Cimi denuncia descaso no registro de crianças indígenas em Fórum do Conselho de Direitos Humanos

Carência de políticas transfronteiriças e de procedimentos específicos acentua negativa de reconhecimento identitário de indígenas, em especial de crianças

por Michelle Calazans, em Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) defendeu, nessa sexta-feria (30), o direito de reconhecimento e registro identitário dos povos indígenas na 11ª Sessão do Fórum sobre Assuntos Minoritários, do Conselho de Direitos Humanos, da ONU, em Genebra (Suíça). A declaração do Cimi integrou o item 4 da pauta, que tratou do direito a uma nacionalidade para pessoas pertencentes a minorias por meio da facilitação do registro de nascimento, naturalização e cidadania para minorias apátridas.

O representante do Cimi, Paulo de Tarso Lugon, argumentou que a Convenção sobre os Direitos da Criança atribui importância à obrigação positiva dos Estados de registrar todas as crianças ao nascer, como um meio fundamental para o indivíduo gozar de direitos fundamentais.

No Brasil, explicou o representante do Cimi, existem crianças indígenas que enfrentam obstáculos na obtenção do registro de nascimento. Segundo Paulo de Tarso Lugon, esse registro permite usufruir, ainda mais, de seus direitos, como saúde e educação. “O Cimi colaborou nos últimos anos na Defensoria Pública Federal no Brasil para garantir que todas as crianças indígenas fossem registradas. No entanto, estima-se que 30% das crianças Guarani-Kaiwoá permaneçam sem registro. Fatores como a falta de registro dos próprios pais, seus locais distantes e a existência de terras próximas às áreas de fronteira, agravam essa situação de apatridia, de fato”, pontuou.

De acordo o representante do Cimi, é preciso intensificar os esforços para alcançar as crianças indígenas que ainda não foram registradas, tendo em vista que a situação pode ser agravada com o congelamento dos gastos sociais por vinte anos, conforme prevê a Emenda Constitucional 95, promulgada em dezembro de 2016. Esse congelamento estabelece que os gastos federais só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada, conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Nesse sentido, é importante ressaltar que o direito à autoidentificação está previsto no artigo 231 da Constituição Federal de 1988, bem como nas regras estabelecidas na Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, também, nos artigos 2º e 3º da Resolução Conjunta CNMP/CNJ nº 03/2012.

Dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas

Segundo a Defensora Pública Estadual do Mato Grosso do Sul, Neyla Ferreira Mendes, os povos indígenas enfrentam diversas dificuldades para efetivar o registro. A interpretação da lei carregada de preconceito, por parte do Cartório, é a principal barreira nesse processo. “Com a proximidade dos centros urbanos, os indígenas se sentem empurrados na vida civil para efetivar esse registro, tendo em vista a exigência do Estado e de empresas privadas, o que inclui a busca por direitos sociais. Paralelo, existe uma dificuldade nos cartórios de executar esse registro, até porque não existe um procedimento específico para indígenas”, esclareceu.

“Na Reserva Indígena de Dourados, quando o primeiro mutirão foi realizado, ainda em 2011, cerca de 80% dos indígenas não possuíam registro”.

Neyla Ferreira Mendes explicou que no Mato Grosso do Sul os Cartórios ignoram, por exemplo, as dificuldades de acesso e de desconhecimento dos indígenas para esse registro. “Para o cidadão comum, não indígena, o registro exige apenas comprovação da nacionalidade e não possuir registro. Já no caso dos indígenas, a situação é mais complicada, pois exige acompanhamento de uma testemunha que tenha idade superior ao indígena. O que dificulta caso o registro seja de um ancião, por exemplo”, pontuou.

Além disso, apesar de a apresentação do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) ser opcional no ato do registro civil, esclareceu a Defensora Pública Estadual, o Cartório exige essa documentação como obrigatória. “Um caso emblemático no MS chama a atenção, um indígena está há quatro anos tentando efetivar o registro, sem sucesso”, lamentou.

“Esses mutirões acabaram, também, com a ideia equivocada dos povos de que deixam de ser indígenas ao efetuarem o registro”.

Para facilitar todo esse cenário de preconceito e dificuldade, a Defensoria Pública Estadual promove, desde 2011, mutirões nas comunidades indígenas. “Na Reserva Indígena de Dourados, quando o primeiro mutirão foi realizado, ainda em 2011, cerca de 80% dos indígenas não possuíam registro. Na ocasião, foram emitidos mais de oito mil registros. O próximo mutirão está previsto para ser realizado em Caarapó. Esses mutirões acabaram, também, com a ideia equivocada dos povos de que deixam de ser indígenas ao efetuarem o registro, o que não acontece na realidade”, afirmou.

 Caso emblemático

Após intensa luta do povo Akroá Gamella e da atuação do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE), em setembro de 2017, uma importante decisão foi conquistada em favor dos povos indígenas. A Juíza Titular da 1ª Vara da Comarca de Viana, Odete Maria Pessoa Mota Trovão, determinou que o oficial do Cartório proceda à lavratura do registro de nascimento das crianças recém-nascidas indígenas autorreconhecidas como da etnia Gamella que ainda estão sem registro de nascimento, devendo constar no assento o sobrenome “GAMELLA”, a declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia, sem a necessidade de apresentação do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), até julgamento final da presente ação.

Na época, antes de apreciar o pedido liminar, a juíza analisou e discorreu sobre uma série de preconceitos e vícios administrativos que são presentes na realidade de muitos indígenas. Ao prestar informações, o Cartório, como a autoridade coautora, procurou justificar a recusa sob os argumentos “de que os pais da criança não tinham sido registrados como indígenas, além de não apresentarem o RANI” e, ainda, “que o pai não portava documento que identificasse sua origem indígena e tampouco apresentava sinais indicativos deste fato, já que, na ocasião, trajava camisa e calça social”.

Além disso, o oficial do cartório esclareceu que foi orientado pela Funai para somente proceder o registro de indígena, sem a apresentação do RANI, se a informação sobre a etnia já viesse expressa na declaração de nascido vivo (DNV). A FUNAI ainda teria dito que “o registro de nascimento de indígena não poderia ser lavrado, em virtude das inúmeras fraudes ocorridas, em que pessoas que não são indígenas tentam se passar por índios”. O oficial do ato coautor afirma, ainda, que consultou outros cartórios de registro civil da Comarca de Grajaú e Viana sobre a situação e recebeu a mesma orientação no sentido de “exigir o documento comprobatório da condição de indígena, em nome da segurança jurídica do sistema e da lei de registros públicos e da Resolução nº. 03/2012 do CNMP/CNJ”.

Consta da decisão liminar que os cartórios argumentavam que a exigência de prova da condição de indígena para a lavratura do registro de nascimento é essencial para assegurar a preservação da segurança jurídica e da fé pública registral “no intuito de evitar futuras demandas acerca do ato praticado, inclusive nas disputas envolvendo terras que ocorreram recentemente no Município de Viana”.

Foto: Ruy Sposati

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