Do Direito Penal ao Governo Penal

Governo Penal é o conjunto de políticas pensadas, sempre, pela ótica da criminalização

Por Rochester Oliveira Araújo, no Justificando

O que a política aprendeu com o Direito Penal? Não podemos separar as instâncias totalmente, como caixas de produção de conhecimento isoladas. Na verdade, o direito penal nada mais do que é o reflexo de uma política criminal adotada. Contudo, há uma comunicação de mão dupla e a política reaprende com o próprio direito penal, como vimos nessa eleição. Quase um efeito bumerangue.

O Direito Penal profere um discurso extremamente populista que apresenta supostas soluções para problemas sociais a partir da prática da violência e da força. Podemos “prender” qualquer problema e essa solução simples e infantil parece agradar a muita gente que acredita na sua capacidade resolutiva. Encontrado um problema a ser explorado, o Direito Penal vende uma suposta solução, criando um discurso de resolutividade.

O discurso penal não é falho em apontar quais os problemas existentes. Ao contrário, faz muito bem uma primeira função de identificar determinados conflitos e explorar tais situações para sua expansão. O efeito simbólico do direito penal surge a partir de uma situação que incomoda e que é capaz de ser explorada. Reveste essa capacidade de solucionar problemas a partir de uma racionalidade elaborada e complexa, capaz de ser compreendida somente por quem domina e se especializa na linguagem jurídica. A dogmática penal é o monopólio da razão desse discurso.

O que é incongruente no Direito Penal é que as soluções que ele apresenta não resolvem os problemas de que ele se valeu. Sem reducionismos, na verdade, a solução agrava e muitas vezes é a própria fonte do problema, como ocorre com a criminalização do tráfico de drogas, por exemplo. Com o discurso de resolver um conflito social acerca do comércio de drogas, produz e provoca, a partir da repressão, violências muito maiores que o próprio problema é capaz de fazê-lo. Tampouco é capaz de, sequer minimamente, reduzir o conflito originário. Os índices de violência e criminalidade não são reduzidos a partir da criminalização, como é possível se verificar em diversas pesquisas (vide tráfico de drogas, aborto etc). A incongruência, portanto, é entre o que o discurso penal se propõe a fazer e o que ele é capaz de fazer, ou, na verdade, entre o que ele diz que vai fazer e pra que ele realmente serve.

Nessa incongruência, a falibilidade do direito penal tem se convertido no seu endurecimento. “Não funciona por ser brando”. Assim, as pessoas, no lugar de rediscutirem e repensarem uma ferramenta que tem sido usada para fins diversos e que fracassa no que se propõe, passam a pedir doses ainda maiores dessa solução diluída. Por outro lado, o Direito Penal serve muito bem para os fins diversos, desde a manutenção de um autoritarismo no nosso sistema, até o fomento a setores do mercado que exploram e lucram com a política da violência.

Se o discurso é um e a prática é outra, e se essa incongruência atrai as pessoas e afasta as críticas através do seu recrudescimento, parece que a (ultra)política se afeiçoou muito dessa dinâmica. Não é um fenômeno inédito, historicamente. Mas é um fenômeno atual e que merece destaque. Podemos ver o sucesso dessa proposta a partir de uma eleição em que vence um projeto de Governo Penal.

Podemos definir como um Governo Penal aquele conjunto de políticas pensadas, sempre, a partir da ótica da criminalização e do sistema penal como suposta solução para problemas. Experimentamos uma crescente do Governo Penal nos últimos anos, com a criminalização das mais variadas situações, apresentando como resposta ineficiente a transmudação de um problema social em uma conduta criminalizada.

Apesar da evidente ineficiência do Governo Penal para os fins que se diz existir, esse fenômeno se mostrou extremamente eficiente na produção de um discurso populista, elevando nomes insignificantes em suas propostas para pedestais políticos. Aprendendo a receita de uma pauta de Direito Penal, esses atores começam a ampliar a lógica para um Governo Penal.

A segurança pública é colocada como único problema que merece atenção ou como pauta única de atuação. O conceito é tão difuso que se mistura corrupção, tráfico e terrorismo com ameaças de qualquer natureza que caiam no campo criminal, sendo que esse campo é tão obtuso que cabe até a molestamento de cetáceos em seu rol de práticas criminalizáveis. Uma lógica populista que sequer é capaz de evidenciar, para quem a reverbera, que questões tão distintas como a corrupção e a incapacidade de compreender a desigualdade social de grupos vulneráveis não merecem a mesma resposta, e muito menos que esta deve ser a violência da criminalização. Uma resposta só para tudo é o mesmo que nenhuma resposta.

