Diálogo improvável sobre tortura

— É por causa do comunismo do futuro ou da corrupção do passado? — Uma coisa tem a ver com outra. — Então se justificariam métodos violentos? “Não matarás” é menos importante que “Não roubarás”?

Por Priscila Figueiredo*, em Outras Palavras

– Você sabe o que é tortura?

— Tortura?, por que você pergunta isso? Ah porque ele já falou daquele torturador, defende a tortura, ah sei… mas ele não fala sério.

— Se não fala sério, fala brincando, certo?

– Certo.

– Então por que falar brincando? E mais de uma vez? O que ele pretende defendendo isso só por brincadeira? Por que gastar tempo com uma coisa tão pouco importante neste momento?

– Porque o pessoal fala mal de militar, e ele provoca.

– Mas o vice dele, aquele general, creio que falou a sério quando justificou o uso de tortura durante o regime militar dizendo que o país estava em guerra…

– Sim, por causa disso, estava em guerra.

– É como ele justifica o uso desses métodos. Mas então há um momento em que eles falam sério?

– Exatamente, nesse caso.

– Então eles consideram a tortura ao menos em certas circunstâncias.

– Sim, em certas circunstâncias.

– E como dizer então que uma pessoa, quando elogia esse método ou reconhece a validade dele em certas situações, está apenas brincando quando o defende sem explicitar essas situações? Seja como for, nem mesmo em guerras esse procedimento não é válido, sabia?

– Não estou entendendo, está um pouco confuso.

– Seu candidato confessou numa entrevista certa vez, em pleno regime democrático: “Você sabe que defendo a tortura”, sem especificação ou restrição, como quem diz “defendo sempre a tortura”, e continuou dizendo que um parlamentar, colega seu, deveria ser posto no pau-de-arara. Nesse momento então o país não estava em guerra, e ele era entusiasta do método.  Em tempos de paz ou de guerra, parece que ele defende a tortura. Por que não continuará a pensar assim agora? Há muitos sinais disso.

– Ele disse isso no passado. Não é justo julgar alguém pelo passado que teve.

– Sim, mas ele me parece em paz com seu passado. Ou não? Em algum momento ele manifestou arrependimento por ações que fez ou palavras que disse? Num passado menos remoto que o que mencionei, Bolsonaro defendeu a ação de grupos de extermínio na Bahia – e, além de assassinarem, eles praticam a tortura. E hoje em dia – ele pensaria algo muito diferente disso?

– Não sei, pergunta pra ele.

– Não, não é uma curiosidade pessoal propriamente; ela diz respeito a algo pertinente a toda a sociedade, e ele, caso não concorde com seu próprio passado, deveria fazer publicamente um mea-culpa em relação a isso.

– É pertinente ao povo dos direitos humanos, e aos bandidos que eles defendem…

– Olha, esse “bandidos”…  Você acha que em situação de guerra esse método seria justificável, embora seja proibido pela mais importante convenção internacional sobre conflitos bélicos? Uma Convenção de Genebra estabelece desde 1929 que prisioneiros devem ser tratados com humanidade e, em vista disso, proscreve a tortura.

– É, mas essas leis não deviam valer pras colônias deles, né? Os europeus não eram bobos. Bem, mas, sem dúvida, mesmo nessas situações.

– Olha, vamos nos ater à racionalidade dessas leis, feitas num momento de horror da humanidade consigo mesma. De fato, elas não pareciam valer para as ocupações coloniais ainda ao longo do século 20 ou quando na reação às lutas de libertação colonial, como na Argélia…. Mas, para você, pelo jeito, essa regulamentação não faz sentido em nenhuma guerra. E faria em “tempos de paz”?

– A tortura às vezes é o único recurso que se tem para fazer o inimigo confessar e delatar outros inimigos; para evitar que ele cause estragos a toda uma sociedade. Tortura-se ou mata-se um punhado de gente para evitar que milhões padeçam depois. É preventivo e, em comparação, vem a ser um mal menor.

– Você já ouviu relatos de pessoas torturadas? Já ouviu algumas dizerem que inventaram informações simplesmente porque não sabiam nada daquilo que se dizia que sabiam?

– Alguns casos podem ser, não é a maioria.

– Há muitos que não dizem nada: “Você fala ou te matamos/eles mataram Évelyne/ Évelyne não disse nada”.

