‘O governo demoliu minha casa e ainda não recebi nada’: famílias vizinhas da cracolândia tentam reconstruir a vida

O comerciante Porfírio Valente, de 91 anos, levanta o dedo e a voz quando fala sobre o destino da casa que comprou em 1954. “Comprei com meu dinheiro. Não roubei de ninguém, não. Está tudo registrado, pagava todos os impostos. Um dia, chega um funcionário da prefeitura e fala: ‘Sai fora daqui’. E eu e minha senhora temos de sair de mãos abanando. Até agora não recebi um centavo. Isso é justo, meu filho?”

Na década de 1950, quando ele e sua mulher Maria de Lourdes emigraram de Portugal para São Paulo, a cracolândia não existia nem nos sonhos mais surrealistas. O bairro de Campos Elíseos era apenas um conjunto de alamedas e casarões imponentes no centro paulistano.

Mas era também uma promessa de futuro estável para o jovem casal de portugueses recém-chegados. Ali, na alameda Glete, eles se instalaram e assumiram o controle de uma quitanda em frente ao apartamento onde escolheram morar.

Mais de 60 anos depois, o casal foi obrigado pelo poder público a deixar o espaço onde viveu a maior parte da vida. Eles são uma das 200 famílias que moravam na chamada quadra 36, um quarteirão até então ocupado por casas, pensões e pequenos comércios.

Quase tudo foi demolido, com exceção de um prédio que é tombado pelo patrimônio histórico e de um abacateiro no meio do terreno. No local, será erguido um hospital.

Quase sete meses depois das desapropriações, os antigos moradores ainda tentam reconstruir a vida: alguns não tiveram qualquer auxílio do Estado; outros foram viver em ocupações de sem-teto ou em favelas longe do centro; um terceiro grupo, como o casal de portugueses, teve suas antigas propriedades derrubadas e ainda não recebeu indenização por isso.

Um estudo do Fórum Mundaréu da Luz, em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, cadastrou metade das 200 famílias que viviam na quadra 36. O levantamento constatou que 60% dos cadastrados foram viver em pensões do centro ou em ocupações de sem-teto. Entre elas, o prédio Wilton Paes de Almeida, que desabou em maio, deixando sete mortos.

Outros 14% dos moradores se mudaram para favelas de várias regiões da cidade – 4% continuam em pensões de Campos Elíseos. O restante tem paradeiro desconhecido.

Campos Elíseos virou cracolândia

O antigo bairro de Campos Elíseos, que no início do século passado era morada de ricos, mudou de aparência no início dos anos 1990 com a chegada de centenas de dependentes de crack e de traficantes. Eles consomem e vendem a droga a céu aberto no chamado “fluxo”.

Na língua dos paulistanos, o local virou sinônimo de cracolândia. Ao longo das últimas duas décadas, operações policiais e urbanísticas se avolumaram para tentar resolver o problema. Equipamentos culturais, como a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa, foram instalados na região com a esperança e o slogan da revitalização.

Mas o cenário pouco mudou. Em 21 de maio do ano passado, houve outra operação policial: dezenas de pessoas foram presas e centenas de usuários de crack tiveram de deixar o “fluxo” – muitos foram internados para tratamento médico. “A cracolândia acabou”, disse à época João Doria Jr. (PSDB), então prefeito de São Paulo e hoje governador eleito.

A polícia dizia que a região passou a ser dominada por membros da facção criminosa PCC. De fato, não eram incomuns imagens de homens armados circulando pelas alamedas de Campos Elíseos – em uma das operações em fevereiro de 2017, por exemplo, dois fotógrafos ficaram feridos por tiros de arma de fogo.

Mas o diagnóstico de que a cracolândia havia sido extinta com as operações policiais, porém, mostrou-se equivocado dias depois. Os dependentes químicos e os traficantes retornaram à região. A droga voltou a circular livremente, apesar da presença da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana no entorno. Embora menor, o fluxo foi remontado e continua até hoje.

As intervenções urbanísticas também continuaram. Ao lado do fluxo, o governo do Estado inaugurou, em março deste ano, 914 apartamentos por meio de uma Parceria Público-Privada. Também está prevista a contrução de uma escola de música e a concessão de um terminal de ônibus – a empresa vencedora poderá construir até um shopping center no local.

Por sua vez, a quadra 36, onde os portugueses Porfírio e Lourdes viviam, tornou-se palco de uma nova estratégia para revitalizar a área. Ali, será erguida uma nova unidade do hospital estadual Pérola Byington, referência no atendimento de mulheres. O plano já era conhecido desde 2015, durante a gestão do então governador Geraldo Alckmin (PSDB).

