Uma raiva tão surda

Por Paulo de Medeiros, no Buala

O primeiro capítulo de Maintenant (Agora), um livro recente assinado pelo coletivo Comité Invisible, traz um título tão significativo quanto ameaçador: “Amanhã está cancelado”. Começa com uma série de observações sobre o nosso momento atual:

Todas as razões para fazer uma revolução estão presentes. Não falta uma. O naufrágio da política, a arrogância dos poderosos, o reino da falsidade, a vulgaridade dos ricos, os cataclismos da indústria, a miséria galopante, a exploração nua, o apocalipse ecológico – não nos poupam nada, nem sequer deixamos de ser informados sobre tudo isso. “Clima: 2016 bate um recorde de calor”, anuncia o Le Monde, o mesmo de quase todos os anos agora. Todos os motivos estão juntos, mas não são razões que fazem revoluções, são corpos. E os corpos estão em frente dos ecrãs1.

Claramente, o que está sendo ridicularizado aqui é a entropia e apatia alarmantes tão características das nossas sociedades (pós-) consumistas, nas quais os perigos de uma “sociedade do espetáculo”, como Guy Debord advertira, já em 1967, se tornaram não apenas desenfreados, mas quase normativos. E, no entanto, estar diante do écran também pode sinalizar algo muito diferente do narcisismo míope e da posição apolítica que o Comité Invisível nos faria acreditar ser o nosso único posicionamento no mundo. Por um lado, assistir ao recente documentário de João Moreira Salles, No Intenso Agora, que foi exibido pela primeira vez, com aclamação geral, no 67º Festival de Cinema de Berlim em fevereiro de 2017, é tudo menos cair nessa apatia. E também não é um exercício de nostalgia. O filme, em toda a sua complexidade, é uma das mais agudas problematizações dos processos de memória e pós-memória, ao mesmo tempo intensamente pessoais e mesmo íntimos, e também fortemente coletivos. O que está em jogo não são apenas as reflexões pessoais de um indivíduo sobre o passado, mas o apelo a uma sociedade inteira para olhar criticamente para um momento decisivo do seu passado político, a fim de entender melhor os ventos frios do presente e a tempestade que ameaça destruir o futuro. É óbvio que Moreira Salles não tinha como prever os protestos de junho de 2013 ou os chocantes resultados da eleição presidencial do Brasil em outubro de 2018, já que o seu filme não só tinha sido produzido antes, mas vinha a ser elaborado há bastante tempo. No entanto, agora, torna-se impossível entender a importância deste filme sem pensar nesses processos e nesses resultados. Se o filme sempre participa do espectro, como argumentou Derrida, esse filme, composto inteiramente de imagens descobertas em vários arquivos de vários países, assim como na própria coleção de família, é duplamente espectral. Mas os fantasmas do passado, as utopias fracassadas e as esperanças frustradas de toda uma geração, quando a ebulição de maio de 1968 logo deu origem à complacência da cumplicidade entre o Estado e o capital, ou a aniquilação da democracia, seja na então Checoslováquia. ou no Brasil, esses não são os que mais nos assombram. Os espectros verdadeiramente aterrorizantes são aqueles que possivelmente estarão por vir, e dos quais as eleições de outubro de 2018 são apenas o toque da trombeta de um arauto.

O filme foi saudado principalmente como uma maneira importante de refletir, e lembrar, o maio de 1968, em Paris. O título da edição impressa da recensão de A. O. Scott no New York Times (31 de janeiro de 2018), por exemplo, não deixa dúvidas sobre isso: “France Revisited During a Tumultuous 1968”. E mesmo que a versão em rede tente ser mais expansiva, acrescentando o termo “Além” à “revisitação da França”, o texto em si, com o seu investimento obstinado na centralidade da França, falha em ver qualquer outra coisa como mais do que uma forma de distração: “Os chineses interagem com o filme amador da Checoslováquia, pontuando uma narrativa principal dedicada aos ‘eventos de maio’ na França”. O Brasil é simplesmente elidido da narrativa, exceto na breve menção de que a família do diretor foi de lá para o exílio parisiense; qualquer consideração do que poderia estar por trás de tal exílio, como a ditadura militar inaugurada em 1964, é poupada aos leitores. A revisão é tão insignificante quanto banal e se a menciono tem mais a ver com as questões reais que o filme coloca, e os problemas que expõe, do que com a recensão em si, já que esse texto é apenas um sintoma de uma crise crítica generalizada e da falta de clareza que os autores de Maintenant tão nitidamente identificam. É como se A. O. Scott, um dos principais críticos de cinema do New York Times, tivesse se esforçado para fazer uma leitura tão apolítica do filme quanto possível, mesmo parecendo abordar as questões políticas geralmente associadas a 1968. Talvez seja isso o que o Comitê Invisível quis dizer ao afirmar que “os corpos estão na frente dos écrans”; Talvez tais recensões do filme de Moreira Salles se tornem “écrans” ou filtros interpostos entre os leitores e a intensidade da realidade, seja ela vivida nas cenas resgatadas pelo filme ou a que estamos confrontando agora.