– Que é isso?

– Versos de um poeta marroquino sobre uma amiga torturada (ela estava grávida e morreu na prisão ). Mas, então, com as “verdades” reveladas sob coação, pode-se desbaratar toda uma rede criminosa, é isso?

– Exatamente, e com isso se evita que uma sociedade inteira sofra.

– Pelo que estaria por vir.

– Pelo que estava por vir.

– O futuro é incerto. Em todo caso, o “movimento” de 64, como vocês agora dizem, já não tinha sido uma forma de desbaratar aqueles que vocês julgam “inimigo”? Este enfraqueceu muito depois.

– Para depois ir pegar em armas.

– Porque o regime se tornou sufocante mais e mais e suprimiu até garantias civis.

– Antes disso já aprontavam, atiraram bombas. Que bonito, hein?

– Bom, a maior parte delas de grupos paramilitares de extrema-direita, como foi recentemente revelado.

– É o que dizem.

– Como assim – é o que dizem? Tem documentos e depoimentos que comprovam.

– Podem ter sido encomendados. Logo agora, no meio das eleições, com um candidato presidente que foi do Exército, um vice que é general…

– Veja, assim fica difícil: se vocês dizem que os documentos são falsos, que o passado do Bolsonaro é uma coisa e o presente outra, apesar de não parecer que ele mudou, isto é, que ele diz por brincadeira hoje o que, no entanto, disse também no passado e com toda a convicção, como é que a gente vai conversar? O que é verdade nisso tudo? Verdade é algo que se decide estabelecer?

– Como vocês sempre decidiram e decidem quando querem implantar uma ditadura comunista. O PT roubou muito e conta muita mentira.

– É por causa do comunismo do futuro ou da corrupção do passado?

– Uma coisa tem a ver com a outra.

– Me desculpe, a corrupção no Brasil é muito antiga, embora esse fato não justifique aquela que houve durante os governos petistas; seja como for, você associa corrupção a comunismo, mas esses governos jamais foram comunistas – logo, não seriam corruptos do seu ponto de vista, não é? Assim como não seriam corruptos todos os que os antecederam porque definitivamente não eram comunistas. Esse raciocínio tem um problema… mas me diga uma coisa: “Não matarás” é menos importante que “Não roubarás!”?

– O Maduro manda matar gente!

– O governo de Lula ou Dilma mandou matar gente ou deu carta branca para que o fizessem? O seu candidato só fala em matar! Recentemente ele disse num comício que os petistas deviam ser fuzilados.

– Ele estava brincando.

– Mas então foi esfaqueado – isso não era brincadeira!… ou era?

– Claro que não, foi político, isso vão provar uma hora. Ele que foi vítima.

– Mas você não acha que tanta brincadeira e gestos relativos a morte, tortura, assassinato — uma hora as pessoas levam a sério? Como parecem estar levando… Certas, aliás, de que num futuro muito próximo poderão andar armadas. Todo mundo vai bancar o policial (mas a polícia de Estado continuará a existir, claro, com todo o salvo-conduto para agir como achar melhor).

– Se levam a sério as brincadeiras dele, é problema delas.

– Acho que não é. Até porque, como disse acima, em algumas circunstâncias ele defende a tortura e ele diz que vai rever o estatuto do desarmamento. Mas volto a perguntar: você sabe o que é tortura?

– Nem quero saber. Deve ser a pior coisa do mundo.

– Nunca foi chutado, humilhado, supliciado?

– Não, mas bandido também tortura.

– É verdade, isso pode acontecer… E você acha que deveria?

– Óbvio que não.

– Mas ele pode achar legítimo, da perspectiva dele.

– Legítimo é ele ser torturado.

– Por quê?

– Porque é bandido.

– Mas não bastaria só prendê-lo, tirar a liberdade por um tempo ou muito tempo, o que seja? Ser trancafiado, e no tipo de presídio que temos, já não é o bastante, além de perder o contato com a família e a vida civil? Além do quê, prende-se para depois julgar e investigar, e o que se faz é esquecer aquele que pode ser até inocente – tem gente lá jogada por engano, ou que cometeu atos que em tempos mais amenos não seriam considerados delitos graves…

– Furtar, por exemplo, atacar a propriedade privada.

