A agenda furtiva do governo Bolsonaro

Adesão aos EUA. Ajuste fiscal dramático. Moro superpoderoso. Por trás da fanfarronice e das idas e vindas nas redes sociais, esconde-se o verdadeiro tripé estratégico do ex-capitão

Por Antonio Martins | Vídeo: Gabriela Leite, em Outras Palavras

Outras Palavras publica hoje, com satisfação, Bolsonaro e o controle da Verdadeum texto indispensável do escritor e jornalista Ricardo Alexandre. O autor desvenda, com sagacidade e certa ironia, o estratagema do presidente eleito para despistar o jornalismo e a crítica, produzindo versões díspares – e frequentemente contraditórias – do que pretende fazer. “Bolsonaro trabalha em regime de contra-informação”, frisa Ricardo, ao explicar como, em poucos dias, o ex-capitão e sua entourage contradisseram-se deliberadamente sobre temas como a coordenação política do futuro governo, a composição do ministério, o momento e circunstâncias do convite a Sérgio Moro, a criação de uma nova CPMF, a extinção do 13º salário, o fechamento do STF e muitos outros assuntos.

O que se pretende com este circo de ziguezagues? Confusa, e acostumada ela própria às frivolidades e factóides, a mídia tradicional não acompanha. Porém, a partir do exame rigoroso de um conjunto de fatos e declarações inequívocas, já é possível traçar um primeira visão sobre o núcleo da estratégia de governo de Bolsonaro e os primeiros passos que ele dará, ao tomar posse. Três pontos centrais compõem o desenho – e estão articulados entre si. No plano externo, alinhamento íntimo com os Estados Unidos de Donald Trump; na Economia, o desmonte de estruturas essenciais do Estado e uma contra-reforma da Previdência muito mais brutal que a de Michel Temer; na arena interna, carta branca para que Sérgio Moro transforme o ministério da Justiça num instrumento de diversão do público e de perseguição política aos adversários.

O comprometimento com os Estados Unidos, primeira base do tripé, é incômodo e provavelmente impopular, para alguém que vestiu verde e amarelo durante toda a campanha. Por isso, o presidente eleito o anuncia em falas sumárias, ou o disfarça em ataques a outros países. Foi assim, com quatro palavras defensivas (“Continua – sem problema nenhum”), que ele comunicou, em 1º/11, a intenção de autorizar a venda incondicional da Embraer à Boeing, desnacionalizando a principal empresa brasileira de alta tecnologia. Sempre lacônico, Bolsonaro anunciou outras mudanças drásticas na orientação da política externa brasileira. Quer transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, ferindo decisão da ONU e subordinando-se a Trump. Ameaça romper relações diplomáticas com Cuba, após inviabilizar a presença dos médicos cubanos no Brasil. E aparentemente autorizou seu futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, a desfazer do Mercosul, anunciar que mantê-lo não será prioridade e afirmar que o bloco “só negocia com quem tiver inclinações bolivarianas”.

A reviravolta na posição brasileira no mundo já está produzindo consequências. Primeiro-ministro de Israel, o ultra-direitista Benyamin Netanyanu anunciou sua intenção de comparecer à posse de Bolsonaro. Mas há aqui outro aspecto central a investigar aqui. Aos poucos, fica claro que as eleições brasileiras foram fortemente influenciadas por uma tática eleitoral desenvolvida fora do país, em favor de um projeto geopolítico profundamente antidemocrático. Estados Unidos e Israel parecem ser os pivôs deste projeto. Mas quais são suas dimensões reais e perspectivas? Que papel ele enxerga para o Brasil? Quais suas brechas? Serão perguntas centrais nos próximos meses.

Articulada com a primeira, a segunda coluna do tripé de Bolsonaro parece ser a intenção de promover um ajuste fiscal capaz de mudar a face do país. Implica devastar direitos sociais, reduzir dramaticamente a capacidade de ação do Estado e criar um ambiente favorável à atração de grande volume capitais externos de rapina. Duas pistas conduzem a esta conclusão. Primeiro, o futuro ministro da Economia Paulo Guedes fala reiteradamente em zerar, já em 2019, o déficit primário da União. As distintas formas de fazê-lo são um longo debate, que será tratado num programa à parte. O que importa agora são os caminhos concretos propostos por Guedes. Ele quer leiloar, a petroleiras internacionais, as áreas do Pré-Sal controladas pela Petrobras por meio do regime de cessão onerosa. Trata-se de reservas de 3,5 bilhões de barris de petróleo, pesquisadas e descobertas pela empresa brasileira, que seria cedida a suas concorrentes internacionais. Guedes pretende também desmantelar o BNDES ou reduzir ao mínimo sua presença na economia – o que privaria o país de uma ferramente essencial para promover um novo padrão de desenvolvimento. E o que for necessário para zerar o déficit, dizem o futuro ministro e seus assessores, virá a partir de cortes impiedosos nos gastos sociais. Pense no SUS, já atingido pela Emenda Constitucional 95 e sofrendo o fechamento de Unidades Básicas de Saúde em todo o país.

No terreno econômico, o projeto de longo prazo é uma “reforma” da Previdência que praticamente liquidaria o sistema de aposentadorias por repartição e solidariedade. A proposta é tão drástica que o futuro ministro pensa em abandonar o próprio projeto regressivo de Michel Temer. Em vez de fundo público e de transferências de renda (para as famílias mais pobres, os idosos ou inválidos, por exemplo) passaria a haver essencialmente um sistema de contas individuais de poupança, a que os trabalhadores adeririam obrigatoriamente, pagando comissões ao sistema financeiro, e que poderiam resgatar, a partir dos 65 anos. Um outro texto-vídeo analisará em alguns dias esta proposta. Mas é evidente, desde já, como ela rebaixa as condições de vida e cria, ao mesmo tempo, um terreno fértil para oferecer, em massa, serviços financeiros privados.

Evidentemente, subordinação aos Estados Unidos e corte de direitos, sozinhos, não serão capazes de manter a popularidade do presidente eleito. Haverá, em condições normais, risco de queima acelerada de capital político. É aí que entra o ex-juiz Sérgio Moro e seu superministério da Justiça. Moro não controlará apenas a Segurança Pública, utilizando-se inclusive dos decretos que permitem contratação sigilosa de equipamentos de vigilância. Ele terá sob seu comando a Controladoria Geral da União, que tem poderes para questionar e interromper todos os convênios de órgãos públicos e privados com o Estado. E, mais crucial, controlará o COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras. É até agora um órgão técnico, voltado a coibir a lavagem de dinheiro ou as operações suspeitas. Estava, por isso, sob o guarda-chuvas do ministério da Fazenda. Sua politização poderá convertê-lo num instrumento de intimidação e coação de adversários políticos.

Por tudo isso, um cenário possível, no início de janeiro, é: o Palácio do Planalto e o Congresso deflagram o ataque aos direitos sociais, o mega-leilão de petróleo, o alinhamento automático com Washington e a nova “reforma” da Previdência. A mídia convencional, despreparada há muito para debater o país em profundidade, sucumbe às pirotecnias de Moro. Bolsonaro completa o circo de horrores, tuitando despistes.

Não é, porém, o único cenário. Conhecer o estratagema é um passo importante para desmontá-lo, para encontrar as frestas e as contradições, para tramar as alternativas. A época das fake news pode ser, também, o momento em que a sociedade compreender, aos poucos, a importância de reinventar a democracia e de resgatar o jornalismo de profundidade.

Foto: O Globo

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