Cerca de 70% do que alimenta as famílias agricultoras vem dos quintais produtivos

Dados consolidados de pesquisa nacional, que mensura a produção dos quintais das famílias agricultoras, serão apresentados em seminário na Universidade Federal Rural de Pernambuco, no Recife, na semana que vem

Por Verônica Pragana – Asacom

Um pedaço apertado de terra com uma variedade imensa de alimentos cultivados, desde hortaliças, verduras, frutas a plantas medicinais, sem falar nos animais criados na área. De lá, sai o que nutre a família, outro tanto que é trocado na comunidade, mais uma parte vendida e ainda uma porção doada. Essa mina abundante são os quintais das casas das famílias agricultoras em todo o Brasil. Uma parte do agroecossistema familiar com potencial pouco conhecido e que, por isso mesmo, está à margem da maioria das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar.

Em geral, quem se dedica aos cuidados com o quintal são as mulheres. Mas é um trabalho tido como menos importante do que aquele feito em outros espaços da propriedade, como o roçado, que gera renda num determinado período do ano. “Na agricultura, há amplo leque de contribuições das mulheres… Simplesmente, essas atividades não são reconhecidas como trabalho e não são contabilizados como renda”, anuncia a justificativa de um projeto que investiga justamente a importância dos quintais na vida das famílias agricultoras do Brasil.

Intitulado “Os Quintais das Mulheres e a Caderneta Agroecológica na Zona da Mata de Minas Gerais e nas Regiões Sudeste, Sul, Amazônia e Nordeste: sistematização da produção das mulheres rurais e um olhar para os quintais produtivos do Brasil”, o projeto tem uma importância ímpar uma vez que são raros os estudos com enfoque no trabalho produtivo realizado pelas mulheres nos agroecossistemas familiares. “Em geral, destaca-se a atuação da família ou do homem, sem questionar as relações sociais de poder vigentes, o que reforça a invisibilidade e a desvalorização do trabalho feminino”, reforça o projeto.

A ação prevê uma ampla pesquisa nacional sobre os quintais produtivos e a criação de quintais de referência. A pesquisa foi realizada, em 2017 e 2018, em 250 quintais produtivos com a participação imprescindível das mulheres. Os dados levantados foram anotados diariamente por elas numa caderneta. Tudo o que saía do quintal, seja para consumo da família, venda, troca ou doação, deveria ser anotado. Depois, esse volume de produtos seria transformado em valores monetários para que se pudesse enxergar a riqueza gerada pelo quintal.

O resultado desta anotação minuciosa e constante surpreendeu as famílias, inclusive, às mulheres, guardiães dos quintais produtivos. Colocando a produção na ponta do lápis, dia após dia, pode-se mensurar com mais fidelidade o quanto esse espaço é crucial para a vida das famílias e até manutenção delas no espaço rural. Nos dados computados dos 40 quintais pesquisados na Zona da Mata de Minas Gerais, com tamanhos que variam entre 150m² a 7,5 mil m², foi identificado que cerca de 70% da alimentação das famílias era cultivada neste espaço ao lado de casa.

“A maioria da produção para autoconsumo é protagonizada pelas mulheres. Isso comprova a grande importância das mulheres para a segurança alimentar da família. E, em geral, há um certo conflito familiar entre a produção para venda e para a casa”, comenta Beth Cardoso, coordenadora técnica do Centro de Tecnologia Alternativa da Zona da Mata de Minas Gerais, coordenadora do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e coordenadora-adjunta da pesquisa.

Entre as mulheres que participaram da pesquisa na Zona da Mata mineira, 46% tinham como principal renda a agricultura familiar, 30% o benefício da Bolsa-Família e as demais, pensão, liberação sindical, aposentadoria, entre outros.

Uma pesquisa de doutorado de Rafael Monteiro de Oliveira, do departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa, compara o rendimento de um hectare de quintal com o da plantação de café, um dos carros-chefe da agricultura mineira. Comparando só a receita, viu-se que a renda gerada por um hectare do quintal equivalia a de dois hectares do café. Se comparasse o custo de produção, a relação era de um para três. Isso porque o custo do quintal é muito baixo. Praticamente a mão-de-obra da mulher e mais algum investimento em pequena estrutura como telas para cercar o espaço dos animais.