Mas as desapropriações só se iniciaram em abril deste ano, quando o tucano cedeu o cargo de governador a Márcio França (PSB) para concorrer à Presidência.

Controvérsia nas desapropriações

A retirada dos antigos moradores foi contestada pelo Ministério Público, que chamou as remoções de ilegais. Desde 2014, a quadra 36 foi classificada pela prefeitura como uma Zeis (zona especial de interesse social), porção do território que deve ser preferencialmente destinada à moradia social para pessoas de baixa renda.

Por lei, todas as áreas com esse selo devem ter um conselho gestor formado por membros do poder público e da sociedade civil. Isso significa que qualquer mudança no local deve ser aprovada pelos conselheiros.

Ao pedir a remoção dos moradores, o governo do Estado não informou à Justiça que a quadra 36 era uma Zeis, como manda a lei, segundo o promotor de Habitação e Urbanismo Marcos Vinícius Monteiro dos Santos. O conselho gestor só foi formado dois dias antes do início das desapropriações e, por isso, a intervenção no território sequer pôde ser votada.

“O poder público desconsiderou a legislação. Além disso, os moradores deveriam ter sido cadastrados e, na saída, já terem uma alternativa habitacional garantida. Isso não aconteceu, por isso consideramos a ação ilegal”, diz o promotor.

Inicialmente, a Justiça acatou os argumentos do Ministério Público e impediu as remoções. Porém, dias depois, um desembargador liberou todos os processos. O governo do Estado argumenta que, antes da transformação da área em Zeis, havia um decreto de Alckmin transformando o terreno em ponto de interesse social para a construção do hospital – na visão do governo, esse fato desobrigaria a gestão de informar a Justiça sobre a Zeis e da formação de um conselho gestor.

No ano passado, a prefeitura chegou a lacrar pensões e comércios do bairro, sob o argumento de que eles eram usados para esconder e repassar drogas a dependentes químicos. Doria ainda tentou desapropriar imóveis sem precisar da autorização da Justiça ou aviso prévio aos proprietários, alegando que se tratava de uma situação emergencial. Porém, a medida foi duramente criticada pela Defensoria Pública do Estado e pelo Ministério Público estadual. A Justiça impediu a ação.

Em uma das ocasiões, funcionários da prefeitura começaram a derrubar um imóvel sem retirar parte dos moradores de dentro. Uma pessoa ficou ferida. Na época, a gestão Doria afirmou que os servidores não sabiam da presença das pessoas, pois elas teriam entrado na área por uma “passagem secreta”.

Para onde foram os moradores?

“Boa parte das famílias não tinha para onde ir. Foi uma situação muito triste: gente dormindo nas ruas com os móveis”, diz Felipe de Freitas Moreira, arquiteto e urbanista do Instituto Pólis e um dos conselheiros da quadra 36.

“Havia pessoas que moravam lá antes do fluxo chegar naquela quadra. Por lei, ali é uma área de habitação social. As famílias deveriam ser priorizadas e não ter seu direito à moradia e outros vínculos com o território violados”, afirma.

O faxineiro Nataniel da Silva, de 28 anos, e sua mulher Nitania, de 23, foram uma das famílias que tiveram de sair às pressas da quadra 36, onde viviam de favor havia quatro meses – ajudavam apenas com despesas de limpeza, comida e manutenção. Até hoje, eles não receberam o auxílio-aluguel de R$ 400 mensais pago pela prefeitura ou pelo governo do Estado a pessoas em vulnerabilidade social. “Só dizem que meu caso está em estudo”, afirma ele.

Hoje, ele e a esposa desembolsam R$ 1.000 por mês para viver em uma quitinete na região central. O aluguel consome a maior parte da renda familiar, que é de R$ 1.600. “Sobra muito pouco. Nossa sorte é que recebemos bastante ajuda na igreja”, diz. O casal acabou de perder um filho, nascido prematuro.

No início de setembro, a BBC News Brasil acompanhou uma reunião do conselho gestor da quadra 36. Moradores e conselheiros reclamaram a funcionários da prefeitura sobre a demora na aprovação de auxílios-aluguel para pessoas que há meses lutam para se estabilizar.

“A prefeitura diz que não tenho direito ao auxílio porque eu não vivia na quadra. Todo mundo aqui sabe que eu morava lá há anos. Não tenho culpa se vocês não tiveram coragem de subir até o segundo andar do prédio. Entraram, olharam o primeiro andar e foram embora”, disse um morador.