No Intenso Agora questiona a memória, seja ela pessoal ou coletiva, e fá-lo a partir da perspectiva da pós-memória. Uma das principais questões do filme é a busca do narrador para entender como sua mãe foi feliz e viveu intensamente num dado momento de sua vida, quando viajou para a China em 1966 integrada numa delegação variada, para testemunhar transformações produzidas pela Revolução Cultural. Em vez de constituir um “interlúdio”, pode-se dizer que o foco naquela viagem e as filmagens que sua mãe trouxe consigo poderiam ser uma, ou a, parte central de todo o filme. Mas isso também seria impor uma estrutura que o filme recusa. Em vez disso, é precisamente o entrelaçamento dos diferentes elementos que obriga o leitor a considerar as conexões entre os vários eventos, seja a viagem da mãe à China, os breves momentos de solidariedade entre estudantes e trabalhadores em Paris, o esmagamento da esperança em Praga pelos tanques soviéticos, ou a situação no Brasil com sua desigualdade sistémica predicada em questões de raça, género e classe. Moreira Salles, nascido em 1962, não pode ser considerado uma testemunha dessas sublevações, sejam os protestos em Paris ou a marcha de cinquenta mil pessoas pelo enterro de Edson Luís de Sousa, o estudante de 18 anos morto pela Polícia Militar no Rio de Janeiro em 28 de março de 1968. Significativamente, essa morte é posta em relação não só à de outros estudantes, mas também à morte de um polícia, através do comentário proporcionado por  Moreira Salles que comenta o abismo entre as várias representações dos diferentes mortos. Assim, mesmo que o filme em si utilize apenas imagens contemporâneas dos acontecimentos, a maneira como assistimos e podemos começar a entender as várias imagens e sua inter-relação é sempre dependente da voz do próprio narrador, João Moreira Salles, para quem a perspectiva invocada é a da pós-memória. Assim, a relação entre memória e pós-memória é sempre complexa, e muitas vezes, se bem que nem sempre, implicada no, e decorrente do, trauma. O trauma em causa aqui é múltiplo embora conectado e é tanto pessoal quanto coletivo. Por um lado, temos a óbvia reflexão sobre os eventos políticos registados pelas máquinas de filmar; por outro, a busca de uma imagem da mãe, e especialmente da felicidade da mãe num dado momento de sua vida, que deve ser entendida em termos de perda, dado o seu suicídio em 1988. Mesmo que isso nunca seja explícito no filme – uma das virtudes do filme é evitar qualquer forma de sentimentalismo – foi assinalado, especialmente no Brasil. Certamente, o artigo na Vogue (3 de março de 2017), que aproveitou a oportunidade para lembrar como a Elisa Moreira Salles sempre impusera a sua elegância e estilo mesmo até ao fim, pode ser posto de lado. Mas os breves comentários da historiadora Sandra Starling em O Tempo (27 de dezembro de 2017) apontam para a importância do trauma pessoal na raiz do filme. Ao considerar o filme uma forma de homenagem filial à mãe, ela observa que “seu filho conseguiu, agora, lidar com uma dor tão intensa”. Mas o próprio Moreira Salles já deixara isso bem claro na conclusão do filme, quando fala sobre sua mãe. “Ela falou com prazer, com alegria. Com uma intensidade que o tempo roubaria dela. Ela era feliz na China e, portanto, eu gosto de pensar nela lá, quando tudo parecia possível ”(1:52).

