Debora Diniz: Resista sem medo e tenha esperança

Em sua nova coluna, Debora Diniz relembra as reviravoltas políticas do Brasil e pede “não tomaremos para nós a desesperança como espírito de luta”

Na Marie Claire

Há três meses minha vida sofreu uma reviravolta. Passei a ser alvo de fanáticos que ameaçam e perseguem. Dizem que sou “inimiga do Brasil” porque falo em direitos humanos, racismo ou homofobia. Levo-os a sério, registro cada mensagem fora do tom. Mas resolvi que não iria me silenciar. Nem mesmo me intimidar. Não perco o sono ou a energia para lutar com o que sei fazer: falar e ouvir, escrever e ensinar.

Recentemente uma amiga localizou uma carta para a mãe morta – era de 1987, eu tinha 17 anos, havia acabado de entrar na universidade. Na carta, ela contava que estava em Brasília, o clima era tenso e havia quem falasse em novo golpe militar. Ela explicava que precisava estudar sociologia para entender o que se passava ao redor. Esta carta me encheu de esperança e vigor. Eu não a conhecia e a recebi no domingo em meio à melancolia dos resultados do primeiro turno. Com letra ainda adolescente, minha amiga escrevia “Mamãe, estou adorando Brasília”. Era 14 de abril de 1987, ela acreditava que era possível mudar. Jamais se resignar. Nós havíamos acabado de descobrir o voto e o poder que há em escolher quem nos representar. Esse processo de descoberta havia começado um pouco antes em minha vida. Eu ainda estava no ensino médio de uma escola religiosa quando ouvi nos corredores que teríamos que vestir vermelho pelo que acontecia no país. A leitura era Fernando Sabino nas aulas de literatura, “O Grande Mentecapto”. Precisei ir ao dicionário para mentecapto, mas precisei de tempo para entender a alegoria de “Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”. Havia colegas que diziam ter que esconder o livro em casa.

Não havia mais uniforme na escola, e vesti a única calça vermelha que tinha. Ela havia sido costurada pela minha mãe para outra finalidade. Preciso confessar que não sabia o porquê da cor, nem o que se protestava. Eu tinha 14 anos. As aulas de história da escola eram sobre fenícios e babilônicos, sobre a descoberta do Brasil, sobre a revolução francesa. Eu nunca havia ouvido falar na revolução haitiana, na escravidão para além da ontologia dos escravos, dos guaranis e dos reis portugueses. A resistência vinha pela paciência silenciosa das professoras de literatura. Se falava em militares no poder, mas golpe, só fui descobrir mais tarde.

Votei pela primeira vez com outros homens e mulheres muito mais velhos do que eu. No tempo em que vivi, fui treinada para duvidar da política, como se todos fossem igualmente ruins e medíocres. Fui assim no meu primeiro voto. Era uma cédula de papel em uma urna de papelão. Votei na Asa Norte, em Brasília, e me lembro vivamente de meu orgulho de ter anulado o voto e escrito “Será?”. Aquele me parecia um soberano gesto de rebeldia para um jogo político que me faltava história e contexto para entender a delicadeza e a importância do meu voto consciente. Já na universidade, li as primeiras histórias dos regimes militares na América Latina, recortei de um jornal a imagem do manifestante chinês enfrentando um tanque em Pequim. Vi várias vezes aquela imagem: ele sozinho, a praça da Paz Celestial vazia, e o tanque se esquivando de massacrá-lo. Durante anos, essa imagem ficou colada em minha parede.

Me fiz cara pintada. Recentemente, assisti a um documentário sobre esse tempo e lá estávamos eu e meu marido. Jovens, andando pelo gramado do Congresso Nacional. O mesmo que nos fez andar pelo movimento de defesa da democracia no dia 29 de setembro. Nem eu, nem ele, nem vários de minha geração de alienados a cara pintadas, acreditaremos que há voto de rejeição ou tomaremos para nós a desesperança como espírito de luta. Respeitaremos quem nos antecedeu na história, quem se exilou e lutou, de dentro e de fora deste país, e que permitiu que, em 1989, eu votasse para presidente. Essas mesmas pessoas, em 2018, permitirão que eu escolha novamente e resista sem medo. Eu tenho esperança.

Diretas Já foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil ocorrido em 1983-1984. Foto: Wikipedia

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