O ódio saiu do armário. Entrevista especial com Adriano Pilatti

por Ricardo Machado, em IHU On-Line

“O que temos vivido há anos é um processo de normalização do ódio político”, aponta, sem mais delongas, Adriano Pilatti em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O que está em erupção hoje é fruto de anos de disseminação de discursos de ódio: contra os pobres, contra as mulheres, contra os negros, os LGBTs, os ‘vagabundos’, os ‘corruptos’, os ‘comunistas’, os ‘petralhas’, a religiosidade afro-brasileira e os próprios direitos humanos em abstrato. É fruto de ressentimentos de classe e da ignorância de uma elite iletrada, tosca”, complementa.

Evidentemente a questão não se reduz a um recorte de classes, mas a um contexto político mais amplo que faz ressoar nos mais diversos campos a amplificação dos erros durante as gestões petistas, que por fim se tornou pretexto para as pessoas destilarem “agressividade ‘holística’ (de classe, de gênero, de raça etc.) do armário e um álibi para exercitá-lo livremente”, diz Pilatti. “O candidato favorito brada que ‘vamos dar um ponto final em todos os ativismos sociais’, o que é uma declaração antecipada de guerra de extermínio contra os movimentos sociais. E sem movimentos não há direitos. Devemos levar a sério o que ele diz”, avisa.

De outro lado, o Judiciário assume uma postura leniente, quando não covarde, em torno de crimes eleitorais. “Nas suas diversas e inacreditáveis intervenções, os impactos da ação jurisdicional foram no mínimo deletérios. Muitos juízes, promotores e procuradores atuaram como militantes partidários, ou contrapartidários, e fizeram política pela via judicial. Enquanto isso atinge apenas aqueles de quem não se gosta, parece legítimo, mas ninguém pode dormir tranquilo quando togados agem e decidem politicamente”, critica o pesquisador. Quanto ao compromisso firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE de combater as fake news, Pilatti é categórico: “O compromisso era fake também”.

Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 – Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008). Pilatti também traduziu o livro Poder Constituinte – Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Após o resultado do primeiro turno, passou a pipocar uma série de relatos de ataques e de violência nas redes sociais. Nesse sentido, como podemos compreender as consequências práticas da polarização que tem marcado o pleito?

Adriano Pilatti – Numa sociedade em que as diferentes correntes político-partidárias em conflito cultivam, em suas palavras e práticas, os valores democráticos, as polarizações podem ocorrer sem transbordar em violência. Mas quando uma determinada corrente adota, obsessivamente, discursos de ódio e incitação à violência contra oponentes, compreendendo-os não como adversários a derrotar, mas como inimigos a eliminar, pode-se esperar a brutalidade: ela virá.

O que está em erupção hoje é fruto de anos de disseminação de discursos de ódio: contra os pobres, contra as mulheres, contra os negros, os LGBTs, os “vagabundos”, os “corruptos”, os “comunistas”, os “petralhas”, a religiosidade afro-brasileira e os próprios direitos humanos em abstrato. É fruto de ressentimentos de classe e da ignorância de uma elite iletrada, tosca. É fruto da leniência da autoridade pública para com a libertinagem odienta de radialistas, pastores, jornalistas e outros “influenciadores” necrófilos. É fruto de uma crueldade de classe, de gênero e de raça que tem raízes profundas na formação da sociedade e do Estado brasileiros. Enfim, algo como o que estamos vendo e padecendo não se improvisa. Com uma pequena contribuição do “outro lado”, o que temos vivido há anos é um processo de normalização do ódio político, dá no que dá.

Outros fatores, de ordem psíquica, obviamente operam aí, mas não me considero capacitado para tratar deles. Recomendaria, a esse respeito, a leitura de dois clássicos indispensáveis em tempos sombrios: Psicologia de Massas e Análise do Eu (Porto Alegre: L&PM, 2013), trabalho cristalino de Freud, e Psicologia de Massas do Fascismo (São Paulo: Martins Fontes, 2015), de Reich. Parecem-me essenciais para a compreensão em profundidade do que estamos apenas começando a ver, pois isso continuará qualquer que seja o resultado eleitoral.

Nas suas origens imediatas, penso que os atos de violência com motivações políticas decorrem de um contexto em que amplos setores da sociedade, não apenas as elites, encontraram, na amplificação dos erros cometidos pelos governos do PT, um pretexto para retirar sua agressividade “holística” (de classe, de gênero, de raça etc.) do armário e um álibi para exercitá-lo livremente, uma razão para odiar, mais uma vez com a leniência conivente de todo um sistema punitivo que “pega, mata e come” sempre quem lhe interessa. E só quando interessa aos seus múltiplos agentes. Tudo isso se condensou em torno da postura política odienta do candidato favorito, e de seus genéricos em nível estadual. Na instigação à violência que, velada ou explicitamente, promovem. É o ódio que hoje é cultivado nas esferas política e social, e isso só pode resultar em corrosão da vida democrática.

IHU On-Line – Do ponto de vista das garantias constitucionais, o senhor considera que corremos algum risco, apesar dos candidatos afirmarem que não farão nova constituinte?

