As urnas têm cheiro de sangue. Por Alceu Castilho

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Ele é gay e olha para a mãe. A mãe vota em quem o odeia. Ele foi agredido no metrô. Ou na rua. Ou na loja. “Mãe, por quê?” A mãe repete argumentos que não são conversa de mãe e filho, seus olhos estão embotados e não por lágrimas, ela invoca outros ódios para naturalizar o hematoma do filho que ela não mais vê. Ele quer entender algo que supõe permanência da empatia. E já não consegue chorar. Essa mãe é ao mesmo tempo seu irmão e seu primo e aquele antigo amigo, não importa: alguém que foi próximo, mas agora abraça de forma invisível a opressão e a dor, essa erosão e esse desânimo. Ele grava um vídeo e aguarda as próximas agressões, em meio às pílulas de solidariedade.

Ela é lésbica e não consegue olhar para o pai. Ela está perplexa e já não confia. Ela tenta gritar e o som sai abafado. O som abafado tenta alcançar um pai que vota em quem a odeia. O tio e o colega de trabalho respondem a cada denúncia de agressão ou ameaça (sem ouvir, sem absolutamente ouvir) como se jogassem batalha naval: “B17”. A batalha que não é naval não é apenas eleitoral: ela é um abismo e seus horrores, a vertigem de ver um país afundando e não ter onde se agarrar. (Era um pesadelo recorrente na infância, ela, a mãe e o irmão tentavam se salvar de alguma forma. Mas não tem mais mãe, não tem mais irmão, ela caça pessoas solidárias enquanto desaba.)

Ela é trans e olha para o agressor. O agressor está com uma barra de ferro e uma camiseta do Bolsonaro. Ela antevê o sangue e se lembra, em instantes, de cada desamor. De cada troça, de cada definição pejorativa, ela se lembra com detalhes de cada desenho do ódio e continua perplexa com sua democratização. Ela não é apenas aquela trans, ela é a soma dos humilhados e ameaçados, ela sabe que aquele agressor é apenas mais um covarde, mas a assinatura da covardia deixa marcas, não somente em seu corpo. Ela sabe que esas marcas durarão décadas. E se sente como um aviso vivo. Uma mensagem na garrafa. (Enquanto o próximo fascista inventa uma mensagem paralela e falsa.)

Ela é uma mulher e é a história. Ele é a agredida e ela é a esperança. Ela é aquela que gostaríamos de ter sido – e por isso nos apressamos em destruir. Ela olha para o marido e o marido saiu para caçar. Não necessariamente para bater naquele gay ou naquela lésbica ou naquela trans. Mas para jogar batalha naval com os amigos, minimizar e tripudiar. Para rir desse país que virá, “agora sim”, sem o politicamente correto e com as escolas militarizadas, sem petistas e com certezas inabaláveis, sem Venezuela, mas com um nacionalismo difuso. (Sem Amazônia, sem ONGs, sem indígenas.) Como disse mesmo aquele líder religioso? “Disciplina, disciplina, disciplina”. Essas feministas e essa turma dos direitos humanos saberão com quem estão falando, quem é que manda nessa porra.

Ele é um país e não aprendeu nada consigo mesmo. Ele é escravocrata e cínico, ele é violento e casual, exerce essa violência como se estivesse assobiando, de passagem, de olho na presa e de olho na coluna social, ele é o banqueiro e o fazendeiro aliados no discurso liberal e na prática da coação, ele é essa farsa e esse ruído, esse soco inglês e esse coraçãozinho desenhado com os dedos, ele é a soma das tropas atrapalhadas que destruirão o próximo Antônio Conselheiro e a próxima pessoa de vermelho – pois esse país aprendeu assim, aprendeu que é assim que se ordena e se progride, achando as estrelas lindas e batendo em quem não exatamente acha que essa pose e essas cores e essas bandeiras sejam tão lindas.

Elas são as urnas e elas têm cheiro de sangue. E esse cheiro desperta fúrias. Essa fúria se move de forma circular e se naturaliza na leitura enviesada da Bíblia, na crença em inimigos corruptos (os aliados nunca seriam, nunca serão), no grupo do Whatsapp onde outros furiosos babam ódio e arrotam amor. A mãe que não enxerga o filho agredido é mais um fruto dessa erupção, desses olhos saltados para o abismo. Ela é a soma desas fúrias, dessa acidez. Daqui a alguns anos ela terá flashes desse pesadelo – mas aquele e outros filhos terão sido executados. Essas mães e essas somas e essas fúrias e essas urnas são um país encurralado. As sombras dos tiozões engatilham seus fuzis, enquanto os donos da Taurus gargalham.

Foto: Wikimedia Commons

 

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