Ambos os tipos de trauma e as duas formas de memória e pós-memória são políticos. Até mesmo Bruno Astuto, no artigo da Vogue, encerra a discussão sobre a vida na sociedade com um comentário sobre como Elisa Moreira Salles, apesar de todo o seu privilégio e riqueza, ter comentários críticos sobre as maneiras pelas quais os políticos brasileiros tentavam lucrar com suas posições, apesar da profunda desigualdade da nação, e termina com o comentário de que tais observações “não poderiam ser mais atuais”. Assim, mesmo aí, somos confrontados com o imediatismo do filme e com as questões que ele coloca, em vez de o ver apenas como uma forma de articular o passado. O filme articula o passado e fornece uma interpretação forte, na qual nos é pedido que deixemos de lado quaisquer devoções referentes a 68 de maio, a suposta solidariedade entre estudantes e trabalhadores, ou mesmo entre os próprios trabalhadores. A voz narrativa de Moreira Salles, bem como as imagens escolhidas, e para as quais o filme remete e retorna obsessivamente, também permitem aos espectadores vislumbrar os vários abismos entre estudantes e trabalhadores, mulheres e homens ou entre diferentes origens étnicas. O filme oferece uma contra-narrativa para a visão aceite e popularizada de maio de 68. Por exemplo, a meio do filme, vemos e ouvimos como Jocelyne, uma trabalhadora, não deixa dúvidas sobre o sentimento de traição por parte de outros, homens também trabalhadores e até o sindicato (1:04). E logo em seguida também vemos como os estudantes são ostensivamente e literalmente deixados de lado, tendo se tornado politicamente irrelevantes (1:05).

Javier Porta Fouz, escrevendo no diário argentino La Nación (10 de maio de 2018), oferece uma das leituras mais nítidas do filme e de sua importância tanto para o nosso entendimento dos aspetos formais do filme, assim como para o seu significado político, agora: No Intenso Agora é um ensaio de um autor brasileiro sobre política global e certas formas de memória coletiva e individual, que atuam no presente”. Um elemento distintivo da análise de Porta Fouz não é apenas o foco na memória, mas também em como o filme é uma reflexão extensiva sobre o conceito de “imagem”. Isso é relevante para estudos de cinema, certamente, mas também para estudos de memória. De fato, pode-se dizer que o resgate dessas imagens para o presente – e no caso das filmagens amadoras de Praga é uma recuperação literal, já que elas foram esquecidas no arquivo – em si já é uma representação da pós-memória que também será passada para a geração atual. Este diálogo terá múltiplas formas e já começou a tomar forma nas diferentes conversações gravadas na plataforma “Rebel Streets” (Ruas Rebeldes). O filme também traz uma profunda acusação contra a nostalgia, tanto a nostalgia que podemos sentir para com (o mito de) ‘68, bem como a nostalgia que alguns dos atores nos eventos de ‘68 em si já sentiram sobre isso (1: 44). João Moreira Salles é muito claro sobre os perigos da nostalgia, quando afirma numa entrevista recente com Nathalia Zaccaro (9 de novembro de 2017): “[a nostalgia] é uma paixão reacionária porque nega o futuro”. Porta Fouz também, mesmo que fugazmente, chama atenção para a singularidade do som neste documentário e em especial para a voz do narrador. Pode-se interpretar a entonação de Moreira Salle de várias maneiras, à medida que ele reflete sobre o passado, sobre as várias perdas, sobre a morte, sobre as imagens escolhidas, sobre como lê-las e como nos podemos alimentar delas por agora. Com este presente em mente, essa voz para mim é acima de tudo a de uma raiva, uma raiva necessária para obter força para agir agora, em vez de ficar atolado no romance do passado; inevitável, embora perfeitamente contida, é uma raiva tão surda …

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1. Comité Invisible, Maintenant. Paris: La Fabrique Éditions. 2017: 7. A tradução é nossa.

Paulo de Medeiros – Professor Catedrático no Department of English & Comparative Literary Studies da Universidade de Warwick, Reino Unido.  É investigador associado do projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC n. 648624), no âmbito do qual foi produzido este artigo.

Tempestade. Foto: Tania Pacheco

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