é o destino inevitável dos “whistle-blowers” quixotescos e ativistas? 

Não inevitável talvez, mas provável. Eu não conheço todas as motivações e associações de Edward Snowden [delator que revelou o escândalo da NSA], mas não é por acaso que ele agora esteja vivendo no exílio.

Ao mesmo tempo, eu não sou um pessimista, no fim das contas. Compartilho a sensação de Shakespeare de que sempre há surpresas, mesmo para os regimes mais cruéis, astutos e repressivos, e que a decência acabará por reafirmar sua ascendência sobre a humanidade.

Você escreve que a queda de Coriolano, na tragédia, se deve ao trabalho de personagens muito parecidos com os “políticos profissionais” de hoje, de congressos democráticos. Esses políticos desprezados podem se tornar os verdadeiros heróis da liberdade e do estado de direito? A democracia precisa deles, afinal?

Eu acho que uma insistência nos procedimentos que as sociedades democráticas estabeleceram é uma das nossas maiores esperanças.

Não que eu tenha qualquer ilusão sobre os motivos que muitas vezes estão por trás dessa insistência, mas acredito que as estruturas legais que as sociedades esclarecidas criaram estão do lado da ordem ética. Não coincidentemente, entre as primeiras coisas que os tiranos atacam estão os tribunais.

Você menciona o personagem Rumor, de “Henrique 4º, Parte 2”, que parece se assemelhar ao que chamamos agora de “fake news”. Pode descrevê-lo e sua função na peça?

O personagem em Shakespeare não é bem “fake news”. Representa a quase inevitável leitura equivocada dos acontecimentos, mesmo por aqueles que imaginam possuir as melhores redes de informantes. “Fake news” [notícia falsa] me parece outra coisa, um envenenamento deliberado da esfera da verdade.

Stephen Greenblatt – Nascido em Boston, é professor de humanidades na Universidade Harvard. É um dos principais nomes do chamado new historicism, método crítico que ajudou a desenvolver em oposição ao que via como formalismo descontextualizado do new criticism. Escreveu, entre outros, “A Virada”, prêmio Pulitzer de não ficção em 2012

Foto: Tina Fineberg /AP

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