Adriano Pilatti – Corremos, sim, o risco de ver soçobrar todo o sistema de direitos e garantias constitucionais, inclusive para os setores que deles se beneficiam efetivamente, pois para amplas faixas das populações pobres o Estado Democrático de Direito nunca existiu. E o mais bizarro é que tudo isso pode vir a acontecer na suposta “forma da lei”, sem necessidade de uma ruptura institucional nos moldes tradicionais. A maioria dos legisladores eleitos é de orientação conservadora ou reacionária, embora alguns se digam liberais – o que podem até ser no sentido econômico, mas de liberalismo político não têm sequer noção.

Já os “guardiões da constituição” e do sistema de garantias que ela consagra, os encarregados de conter os abusos dos legisladores, que em termos práticos são os ministros que compõem a maioria absoluta do Supremo Tribunal Federal – STF, hoje revelam no mínimo desprezo até mesmo pelas garantias civilizatórias mais longevas, como o próprio habeas corpus. As garantias individuais e coletivas vêm sendo despudoradamente “flexibilizadas” com base num punitivismo rasteiro e num moralismo farisaico. Nada indica que esse processo sofrerá inflexão, e a possibilidade de o STF sufragar aberrações normativas contra os direitos e garantias fundamentais não é apenas teórica. O mesmo se aplica à maioria dos magistradospromotores e procuradores brasileiros na atualidade.

Além disso, o processo de militarização das questões de segurança pública tende obviamente a se aprofundar, sem prejuízo de que a militarização se estenda a outras instituições e serviços governamentais, como até mesmo a educação. E se pensarmos na orientação cavernícola de muitos governadores que irão comandar as forças policiais estaduais, aí é de perder o sono. Sem falar na capacidade de intimidação e de virtual inviabilização do direito de manifestação que a mera conivência das forças de segurança federais e estaduais para com a violência dos bandos protofascistas poderá produzir. O candidato favorito brada que “vamos dar um ponto final em todos osativismos sociais”, o que é uma declaração antecipada de guerra de extermínio contra os movimentos sociais. E sem movimentos não há direitos. Devemos levar a sério o que ele diz.

IHU On-Line – O que está em jogo nestas eleições, especialmente no segundo turno?

Adriano Pilatti – O que está em jogo é vida democrática, são as liberdades individuais e coletivas, nem mais nem menos. O que está em jogo é a licença para matar, agredir, violentar, humilhar os vencidos. A possibilidade de reversão da tendência majoritária é mínima. Viveremos “tempos interessantes”.

IHU On-Line – Qual foi o papel da justiça nesse pleito? Ela ajudou a reduzir ou a intensificar as polarizações?

Adriano Pilatti – Nas suas diversas e inacreditáveis intervenções, os impactos da ação jurisdicional foram no mínimo deletérios. O desejo de imitação dos impactos destrutivos da “Operação Mãos Limpas” sobre o sistema político italiano foi plenamente realizado para alguns fanfarrões togados brasileiros. Lá como aqui, o resultado eleitoral é no mínimo constrangedor. E veja-se que Berlusconi parece até um “fofo” perto do que temos aqui. Muitos juízes, promotores e procuradores atuaram como militantes partidários, ou contrapartidários, e fizeram política pela via judicial. Enquanto isso atinge apenas aqueles de quem não se gosta, parece legítimo, mas ninguém pode dormir tranquilo quando togados agem e decidem politicamente.

IHU On-Line – No que tange ao combate às fakes news, que havia sido um compromisso do TSE no início da campanha, como podemos avaliar a atuação do Tribunal?

Adriano Pilatti – Ao que tudo indica e pelos resultados concretos, ou melhor, pela falta de resultados concretos, o compromisso era fake também. O recém-descoberto escândalo dos impulsionamentos de conteúdos caluniosos pelo WhatsApp, financiados por empresas, põe sob suspeição o próprio resultado das eleições. E isso será fatalmente um fator a mais de tensão. O que vem à tona é uma conspiração criminosa, um atentado à democracia, que comprometeu a livre formação da convicção de milhões de eleitores. E, pelo andar da carruagem, nada será feito para reparar esse enorme dano ao processo eleitoral, nem para prevenir que continue acontecendo ou volte a acontecer.

IHU On-Line – O que se pode esperar da disputa eleitoral no segundo turno?

Adriano Pilatti – Tensionamento crescente até o final e depois. Há, claro, um enorme e comovente esforço de esclarecimento e de chamado à razão, o mais das vezes espontâneo. E não apenas, talvez nem principalmente, por parte dos que votaram no oponente do favorito. Um “trabalho de formiguinha”, como se diz, de caráter molecular, difuso, mas provavelmente insuficiente para deter a onda de ódio  e  neutralizar o trabalho dos robôs – e de seus fanatizados apêndices humanos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Adriano Pilatti – Embora fique mais difícil a cada minuto que passa, ainda há tempo para evitar o pior. E o pior será nocivo para todos, quem duvida não perde por esperar.

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