– Olha, só quero dizer que bandido bom (se for mesmo bandido) é bandido preso – não morto, e muito menos torturado. Por que isso? A vontade de matar o bandido, expressa assim com tanta fúria –e, em alguns casos, sei que não é o seu, manifesta com prazer –, não é ela mesmo criminosa? Ou então um tanto doentia? Você acha que os representantes do poder estão isentos de cometer crimes?

– Essa gente é a escória, merece o pior.

– Não me leve a mal, mas tenho dificuldade de entender por que o que é amedrontador para todos nós não é suficiente para eles. Não se está dando vazão, por meio da palavra “bandido”, que, aliás, pode vir a se referir a cada vez mais tipos de gente, aos artistas, professores, jornalistas, e um dia pode mesmo alcançar os seus filhos…

– Jamais! E, aliás, tenho um filho engenheiro e outro dentista. Isso seria impossível.

–… bem, usando essa palavra, “bandido”, você não acha que a pessoa se sente livre, perde todo freio moral, para matar? Além do quê, muita morte de inocente pode acontecer… Não foi Cristo que disse, aliás, que devemos oferecer a outra face?

– Disse, e daí? Não tinha nada a ver com isso.

– Acho que tinha. Ele quis dizer que uma hora é preciso interromper, suspender a cadeia de ação e reação, às vezes de imaginação de uma ação que nem ocorreu e reação preventiva. O Estado tem de ser superior a essas paixões.

– Mas o Estado comunista pelo que sei matou muita gente, perseguiu muito.

– Sim, ele se perdeu em seus propósitos, e muitos ao longo do tempo foram sendo vistos como inimigos do regime. O Estado totalitário é paranoico.

– E torturou.

– Se tivessem sido estabelecidas balizas incontornáveis – daqui não se passa! Seja qual for o objetivo que se queira atingir, não se justificam certos métodos. Quantos erros, quantas mortes, quantos sofrimentos ao longo da História poderiam ter sido evitados. Às vezes esses limites são fixados, depois vão se afrouxando, até que caem no esquecimento, e só depois de muita aflição, às vezes ao longo de gerações, é que se voltam a formar novos consensos contra procedimentos tão cruéis. Nós vamos nos acostumando com as transgressões às leis que os proíbem, vamos dizendo que em tal caso uma técnica, mesmo que execrável, cabe. Quando começamos a usar demais essas conjunções concessivas…mesmo queainda que… com certas pessoas, ou grupos de gente, de etnia, classe, gênero, ideologia, forma de vida… Não, essas conjunções não deveriam jamais ser usadas nesse caso. Relativizamos um pouco, depois muito, nos tornamos extremamente hábeis nisso, e o que era proscrito se torna pouco a pouco admissível; alargamos o campo das exceções, e de repente estas são praticadas à luz do dia, como o foi com os escravos africanos e seus descendentes no pelourinho. Acredite, a escravidão na época moderna e os castigos horríveis que ela supunha não foram um problema moral tão fácil de resolver; houve religiosos e filósofos que não transigiram com ela, mas perderam no debate sobre sua validade, e então se construiu e perdurou o consenso ético que a fez se tornar aceitável. Mas a tortura é inadmissível, muito mais que um fuzilamento.

– Por quê?

– Se você pergunta isso é porque não parou um segundo para imaginar o que possa ser.