A caderneta – Os apontamentos sobre a produção retirada do quintal são feitos nas cadernetas agroecológicas, uma ferramenta de controle criada pelo Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), a partir da contribuição de uma rede de organizações dos campos agroecológico e feminista, aglutinadas em torno do projeto Mulheres e Agroecologia em Rede, que se desenvolveu em 5 regiões do país. A caderneta agroecológica foi vencedora do concurso de boas práticas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), do extinto MDA.

Desde que foi criada, a caderneta tem conseguido mensurar a quantidade e diversidade das espécies produzidas nos quintais. E isso provoca a desconstrução de alguns pressupostos sobre a agricultura familiar. Uma delas é que a produção do café era o responsável pela fixação das famílias agricultoras no campo. “Agora se vê que a produção para autoconsumo, que faz com que a família precise comprar poucos alimentos, também é fundamental para mantê-las no espaço rural”, pontua Beth.

Nordeste – Na região, participaram da pesquisa 100 mulheres, cujos dados das cadernetas estão sendo tabulados para apresentação na semana que vem no terceiro seminário nacional do projeto. Em 40% dos quintais, a média de idade das agricultoras é de 50 anos, na sua maioria, são casadas, pretas ou pardas, mães de até dois filhos e com formação escolar até o Ensino Fundamental.

Destino da produção dos quintais pesquisados no Nordeste – Imagem: Reprodução Asa Brasil

Neste universo, mais da metade (51%) dos produtos do quintal foram vendidos, 34% consumidos pela família, 14% doados e 1% trocado por outros produtos. E, nos meses com maior número de cadernetas preenchidas – setembro e outubro do ano passado – a produção dos 40 quintais foi revertida em, aproximadamente, R$ 36 mil e R$ 31 mil reais, respectivamente.

Ainda olhando para os dados sócio-econômicos destas 40 agricultoras do Nordeste, o acesso às políticas públicas, grande parte direcionada para o Semiárido, é um elemento que chama atenção: 58% das mulheres participantes recebiam a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), 55% tinham a cisterna de primeira água, 53% possuíam tecnologias sociais que armazenam água para produção, 53% acessam o Bolsa-Família, entre outras políticas.

Na Paraíba, Maria das Graças Domingos Vicente, de 47 anos, foi uma das agricultoras que preencheu a caderneta e, como todas, se surpreendeu com o resultado. “Depois que comecei a fazer a caderneta, a gente viu que tinha uma riqueza e não sabia. O que a gente produzia e comia, não precisava comprar. Até no final da semana, já dava para ver a economia que a gente fazia. Sem falar que o que comemos é orgânico, sem veneno”, dispara ela que vive na zona rural do município de Esperança, na região metropolitana de Campina Grande, na Paraíba.

Nina, como é conhecida, e seu marido Givaldo têm uma propriedade de 1,25 hectare onde produzem muita coisa. O 0,25 hectare corresponde ao espaço do quintal, onde se encontra a horta, as fruteiras, a farmácia viva com suas plantas medicinais e a cisterna-calçadão, que fornece água para todos esses cultivos. “A gente também troca muitos alimentos com outras famílias e o que vende é para a comunidade e também na feira agroecológica”, conta ela. Nos anos de 2013 a 2015, a família acessou os programas de compra de alimentos do governo federal, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Para além da renda – Além de mensurar a renda financeira e não-financeira movimentada pelos quintais, dá para fazer também a contabilidade da biodiversidade dos quintais, que supera a de sistemas como a agroflorestal, que tem como princípio a diversidade dos plantios. “Numa agrofloresta, encontramos de 40 a 50 espécies, várias das quais arbóreas que são de maior porte. Nos quintais, encontramos de 100 a 200 espécies, incluindo os animais criados na área”, assegura Beth Cardoso. Outro aspecto iluminado pela pesquisa é a fertilidade do solo do quintal, que recebe sempre matérias orgânicas, sendo a parte da propriedade mais preservado e cuidado de todo o agroecossistema familiar.

