A Constituição Federal completa 30 anos nesta sexta (5). Seu grande problema não é estar ultrapassada. Foi nunca ter sido efetivada plenamente, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita.
Neste momento, em que a democracia representativa está em descrédito, em que políticos defendem os próprios interesses ao invés das demandas e necessidades do povo, em que lideranças populistas se colocam acima das leis, ela segue sendo uma boia de salvação a quem deseja uma sociedade mais justa. Porém, essa boia está na mira de quem quer reduzir o Estado que deveria priorizar os mais pobres para aumentar o Estado que apoia e subsidia os mais ricos.
Lobistas sussurram nos corredores do Congresso Nacional, cutucam daqui e dali, visando a mudanças que diminuam a proteção ao trabalhador mais pobre e sua aposentadoria. Outros pressionam pela revisão das regras na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem função social. Isso sem contar os que querem alterações profundas para que a concentração de capital seja, oficialmente, pilar de nossa democracia. Noves fora, grupos religiosos que sonham transformar o país em uma teocracia, proibindo a interpretação do Supremo Tribunal Federal a favor dos direitos previstos em 1988.
Há aqueles que acreditam que o artigo 5o, sobre garantias fundamentais do ser humano, é um grande mimimi. Mal sabem eles que direitos humanos também referem-se ao direito de professar uma fé, abrir um negócio, ter uma casa, não ser agredido na rua, poder votar e ser votado, respirar ar limpo, não ser escravizado, viajar para fora do país e voltar, não passar fome, usar a internet sem ter suas mensagens lidas por estranhos.
E há aqueles que defendem que o artigo 3o, que afirma que, além de garantir o desenvolvimento nacional, também são objetivos fundamentais da República construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdade sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, é um libelo comunista.
É sob a ótica de sua importância para efetivação da dignidade humana que temos que analisar como as duas principais candidaturas à Presidência da República querem alterá-la.
O general da reserva Antonio Hamilton Mourão, candidato à vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, criticou a Carta Magna e defendeu que uma nova fosse criada por um pequeno comitê de juristas e constitucionalistas apenas com princípios e valores, sem a eleição – pelo povo – de uma Assembleia Constituinte para escrevê-la. Cita que isso já aconteceu antes em nossa história, mas não se atenta que vivemos uma democracia em que esse tipo de tutela não cabe mais. ”Fazemos um conselho de notáveis e depois submetemos a plebiscito. Uma Constituição não precisa ser feita por eleitos pelo povo.”
Já a proposta do programa de governo do Partido dos Trabalhadores prevê a convocação de uma Assembleia Constituinte pelo Congresso Nacional. O problema é que, mesmo assim, não tem pé, nem cabeça. Afinal, se o texto constitucional for aberto para debate agora, considerando a correlação de forças políticas no país, a Carta Magna vai sair do processo com a cara do livro de Levítico.
A Constituição de 1988 foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais após o fim da ditadura.
O discurso de uma nova e abrangente Assembleia Constituinte, que vez ou outra volta com força ao Congresso, significa repactuar a sociedade. Mas para quê repactuar uma sociedade que não conseguiu colocar em prática o que propôs? E não o fez não por que não podia, mas porque não quis mexer com estruturas que garantem muito a poucos e pouco a muitos. Pelo contrário, uma mudança ampla, neste momento, interessa apenas a quem não deseja mais o incômodo da sociedade pedindo para a efetivação da Constituição, que passa pelo combate a injustiças.
Dizem que o poder público não consegue por em prática os direitos previstos na Constituição por não ter recursos e que o documento foi muito generoso, sem pensar nos custos de efetivação. Mas, ironicamente, se a Constituição fosse seguida, incluindo os princípios de justiça social, o que inclui redistribuição, e de priorização de políticas aos mais vulneráveis, e com o país voltando a crescer, haveria o suficiente para efetivar esses direitos.
Por fim, ao mesmo tempo em que a Constituição faz 30 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70.
Muitos criticam a Declaração, afirmando que é um documento com uma visão por demais ocidental de mundo, que não traz respostas para uma ideia global de dignidade, coletiva e individual ao mesmo tempo. E não traz mesmo. Mas se, apesar dos avanços, Estados e sociedades ainda não conseguiram fazer com que o documento deixasse de ser um belo protocolo de intenções para se transformar inteiramente em prática cotidiana, imagine-se como seria se não tivéssemos nem esse pacote mínimo para usar como referência.
O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração. O Brasil, ainda olhando paras as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever uma Constituição.
É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção como 1964 e 1985.
Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.
Com isso, as pessoas aprenderam que desprezar os ”direitos humanos” é moderno. Da mesma forma que relativizar a importância da ”democracia” é ser contestador. Há insanos que até bradam saudades da ditadura.
Por isso, esses documentos continuam sendo norte e farol.
Herdamos um texto constitucional da geração de meus pais e, agora, devemos mostrar sua importância à geração de nossos filhos. Sob o risco de que o espírito presente em 1988 se perca por desconhecimento da própria história. E sob o risco de perder nossa liberdade, que custou o sangue, a vida e a saudade de muita gente.
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Corpos de trabalhadores no Hospital de Redenção, no Pará após a Chacina de Pau D’Arco. Foto: Repórter Brasil