E a senhora Constituição, 30 anos, foi confundida com um chapéu?

Por Lenio Luiz Streck, na Conjur

“Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora”, disse Ulisses Guimarães. E digo eu: Tenho medo é do crepúsculo!

O neurologista Oliver Sacks é um escritor famoso.[1] Entre outros contos e livros, escreveu O homem que confundiu sua esposa com um chapéu. O Dr. P. era um músico que perdeu totalmente (embora apenas na esfera do visual) o emocional, o concreto, o pessoal, o “real”… Os exames clínicos eram normais. Só que ele confundia pessoas com coisas. Sofria de “erro de percepção”. Ele afagava o topo de hidrantes e parquímetros pensando que eram cabeças de crianças; dirigia-se cordialmente aos puxadores esculpidos dos móveis e se espantava quando eles não respondiam.

Dia desses, quando o exame terminara, o Dr. P começou a olhar em volta à procura de seu chapéu. Estendeu a mão e agarrou a cabeça de sua mulher, tentou erguê-la e a tirar. Queria colocar “o chapéu” em sua cabeça. Confundira sua mulher com um chapéu! Ela olhava como se estivesse acostumada com coisas assim. Perguntado se aquilo não o incomodava, o Dr. P respondeu: Só quando eu erro.

Olhando o jurisprudencialismo que tomou conta do Direito e em especial da Constituição, parece que estou vendo o Dr. P confundindo a cabeça de sua esposa com um chapéu. Ou o Dr. P afagando hidrantes. O poeta português Eugénio de Andrade tem um poema no qual pergunta: Que fizeste com a palavra que lhe foi dada? E eu pergunto: O que fizemos com a Constituição que nos foi dada? Eis a questão.

Trinta anos se passaram. O texto já não é o texto. Foi jurisprudencializado em demasia (assim como o restante do Direito), por vezes substituído pela voz das ruas ou por superinterpretações. Ou simplesmente por juízos morais. Erro de percepção como o do Dr. P? A história é que dirá. Esperemos a Ave de Minerva. Que só levanta voo ao entardecer. Talvez tivéssemos que ter sido — na verdade, tenho a convicção que, sim, deveríamos ter sido — mais ortodoxos, como sempre preguei. Como eu insisti nisso nestes anos todos. Hoje corremos o risco de termos, já em 2019, constituinte até sem povo. Claro que isso só é possível com ruptura institucional. Quem deseja isso? Eis a questão.

Quis o destino que este aniversário se desse no momento da maior polarização da política nestes 30 anos. O pleito de outubro bate à porta e traz consigo uma série de fatores, considerados nucleares ao momento, eclipsados. Bom exemplo são as propostas dos candidatos e, talvez, mais importante, o debate sobre a “viabilidade institucional” de suas propostas. Há uma lacuna no debate político, portanto, preenchida por novas discussões. Algumas, descartáveis, como as teorias conspiratórias sobre urnas eletrônicas (certamente fraudadas, “se meu candidato perder”). Outras, necessárias, como as chamadas fake news (como um diz-que-diz-que-digital de poder devastador), e, claro, o protagonismo do Sistema de Justiça nas eleições.

A resposta ensaiada volta no tempo para dar seus primeiros passos. Não se sabe se é onde tudo começou, mas a chamada Lei Saraiva, de 1881, talvez seja o exemplo mais bem-acabado de como, para assentar a premissa que aponta para o protagonismo do Judiciário (ou, mais abrangente, do Sistema de Justiça), encontra no Legislativo o lugar para a criação de certos “instrumentozinhos autoritários”.

Depois da ditadura Vargas até partido político foi cassado, começando ali, talvez, o protagonismo judicial que redundou em instrumentalismos para o “uso” do Direito, doença que nos assola até o presente: a substituição do Direito por juízos morais.

Podemos colocar a “culpa” de todo esse enredo do filme que vemos hoje, primeiro, no Império e, segundo, numa República tardia que, há 70 anos, não fugia às polarizações de momentos “globalmente conturbados”?

A grande questão é: com uma Constituição compromissória e dirigente, como podemos explicar tantas e atuais intromissões na vontade popular exatamente no aniversário dos 30 anos? Como justificar a denúncia criminal do Ministério Público de São Paulo contra Fernando Haddad (leia aqui), tão logo divulgada a possibilidade de sua candidatura à presidência, eivada de termos como “ler nas entrelinhas”, “informações ocultas” ou “abstração daquilo que não é claro”? Como explicar a prisão de Beto Richa, no Paraná? Que desculpa podemos dar para a estratégica divulgação da delação de Palocci, rejeitada pelo dono da ação penal (MPF) e capitaneada, agora, pela Polícia Federal? Sim, sei que a PF pode fazer. Mas, pensem comigo: um ex-presidente preso não pode dar entrevista sob o argumento de que pode tumultuar o processo eleitoral… Mas um juiz federal pode divulgar delações sob o argumento da publicidade? Na verdade, isso não tumultua a eleição. Isso decide a eleição. Consta que a delação foi fechada em abril. Parece que não havia mesmo outra data melhor para divulgar o seu conteúdo (estou sendo sarcástico!). Mais: por que não esperar para divulgar depois das eleições, já que as delações ainda precisam ser confirmadas nos fatos? Portanto, em uma palavra: Como explicar tanto UED (uso estratégico do Direito), senão por lawfare?

Com tantos apelos a “subjetivismos”, “entrelinhas”, com tanta livre apreciação da prova, inversão do ônus probatório, dribles da vaca nos textos dos Códigos, é possível até dizer que o nosso Direito e, em especial, a (jovem) Constituição balzaquiana está sofrendo  bullying e quem sabe não está na hora de ela fazer um B.O. na primeira delegacia de proteção? Tivesse mais de 60, seria na Delegacia do Idoso.

Passados 30 anos, será que estamos vivendo um ponto (cego) da nossa democracia? A ver (sem h). Volto ao Dr. P. Ele confundia pessoas com coisas e coisas com coisas. Mas os erros de percepção não o perturbavam, a não ser… quando errava. Moral da história: se sua doença consistia em perceber erradamente, quando é que um erro do erro o perturbava?

Permito-me uma analogia: Se costumo dizer que onde está escrito “x” leio “y” e isso não me incomoda, em que momento eu erro ou me dou conta do erro? Talvez… quando seja tarde demais, quando já não se sabe o que é “x” e o que é “y”. Talvez quando já não se separe o joio do trigo e nem se saiba o que é um e o que é o outro e, pior, apareça alguém para dizer que nem mesmo é importante separar o joio do trigo, ou, mais ainda, tampouco importa discutir acerca da importância dessa separação. Talvez porque já não existam fatos… e só existam meras narrativas. Fake news. Talvez a terra seja, mesmo, plana. E já ninguém acredite em fatos.

No aniversário dos 30 anos, parabéns a todos ortodoxos que insistem e persistem. Não decepcionemos Ulisses, o Guimarães. E também não decepcionemos o Ulisses, que se amarrou ao mastro do barco para se salvar das sereias. Ah, as sereias e suas tentações…

Saudações à nossa balzaquiana. Que o seu aniversário de 30 anos não seja o seu réquiem!

[1] Gravamos nesta semana um programa Direito & Literatura com o tema Erro Judiciário, com os professores Draiton Gonzaga de Souza, Adriano de Brito Naves e Ângela Espindola, quem trouxe o livro de Sacks.

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