— Poderíamos chegar por conta própria, isto é, com um pouco de imaginação e sensibilidade ao que alguns relatos  nos contam, embora não com toda a rede de implicações e nuances neles presentes; não se trata só de uma dor intraduzível por qualquer meio verbal e que recomeça a cada sessão, pois, na posição de torturado, seja por um agente de poder, seja por um grupo de linchadores, nos tornamos completamente vulneráveis. Quanto à vulnerabilidade, creio que é semelhante à posição de um escravo, de uma criança – de um gato ou um cachorro diante de um humano. O algoz, lembram alguns e é fácil de imaginar, embora não com todas as implicações, é como um deus, pois tem poder irrestrito sobre nós, nossa vida, mas também sobre a forma como sofreremos e morreremos. O torturado não pode confiar nem esperar nenhuma solidariedade dos que o cercam, não há nenhum laço social possível entre as partes, e um símbolo disso é o capuz que ele usa em certos momentos, capuz que acumula os odores de todos os que o usaram antes, como mais de uma vez vi descrito. Diante do carrasco se é menos que humano, atirado à falta de esperança de qualquer auxílio; somos tão dependentes dele como os seres menos racionais são dependentes de nós. Poderíamos fazer tudo a estes se a gente não fosse inibido por algumas leis, não é? Nos suplícios somos reduzidos a carne, ao que mais podemos ser é negado reconhecimento, mas somos carne viva, com nervos, ligamentos, músculos articulados e sangue  fluindo, e a variedade dos membros e formações corpóreas foi explorada o suficiente pela engenharia da tortura de modo a produzir também várias formas de sofrimento. Dentes e unhas são arrancados; no pau-de-arara, do qual Bolsonaro falou tão tranquilamente certa vez, os punhos podem ser amarrados a uma barra de ferro, que passa por trás do joelhos dobrados e se ergue uns metros acima do chão. Torcido, forçado a assumir uma posição  acrobática, o corpo ainda sofre choques elétricos ou surras de palmatória, sevícias, urinadas do seu verdugo e o que mais este desejar; na barra ou fora dela, buchas metálicas são introduzidas no ânus e também liberam choques; animais e instrumentos cortantes penetram em todos os orifícios do corpo, reviram nas estranhas, joga-se éter em alguns membros e ateia-se fogo, quebram-se ossos, os tendões são esticados até cederem, priva-se a pessoa de comer ou de sentar por muito tempo; em torturas mais recentes, como algumas aplicadas em Guantánamo, sujam-se menos as mãos (usadas ainda, no entanto, para os grosseiros afogamentos), há muitos psicólogos envolvidos, mas a experiência de despersonalização não deixa de ser ocasionada por uma ação que também incide sobre uma função vital, fisiológica, o sono, do qual se é privado. Queimar a pele com cigarro, dar coronhadas, tapas côncavos em ouvidos, chutes nos rins, na cara, arrancar com alicate as unhas e os dentes, embora sejam atos muito corriqueiros, também são tortura e se praticam entre nós. Seu candidato fala dela, no entanto, como se não existisse e devesse voltar a existir. O procedimento pode incorporar a tecnologia do tempo, mas o corpo que estertora, como já disse uma poeta polonesa, é sempre o mesmo ao longo da História. Eu faria o acréscimo de um ex-prisioneiro de campo de concentração nazista, lugar que tinha seus métodos próprios de produzir padecimentos: talvez se sofra ainda mais hoje, com toda a cultura de anestésicos e analgésicos, pois a supressão da dor física foi uma meta da ciência médica e da modernidade. Em todo caso, como essa mesma vítima disse, “a tortura é a mais terrível das celebrações do corpo” que possa ter ocorrido em qualquer época. Experiências que crianças eventualmente fazem com os animais, e no que são repreendidas pelos pais, são agora realizadas por homens adultos, enquanto alguns as assistem, fascinados, e não se comovem – antes se irritam ou dão risadas – com os grunhidos de dor de quem é assim provado. Você acha isso normal? Imagino que você concorde que isso não deve se aplicar a ninguém, nem mesmo ao bandido.

– Alguns são verdadeiros monstros, ensinam até criança a matar. Mas uma criança que mata já é um monstro, não é mais criança. Gente desse tipo eu não via problema em ser castigado dessa forma.

– Mesmo se for uma criança?… (seu interlocutor olha para baixo). Acho que nem o torturador deve ser submetido a isso:

Além das velhas acusações, surgem outras,
verdadeiras, imaginárias, efêmeras, ou nenhuma,
mas o grito com que o corpo responde
foi, é e será o grito da inocência
na mesmas escala imemorial e no mesmo tom.

Sejam as acusações feitas pelo carrasco imaginárias ou verdadeiras, o grito da vítima é sempre um grito de inocência. É uma situação tão afrontosa à humanidade e tão criminosa que não há criminoso que não se torne inocente quando submetido a ela. Claro, quando ainda se trata de falar em humanidade… o que pode não ser mais o caso também.

*Poeta e crítica, professora de Literatura Brasileira na USP, autora de “Em busca do inespecífico” (Nankin, 2001), sobre Mário de Andrade, e “Mateus” — poemas (Bem-te-vi, 2011).

Imagem: Latuff.

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