Outro resultado das cadernetas agroecológicas é a sua capacidade de empoderar as mulheres. Segundo Beth, a caderneta age como “um espaço de formação, através do qual muitas passam a reconhecer o valor de seu trabalho e aumentam a autoestima e isso influencia mudanças nas relações de poder das famílias”.

Uma característica muito forte dos quintais é que lá é permitido experimentar. É onde se planta primeiro uma semente que a sua guardiã trouxe de um intercâmbio que fez em outra região. Também é o berçário de mudas diversas que depois irão povoar o restante da propriedade. Sem falar que lá o cultivo é consorciado. Tem plantas nativas misturadas com frutíferas e outras espécies ornamentais. Uma árvore protege outra planta de menor porte da intensidade solar. Neste espaço, a teia de relações, que interliga tudo o que é vivo, é bem mais evidente. Com tanta harmonia e vida, “é comum a gente ouvir das agricultoras que os seus quintais são espaços de prazer e estar. É um lugar onde se sentem livres”, comenta Laetícia Jalil, professora da UFRPE e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).

Seminário nacional – Na semana que vem, de 13 a 14, acontece no Recife, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o terceiro Seminário Nacional “Feminismo e Agroecologia: Repensando a Economia a partir das Cadernetas Agroecológicas”, com a participação de agricultoras, técnicas das organizações da sociedade civil envolvidas na pesquisa e de pesquisadoras ligadas a universidades, como a Universidade Federal de Viçosa (MG) e a UFRPE. O seminário vai apresentar os dados nacionais consolidados, discuti-los e construir novas estratégias para o fortalecimento das ações das mulheres na construção da agroecologia no país.

O projeto teve o financiamento do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e coordenação nacional da Universidade Federal de Viçosa, em parceria com o GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, o Núcleo Jurema da Universidade Federal Rural de Pernambuco e a Associação Brasileira de Agroecologia. Em cada região, uma rede, movimento de mulheres e/ou organizações de assessoria da agricultura familiar – Movimento de Mulheres da Zona da Mata e Leste de Minas Gerais, Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da Amazônia, Rede de Mulheres Produtoras do Nordeste, Grupo de Trabalho em Gênero e Agroecologia do Sudeste e o Movimento de Mulheres Camponesas na Região Sul do Brasil – animavam o processo com seminários regionais.

PROGRAMAÇÃO

12/11
Atividades restritas às participantes da pesquisa.

13/11
Manhã: evento restrito às participantes da pesquisa.

16h – Abertura do seminário aberto ao público que será realizado na UFRPE.

17h – Mesa com representantes da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia ANA, Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD/MDA), Universidade Federal de Viçosa (UFV)

17h10 – Mesa “Mãos que tecem juntas o conhecimento: Novos olhares e aprendizados sobre o fazer agroecológico a partir das mulheres”
Participantes: Liliam Telles – GT Mulheres da ANA; Suyanne Fernandes – CETRA/CE; Armezinda Firmino – Grupo de Mulheres Raízes da Terra, Assentamento Padre Jesus; Espera Feliz – MG; Irene Cardoso – UFV e Coordenadora Geral do Projeto
Mediação: Graciete Santos- CMN/GT ANA

19h – Debate

20h – Confraternização

14/11
8h – Acolhimento e mística

9h – Mesa: “Feminismo e Agroecologia: Repensando a Economia a partir das Cadernetas Agroecológicas”.
Participantes: Isabelle Hillecamp – Professora e pesquisadora; Laeticia Jalil – Professora da UFRPE e ABA; Elisabeth Cardoso – GT Mulheres da ANA e doutoranda da Universidade de Córdoba

10h10- Debate

12h10- Almoço no RU/UFRPE

14h – Reflexões e encaminhamentos para a nova conjuntura.

Leitura da Carta final do Seminário

15h15 – Lanche

16h- Ciranda de encerramento.

Foto: Vládia Lima

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