Saneamento e violência armada são distribuídos de maneira desigual nos territórios

Saneamento e violência armada – O que determina o quê? “A relação do saneamento com saúde não é óbvia”, observou Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) para uma plateia repleta de estudantes da educação de jovens e adultos, a EJA

por Maíra Mathias, em EPSJV/Fiocruz / IHU On-Line

O mesmo poderia ser dito da violência, tema candente no debate público normalmente vinculado à segurança, mas raramente abordado como problema de saúde. ‘Violência, condições de moradia e saneamento: o SUS e a importância da determinação social da saúde’ foi o tema da mesa-redonda que contou com a participação de Leonardo Bueno, da Cooperação Social da Presidência da Fiocruz. O debate fechou o primeiro dia do seminário internacional que comemorou os 30 anos do Sistema Único, os 10 anos da revista Poli e os 30 anos do curso técnico de nível médio da EPSJV entre 29 e 31 de outubro.

No cotidiano da vida

Para Alexandre Pessoa, o objetivo do saneamento é promover a saúde ambiental e humana. “Mas no mundo real essas coisas estão juntas? Não como deveriam”, lamentou o engenheiro sanitarista, dando um exemplo concreto de como são indissociáveis. “Você está com um ‘bicho no bucho’ – uma parasitose, uma giárdia, uma lombriga. Você trata, mas volta para casa, e pega a doença de novo. São as doenças de estimação”, brincou. Isso acontece, explicou, porque as condições de moradia e saneamento não se alteram com um simples vermífugo. “O valão continua lá”, disse.

A constatação de que as coisas estão vinculadas, frisou, é feita por qualquer morador de uma comunidade que sofra com a inexistência de rede de esgoto ou uma drenagem, condições para que as chuvas se transformem em um grande problema, com inundações. Segundo o engenheiro, é dos territórios que devem vir também as soluções. Não as responsabilidades por infraestrutura adequada – pois estas são do poder público. Mas a mobilização social para pressionar por obras e uma reflexão coletiva sobre o melhor manejo da água e do lixo, por exemplo. “Sem organização não tem saúde”, alertou.

Pessoa também ponderou que, às vezes, mesmo com muita fiscalização, as obras do poder público podem ter uma qualidade ruim e deu como exemplo a primeira fase do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC I) em Manguinhos, que até hoje causa alagamentos nas casas dos moradores. O afastamento da realidade do território e das necessidades reais da população, motivado muitas vezes pela pressa em concluir as obras, por exemplo, causa, na opinião do engenheiro sanitarista, outros obstáculos para uma concepção de saneamento mais próxima do cotidiano das comunidades. Ele deu como exemplo ‘dicas’ de especialistas nos programas de televisão, que recomendam aos moradores que não saiam de casa quando chove para, assim, evitar pegar doenças veiculadas pelas águas sujas, como leptospirose. “Mas o morador tem que desobstruir a galeria de drenagem senão a água de esgoto vai entrar na casa dele…”, contestou. Nesses casos, o professor acha melhor abrir um diálogo franco, falar quais são os riscos e o que se pode fazer para que eles sejam reduzidos, como usar sacos plásticos nos pés e tomar um banho com muito sabão e, se houver disponibilidade, álcool.

O engenheiro, defensor do caráter público e estatal das companhias de saneamento, fez críticas à lógica que orienta as obras de esgotamento sanitário. Ele mostrou o mapa de um projeto de despoluição da Baía de Guanabara, em que se pode ver traçados de troncos coletores de esgoto. Alguns, como os que ligam bairros como Grajaú e Tijuca, saíram do papel. Outros, como os que beneficiariam comunidades como Maré e Manguinhos nunca andaram. O mais triste é que essas comunidades ficam bem mais perto da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Alegria do que Grajaú e Tijuca. “Me parece que tem um corte social. Saneamento é para todos, as comunidades de baixa renda tinham que ser priorizadas. O saneamento acaba contribuindo para a desigualdade, ao invés de reverter a desigualdade”, lamentou. E o argumento da Cedae, de acordo com ele, é que fazer as obras nos bairros é mais barato do que nas favelas. “Óbvio que é mais barato, mas isso não é argumento porque estamos falando de um déficit histórico. O critério para intervenção nas tubulações tem que ser a saúde pública”, argumentou ele, afirmando que para que seja defendida, a Cedae precisa se comportar como uma estrutura a serviço do interesse público. “Saneamento [feito] dessa forma pode ser uma violência de Estado”, afirmou.