Um dos segredos do Governo Penal foi aprender que qualquer coisa pode ser convertida em um crime e, assim, qualquer pessoa pode ser revestida da imagem de criminoso. Criminalizar não é garantir a segurança, é revestir de legitimidade a possibilidade de excluir, agredir ou aniquilar alguém. Criminalizar é uma carta em branco para retirar direitos de alguém. E assim, essa pauta única se retroalimenta de uma sensação de insegurança e medo, o que é uma autorização aos discursos – e medidas – de exclusão.

Se existe um problema de segurança pública e crescente violência, este pode permanecer em suposto descontrole em nome do endurecimento do Governo Penal. A existência de um quadro de violência não é falacioso. Ele existe e é mantido assim, intencionalmente. É esse quadro que cria uma sensação de insegurança e medo. Contudo, a violência não está descontrolada, como se diz. Ela existe e pode ser mais ou menos intensa, mais ou menos sentida, mas o seu controle existe, nitidamente, a partir de uma distribuição geográfica, por exemplo. Na periferia ela é alta e cruenta. Nos bairros nobres ela é mitigada e intimista – ocorre dentro dos lares (uso de drogas, violência doméstica, abuso sexual, assédio, racismo, sonegação fiscal etc). O crime está em todo lugar. Crime e violência são coisas distintas.

No Governo Penal, o que tememos enquanto o retorno de um governo fascista é a impossibilidade do exercício de direitos básicos, como a liberdade e a própria vida. Tememos ser presos sem uma causa legítima, sofrer tortura sem que haja consequência para os torturadores, ou até sermos mortos pela nossa própria existência. Algo que sempre existiu no nosso sistema, mas que só é vislumbrado empiricamente pela camada social que passa por isso, ou formalmente por quem enxerga, no sistema de justiça, um processo de legitimação do autoritarismo que sempre esteve em nossos porões. A ditadura nunca acabou. Ela apenas passou a respeitar um padrão social de limite que é embranquecido, heteronormativo, masculino e classista.

O Direito Penal é limitado em razão da existência de instituições e um sistema democrático que lhe dificultam a expansão, embora não tenha sido exitoso nesse processo, que muitas vezes se confunde com um processo de redução da aceleração e/ou de legitimação das práticas. Mas, instituições existem, fiscalizam,  denunciam e regulam a máquina, ainda que concomitantemente a legitime. O Governo Penal possui os mesmos freios, desde que eles funcionem.

Se contra o Direito Penal surgem discussões que evidenciam a incongruência entre o seu discurso e a sua prática, sendo a única forma de tentar deslegitimar sua continuidade, esse aparenta ser o mesmo mote que o Governo Penal deve enfrentar: denunciar o antagonismo do seu discurso simplista e populista de apresentar soluções fáceis com as suas práticas que não resolvem e, na verdade, realimentam os conflitos sobre os quais ele se ergue.

O que aparenta ter sido uma “evolução” do Governo Penal é o que diz respeito ao seu campo da lógica. Aquilo que no Direito Penal é feito a partir do monopólio da racionalidade com a linguagem rebuscada da dogmática penal, aqui, no Governo Penal, migrou para o polo oposto. A racionalidade é o que torna “verdadeiro” aquele discurso. No Governo Penal não é preciso construir uma racionalidade de forma rebuscada e preservá-la longe de todos, pelo contrário, se for possível o ideal é inventar uma racionalidade nova a cada minuto. Inventar uma notícia, uma leitura, uma “verdade”, que por mais que seja desmentida e desmascarada no minuto seguinte, já fez seu efeito e poderá ser substituída por outra. Não é preciso construir castelos para a verdade quando podemos incitar que as pessoas ataquem moinhos de vento.

O efeito da expansão do Direito Penal para um Governo Penal é que, enquanto naquele primeiro, o público preferencial é um marcado pelo racismo, pobreza e juventude, no outro pode se alcançar muito mais gente, inclusive as pessoas que lhe fomentaram e apoiaram. Contudo, não podemos nos dar ao luxo de esperar que essas pessoas sintam na pele seus efeitos para que se provoque mudanças, pois o Governo Penal é também uma prática seletiva que antes de arranhar a pele branca de algumas pessoas, vai atravessar a carne de tantas outras.

Se opor ao Governo Penal é se opor a um sistema que discursa uma coisa e coloca em prática outra. É desconstruir sua capacidade de resolver problemas. Para isso, é preciso evitar uma postura de simples denuncismo que é convertida – assim como no direito penal – no enrijecimento das práticas. É preciso dialogar e revelar a falibilidade das propostas, apresentando soluções construídas coletivamente. É preciso, sobretudo, aprender a reagir a sua racionalidade dinâmica que cria, a cada minuto, uma nova verdade instantânea de fácil consumo, vazia de conteúdo e desleal, mas que se espalha muito mais rápida que é desmentida.

Rochester Oliveira Araújo é mestre em Direito Constitucional, Defensor Público do Estado do Espírito Santo.

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