Minha profissão de fé

Por Denise Alves, no

Meus bisavós saíram de sua aldeia Vilarinho dos Galegos, na fronteira com a Espanha, em 1896, analfabetos e com uma bebê de sete meses no colo, para pegar um navio rumo à “terra prometida”, o Brasil. Naquela aldeia, a maioria era descendente dos judeus expulsos da Espanha, tornados “cristãos novos” por decreto quatrocentos anos antes.

As passagens da travessia, em 3a classe, foram custeadas pelo governo brasileiro, tamanha era a miséria dos transmontanos que, durante três séculos, foram abandonando sua terra de origem.

Hoje, aldeias como a deles estão abandonadas, com menos de cem moradores, as casas seculares de pedras em ruínas, os campos se arruinando, as escolas fechadas por falta de crianças e os postos de saúde fechados.

Minha avó, Deolinda, nasceu na zona rural de Botucatu, onde os pais trabalhavam na fazenda de algum quatrocentão. Não há registro de seu nascimento ou batismo, em 1900, seu primeiro documento provando sua existência foi a certidão de casamento, lavrada pelo testemunho de três conhecidos que a declaravam ser quem era.

Casou-se com Manuel, que saiu pouco antes de se alistar no serviço militar português, para não defender a colonização portuguesa na África (e, eventualmente, lá morrer). Deixou Paradela de Guiães, também em Trás os Montes, para nunca mais voltar. Filho mais velho, saiu com uma mão na frente e outra atrás, e pela correspondência trocada, foi sendo informado da ruína da mãe viúva e dos três irmãos que, um a um, migraram mais tarde para o Brasil.

Formaram uma família com doze filhos (o décimo-terceiro morreu antes dos dois anos de idade), se estabeleceram na então fronteira da “civilização” paulista (a beirada das fazendas cafeeiras escravagistas), onde pouco tempo antes o povo indígena Ofaié, que ali vivia imemorialmente, foi caçado e afastado para dar lugar a recém chegados como eles. Auto didata, habilitou-se como arquiteto-construtor, com seu esforço de trabalhador e o apoio da mulher formou uma olaria: produzia tijolos e telhas, projetava casas, prédios – o relógio central, no centro da cidade de Três Lagoas foi construído por ele em 1936 (https://pt.wikipedia.org/wiki/Relógio_Central).

Requisitada sua olaria e casa para o exército durante a ditadura Vargas pelo facínora Filinto Müller, negougse e por isso  foi expropriado de seu meio de trabalho e proibido de ir e vir.

A família passou fome. Deolinda costurava e fazia doces – que os filhos vendiam pelas ruas da cidade, além de se ocupar dos filhos. Meu pai, Manoel, vendia-os na zona além de, menino, trabalhar como caroceiro fazendo frete para quem contratasse. Dormia em baixo da carroça, ao ar livre.

Desprovido dos meios para sustentar a família, proibido de sair da cidade, apenas por caridade obteve um salvo-conduto para mudar-se para São Paulo, morando de favor com a mulher e a maioria dos filhos em casas muito simples.

As filhas, obrigadas a trabalhar para ajudar a sustentar a família, não passaram da 4a série primária.

Por outro lado, Mitsuo e Masuye, os pais de minha mãe casaram-se e migraram de Okayama para o Brasil. Tanto o governo japonês fornecia alguns recursos aos imigrantes, que não tinham terra e estavam fadados à miséria no arquipélago, como o governo brasileiro recrutava braços – ainda em 1932 – para substituir a lacuna dos braços negros, aos quais a opção política nacional foi marginalizá-los e não incluí-los na cidadania.

Ao invés do lote com uma casa boa, com água e eletricidade instalados prometido, foram largados no meio do mato, em Cotia. Tiveram oito filhos, vários dos quais freqüentaram a escola japonesa rural, aprendendo a ser bons súditos do Imperador. Sofreram muito quando passaram a freqüentar a escola brasileira – e finalmente, aprenderam o português e a discriminação racial. Trabalharam na agricultura. Minha obatchan também costurava para fora.

Durante a ditadura militar, meu pai sofreu um atentado na porta de casa, enquanto os cinco filhos dormiam tranquilamente lá dentro. Menciono para que se saiba que, se fomos morar um ano fora do país – eu tinha dez anos -, não foi por capricho pequeno burguês, mas para nos colocarmos ao abrigo do arbítrio.

Aos dezessete anos, apesar da pouca formação política e desinformação da mídia, fui à Praça da Sé, em São Paulo, exigir Diretas Já. O amor exalado pela massa esperançosa me contagiou. Não estava mais sozinha na ânsia por democracia, liberdade, respeito – a marca indelével do amor foi gravada mais fortemente. A marca da oração de São Francisco e da canção que cantava nas missas desde os cinco anos (“para mim, a chuva no telhado é cantiga de ninar, mas o pobre meu irmão, para ele a chuva fria vai entrando em seu barraco e faz lama pelo chão”, a balada da caridade) adquiriu um sentido real.

Sou neta e bisneta de trabalhadores rurais miseráveis, migrantes. O fato de não ter crescido na lida rural não diminui minha pertença à classe trabalhadora, explorada e tratada indignamente desde o início dos tempos, fosse na Europa, fosse na Ásia ou nas Américas.

Meus pais, criados na cidade, ensinaram aos filhos que não somos melhores do que ninguém e todas as pessoas devem ser consideradas em sua humanidade, com respeito e acolhimento.

Já andei por este país, morei em diferentes estados, morei numa comunidade remanescente de quilombo durante meus estudos numa renomada universidade federal. O povo custeou minha formação, e minha consciência da retribuição que lhe devo, como profissional e como pessoa, vem desde a juventude.

Andei bastante pela Europa, onde morei por dez anos e me fiz cidadã de dois outros países por lá. Voto no Brasil, na França e na Suíça para contribuir ao avanço da dignidade humana nesses dois países (isso mesmo, há violações aos direitos de pessoas nesses três países, os belíssimos cartões postais têm um verso).

Meus antepassados, o que vivi, o que fiz, por onde andei, as pessoas que encontrei me fizeram sim, estar ao lado do povo. Com acertos e erros, estive, estou e estarei do lado democrático da rua, carregando os valores mais caros e dignos da humanidade. Estou com os trabalhadores, com os pobres, com os sem terra, com os negros, com os deficientes, com as mulheres, com os indígenas, com os idosos, com as crianças, com os adolescentes.

E, definitivamente, contra a barbárie.

#OBrasilFelizdeNovo

Denise Alves e seus pais. Arquivo pessoal

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