Determinação social

Para Leonardo Bueno, da Cooperação Social Fiocruz, há diferentes tipos de violência. Mas a base de toda a violência é a desigualdade. “Quando você não tem acesso a saneamento, renda, escola, trabalho… E essa é a forma de violência que acompanha o sistema que a gente vive”, constatou. Contudo, ele reconheceu que a violência armada é a mais conhecida e, por vezes, a protagonista absoluta do debate. “Infelizmente, o Brasil é recordista em homicídios e outros impactos gerados por armas de fogo. Infelizmente, nos territórios [de favela], esse fator acaba influenciando todas as outras políticas”, disse.

Em uma análise mais detida, portanto, a participação das comunidades na política acaba sendo influenciada o tempo todo pela violência com arma de fogo – que, de fato, é complexa, seja por terem se tornado corriqueiras operações policiais com muita troca de tiros, seja porque grupos locais nos territórios estão armados. Por vezes, alertou, a própria geografia das comunidades é alterada para responder à lógica do conflito, como quando barricadas são construídas em becos.

E, como tudo está integrado, também o saneamento experimenta reflexos dessa realidade. Leo Bueno, que é morador de Manguinhos, contou que em 2018 algumas áreas desse complexo de favelas sofreram com enchentes justamente porque as barricadas impediam o escoamento das águas pluviais. E esses pontos coincidiam com as áreas onde há muita operação policial. “Isso potencializou as enchentes. Mais de cem famílias perderam praticamente tudo. A nossa participação na política pública acaba sendo influenciada o tempo todo pela violência com arma de fogo. Você nunca elegeu nem a associação de moradores do lugar onde mora, o tempo todo a polícia e o crime estão violando, e as coisas sendo decididas na marra”, recapitulou. Desse jeito, afirmou, é difícil criar uma cultura democrática. “Não foram poucos os relatos de moradores que quiseram participar, qualificar essa política pública [o PAC] e não conseguiram”.

Em um território que nas palavras de Bueno é considerado “de exceção”, as mesmas leis que valem para a cidade não valem para a favela. E as ‘soluções’ parecem não apontar, de fato, para qualquer luz do túnel.

“Nenhum país do mundo reduziu homicídios aumentando a circulação de armas de fogo”, afirmou. Para completar: “É preciso investir na lógica da investigação e não na lógica do combate que expõe todos nós e a nossa família quando estamos indo para o trabalho, para a escola, indo para a igreja, indo curtir”.

De acordo com ele, diferentes organismos internacionais não consideram confiáveis os dados que vêm diretamente da segurança pública. “Tem mortes que não são registradas. Isso vale para mortes cometidas pelo crime e pelo Estado”, disse. Uma base mais confiável, segundo ele, é a do Ministério da Saúde, que faz o registro dos homicídios no Brasil desde 1979. “Isso avançou, mas ainda precisamos evoluir para qualificar a política pública”, defendeu.

Ele lembrou o ano de 1995, que até 2018 tinha registrado o maior número de homicídios no estado do Rio de Janeiro. Na época, o governo chegou a instituir uma gratificação para os policiais que mais atirassem que ficou conhecida como “gratificação faroeste”. Em meio à crise e aos tiroteios, contou Bueno, a Fiocruz debateu caminhos sobre o que fazer. “A maior parte da instituição defendia que a solução seria retirar a Fiocruz deste campus, ou blindar em grande parte a Fiocruz e suspender ações nos territórios nas favelas. A educação de jovens e adultos surgiu justamente para disputar essa lógica e dizer que a melhor forma de diminuir a violência é oferecer serviços para a população. Felizmente, foi essa lógica que venceu. E hoje a gente está aqui debatendo. Precisamos de mais ações de educação e saúde nos territórios como formas de diminuir a violência. Não de menos”, defendeu.

E isso, segundo ele, tem tudo a ver com o tema da mesa: determinação social da saúde. “A saúde não é um conjunto de fatores naturais. É construída socialmente, uma opção que fazemos como seres humanos e como sociedade”, explicou. Assim, a desigualdade no acesso ao saneamento e a desigualdade com que as violências são distribuídas nos territórios funcionam como uma espécie de caldo de cultura para que certas enfermidades e transtornos apareçam. “Não é genético, é social”, concluiu.

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