Segundo a prefeitura, hoje comandada pelo tucano Bruno Covas, 183 famílias foram cadastradas na área, mas há casos de pessoas que não conseguiram provar vínculo com o território: não tinham, por exemplo, contas de luz ou de água. Por isso, tiveram o benefício negado. A gestão afirma, ainda, que faz um plantão diário para esclarecer as famílias sobre o andamento processo.

Já o governo de SP disse que depositou em juízo os valores das indenizações, mas que cada caso depende de liberação do Judiciário.

Segundo o promotor Marcos Vinícius Monteiro dos Santos, algumas famílias foram surpreendidas pelas desapropriações e acabaram tendo dificuldades para encontrar e apresentar documentos antigos exigidos pela Justiça.

‘Chegamos muito antes do crack’

Além das pessoas que viviam de aluguel, a quadra 36 tinha comerciantes e proprietários de imóveis. Manuel Fernando Moreira, de 63, chegou à região ainda pequeno, quando seus pais emigraram de Portugal para São Paulo. Na década de 1960, seu pai comprou uma das casas e abriu um bar em frente – comércio depois herdado por Moreira.

“Chegamos muito antes do crack. Eu jogava bola na rua, pegava o bonde na frente de casa para andar pelo centro”, lembra. A família cresceu junto com a casa. Até abril, quando tiveram de sair, 21 parentes do comerciante viviam no imóvel, que, entre casas e quartinhos, media 320 metros quadrados.

“Deram um mês para a gente sair. Depois, vieram e derrubaram tudo”, diz Moreira, que agora vive de favor na casa de um afilhado. Outra parte da família precisou se mudar para a zona norte da cidade, onde também mora de favor.

Até agora, a família não recebeu nenhum centavo pela propriedade desapropriada pelo governo, nem qualquer ajuda do poder público. “A gente pagava R$ 5.000 de IPTU todos os anos, tinha todos os documentos certos. Perdi também o meu bar, que foi aberto pelo meu pai há 60 anos e era sustento meu e do meu filho. Estou vivendo de favor, dormindo no chão. Isso não tem explicação, não há justificativa”, diz Moreira.

Parte da indenização de R$ 540 mil foi até liberada pelo governo do Estado, mas a Justiça segurou o dinheiro, alegando problemas em documentos. O processo está parado. Enquanto isso, Moreira evita passar em frente à antiga casa. “Não consigo olhar para onde ficava minha casa. Me vêm muitas lembranças”, diz.

Já os comerciantes Porfírio e Maria de Lourdes, também desalojados pelo governo, foram viver nos fundos da quitanda que administram desde os anos 1950. Também aguardam a indenização pelo imóvel. “Como a gente fica, meu filho? A gente fica é doente. Tenho 91 anos e minha senhora, 88. Se eles queriam meu apartamento, que pagassem por ele”, disse, enquanto servia um cliente.

Responsável do governo pela construção do hospital, Ricardo Tardelli afirmou à BBC News Brasil que a Secretaria Estadual da Saúde depositou as indenizações à Justiça, mas é possível que problemas burocráticos tenham impedido a retirada do dinheiro. “A família precisa levar uma série de documentos, provar que realmente era dona do imóvel, que pagaram todo o IPTU. É a Justiça quem libera o dinheiro”, diz.

Segundo ele, as obras do hospital ainda não começaram por problemas de documentação – serão 36 meses de construção, num total estimado de R$ 294 milhões.

Para Valter Caldana, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade Mackenzie, os projetos de revitalização de Campos Elíseos não alcançaram seu objetivo porque não se relacionam com o entorno. “São Paulo tentou colocar equipamentos culturais na área, mas eles só funcionam da porta para dentro, sem dialogar com a região. Veja a Sala São Paulo, onde as pessoas chegam e saem de carro. “, diz.

“Ter um hospital ali será ótimo. Mas o poder público tem de criar alternativas para que a gentrificação [saída de pessoas pobres] não ocorra da forma mais cruel. Esse é um risco constante. Toda intervenção precisa levar em conta a qualidade de vida para todos, não apenas para parcelas específica da população.”

As intervenções na cracolândia devem continuar. Nos próximos meses, centenas de moradores das quadras 37 e a 38, bem próximas ao fluxo, também serão retirados.

Foto: Os comerciantes Porfírio Valente, de 91 anos, e Maria de Lourdes Valente, de 88, foram desalojados de seu apartamento em abril

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