Corpo feminino, primeiro território violado: estupro como ferramenta de tortura e genocídio

Por Emanuelle Goes, no População Negra e Saúde

Começo este texto trazendo fragmentos do artigo da Veronique Nahoum-Grappe (2011), intitulado Estupros: uma arma de guerra, “os estupros sistemáticos em tempos de guerra visam destruir até populações martirizadas. É no ventre das mulheres que se encarna a loucura genocida dos homens. Violências extremas, gestações não desejadas, transmissões do HIV.” E ela cita exemplos da ex-Iugoslávia e de Ruanda, eu cito o estupro das mulheres negras no Brasil como ferramenta do genocídio da população negra.

O intelectual negro Abdias do Nascimento nos explica sobre isso em seu livro “O Genocídio do Negro Brasileiro” (que teve sua primeira edição lançada em 1977 e com nova edição em 2017), e em um dos capítulos ele vai tratar sobre estratégias de branqueamento da população brasileira. Segundo ele, o processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. O problema seria resolvido pela eliminação da população afrodescendente. Com o crescimento da população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país.
A programação deliberada dos estupros, chamados de “estupros sistemáticos” define seu sentido genocida, ao considerar que tocar o gene no lugar em que esse se reproduz, no ventre das mulheres, permite eliminar, na imaginação, toda a comunidade inimiga ou não desejada em sua essência coletiva (Veronique, 2011).
Com isso, o texto tem como proposito dialogar com a ideia do corpo feminino como primeiro território violado em zonas de guerra, conflitos e operação militar. As estruturas de opressão, no qual atravessam, o racismo, sexismo e o patriarcalismo, identificam os corpos das mulheres territórios repletos de identidades, com marcas de uma população, um povo ou uma etnia/raça. Neste sentido, os estupros realizados têm como princípio a violação do corpo da mulher e a negação da vida, estendida à comunidade, o corpo não está só, ele carrega histórias.
Ao pensar no corpo como território, resgato um texto da feminista Silvia Camurça e nele ela diz “a ideia de ‘nosso corpo, nosso território’, propomos tomar o corpo como território onde nossa vida habita, algo inseparável da própria vida que se realiza através e pelo corpo, nossa base material de existência humana: meu corpo sou eu”. Com isso essa insígnia “nosso corpo, nosso território” mantém o centro da demanda e da denúncia colocada em público nos anos 1970 (‘nosso corpo nos pertence’) e vincula à luta contra a expropriação de outros territórios, lugares de existência coletiva, luta travada por mulheres e homens, quilombolas e de populações tradicionais do Brasil e de outros países da América Latina (Nosso corpo, nosso primeiro território!).
Afunilando o diálogo, trago alguns exemplos recentes, o caso amplamente divulgado, das meninas e mulheres da Nigéria que foram sequestradas e estupradas pelo grupo extremista Boko Haram, segundo o relatório das (Nações Unidas) ONU, o grupo utiliza da violência sexual como tática de guerra, além de levar as mulheres e meninas para o casamento forçado e escravidão sexual, segundo estimativa da ONU são cerca de 7.000 envolvidas neste ambiente de violência (Estado Islâmico e Boko Haram usam estupro como tática de guerra, diz ONU).
No México, mulheres foram estupradas por policiais, durante uma operação policial que reprimiu duramente uma manifestação em San Salvador Atenco, no Estado do México, no centro do país em 2006. O país foi acusado de tortura sexual na Corte Interamericana de Direitos Humanos, este caso foi relatado recentemente pela BBC News (‘Fui estuprada por vários policiais’: as mulheres que acusam o México de tortura sexual).
A Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro recebeu relatos, agora em 2018,  de uma série de violações praticadas por militares desde o início da intervenção federal na segurança pública do Estado e que meninas estão sendo estupradas por policiais durante a intervenção, além disso, as meninas também sofrem abuso sexual durante a abordagem da polícia ao serem revistadas por Policiais Militares homens, o que contraria a lei — o artigo 249 do Código de Processo Penal afirma que a busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência (Policiais estupraram meninas durante intervenção no Rio, aponta relatório da Defensoria Pública).
Para Veronique (2011) o estupro é, por excelência, o crime de profanação contra o corpo feminino e, por meio dele, contra toda a promessa de vida do conjunto da comunidade. Neste sentido, a feminista negra Kimberlé Crenshaw critica a ausência do olhar pela ótica da discriminação interseccional sofrida pelas mulheres vítimas dos estupros “sistemáticos” em Ruanda e na Bósnia, em seu artigo “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero” (2002) ela evidencia que a denúncia e a indignação dos estupros “sistemáticos” se apresentam relacionadas a discriminação racial, pois foi considerado que a motivação da violência sexual ocorreu por questões étnicas. É evidente que são as mulheres as mais atingidas, pois elas são percebidas como representantes da honra simbólica da cultura e como guardiãs genéticas da comunidade. Se por um lado, o ataque à comunidade tenha sido execrado como genocídio étnico, por outro, essa indignação não sinalizou preocupações com suas vítimas diretas, que sofreram discriminação e violência de gênero, as mulheres.
É preciso ampliar a lente a partir do olhar interseccional da discriminação, pois o estupro é uma ferramenta multifuncional da opressão, que funciona como mecanismo de tortura ficando à disposição da misoginia e do patriarcado e como arma de guerra serve de meios para a realização do genocídio e a eliminação dos indesejáveis, a interações destas opressões (racismo e sexismo) atingem os corpos das mulheres negras, indígenas e de outros grupos marginalizados de forma redobrada.
Outros casos:
Referências:
Veronique Nahoum-Grappe. Estupro: uma arma de guerra. Org: Sandrine Treiner, Christine Ockrent, Nicia Adan Bonatti. Editora: Bertrand Brasil, 2011
Abdias Nascimento. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. Perspectiva: São Paulo, 2017

 

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