Ministério Público do DFT propõe ação contra jogo no qual ‘Bolsomito’ mata mulheres, negros, LGBTs e lideranças. Mas enfatiza ataque à “personalidade do presidente”

“Derrote os males do comunismo nesse game politicamente incorreto e seja o herói que vai livrar uma nação da miséria. Esteja preparado para enfrentar os mais diferentes tipos de inimigos que pretendem instaurar uma ditadura ideológica criminosa no país”, diz o convite para download. 

Tania Pacheco

Quase dois meses depois do primeiro turno das eleições, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, através da sua Unidade Especial de Proteção de Dados e Inteligência Artificial (Espec), decidiu ajuizar uma ação civil pública contra a empresa que comercializa o jogo Bolsomito 2K18, a Valve Corporation (Steam). O MPDFT pede a suspensão da venda e disponibilização do “game” e informações sobre seus criadores, da BS Studios.

Na apresentação, além da ênfase na importância de derrotar o “comunismo” citada acima, para acabar com as lideranças responsáveis “por alienar e doutrinar grande parte da nação”, “Bolsomito deverá enfrentar diferentes grupos que tinham como missão defender o povo, mas hoje, nada mais são que marionetes do exército vermelho”. Quem são essas marionetes que, exterminadas pelo ‘herói’, se transformam em excrementos? Apenas mulheres, negros, nordestinos, LGBTs e ‘esquerdistas’, incluindo parlamentares mulheres defensoras de direitos humanos e integrantes de movimentos sociais, esses mortos por atropelamentos.

Quando o jogo foi lançado, no dia 5 de outubro, em plena campanha eleitoral, este blog foi um dos veículos que se preocuparam em denunciar a iniciativa, convocando as pessoas a exigirem a ação do Ministério Público Federal e da SaferNet Brasil.

A mensagem divulgada sob a forma de diversão naturalizava o ódio e a violência de forma criminosa. E os comentários no site da empresa mostravam reações majoritariamente positivas às ideias de agredir, oprimir, matar os ‘inimigos’, classificados pelos fãs entusiastas como “comunistas” ou “petralhas”. Não faltavam, sequer, os fechos “Bolsonaro 2018”, replicando o 2K18 do nome do jogo.

Bem antes do segundo turno das Eleições, no dia 15 de outubro, o procurador da República Enrico Rodrigues de Freitas, que representa os Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul, entrou com ação solicitando sua imediata retirada da internet. Na Inicial da ACP, ele afirma:

Não se pretende aqui afirmar que o referido jogo seja o responsável pelos ataques adiante indicados, mas pode-se sem dúvida nenhuma afirmar que referido jogo reforça e incita essa agressão ao fazer apologia de violência e morte contra grupos minoritários da sociedade como mulheres, LGBTs e negros.

A gravidade de referido jogo, também resta demonstrada por direcionar-se ao público jovem, em especial crianças e adolescentes, os quais sofrem danos ao receber a referida mensagem de ódio em meio “lúdico”, violando também os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

São exemplos dessa concreta violência, resultado do discurso e da apologia de violência e morte contra grupos minoritários da sociedade como mulheres, LGBTs e negros, havendo que sublinhar que o “game” em comento reforça esse discurso de ódio em plena expansão no Brasil, o que lamentavelmente estimula agressões contra os não partidários do candidato, a exemplo do abaixo noticiado:” [e cita nove reportagens sobre violências e assassinatos atribuídas a eleitores de Bolsonaro]. 

A liminar não foi concedida, o que levou o procurador Enrico Rodrigues de Freitas a, já no dia seguinte, 17, apresentar um Pedido de reconsideração para imediata análise, no qual reitera a impossibilidade de intimar as duas empresas por serem ambas sediadas nos Estados Unidos; mostra diversas imagens captadas do jogo, demonstrando o nível da violência e da incitação ao ódio; e ainda acrescenta link para documento disponibilizado pelo site Conjur, através do qual advogados do então candidato Jair Bolsonaro pediam formalmente à procuradora Raquel Dodge, pelo TSE, providências em relação ao uso de seu nome. Em vão. A Justiça Federal se eximiu, e Bolsomito continuou a matar seus ‘inimigos’ e a transformá-los em excremento.

Ontem, finalmente, um fato novo: o Coordenador da ESPEC, promotor Frederico Meinberg Ceroy, do Distrito Federal e Territórios, entrou com nova ACP contra as empresas que comercializam o ‘game’. Na notícia que divulga a iniciativa, diz o MPDFT que “A Espec havia tentado suspender administrativamente a distribuição do jogo, mas não teve êxito”. E cita a ação anterior do Ministério Público Federal, esclarecendo que “a Justiça Federal entendeu que não seria competente para julgar o caso”.

Não há qualquer dúvida quanto à importância da retirada do jogo abjeto da internet. É impossível avaliar com exatidão os efeitos por ele provocados no período eleitoral, mas, como diz a Ação do MPF, já em meados de outubro atos por ele mostrados como desejáveis e vitoriosos se repetiam nas ruas de muitas cidades. A morte de Moa do Katendê é citada especificamente na peça, demonstrando a urgência de uma decisão por parte da Justiça Federal para proteger as minorias contra as quais o ódio e a violência eram (são) dirigidos.  É vergonhoso que isso não tenha acontecido.

Embora tardia, a ação do MPDFT é inegavelmente necessária, pois. E nesse sentido bem-vinda. O que nela é estranho, entretanto, é a forma como é construída a argumentação apresentada. Por tudo o que foi dito, seria de se esperar algo semelhante à ênfase com que o MPF saiu em defesa das minorias atacadas por Bolsomito. É o que marca tanto as 31 páginas da Inicial quanto as 43 páginas do Pedido de Reconsideração dos dias 16 e 17 de outubro, respectivamente. Já as 11 páginas da Ação proposta pela Espec/MPDFT obedecem a outra lógica. Argumenta a Espec, com os destaque repetidos abaixo:

“Da Violação ao Direito da Personalidade do Presidente Eleito e do Dano Moral Reflexo ou em Ricochete em Relação aos Brasileiros

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5o, inciso X, afirma que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O Código Civil, por sua vez, diz, em seu artigo 187, que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Já em seu artigo 944, o Código Civil anuncia que a indenização deve ser medida pela extensão do dano.

O Marco Civil da Internet, a seu turno, elenca como fundamentos os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais, bem como a pluralidade e a diversidade. Assegura, também, ao usuário da internet, o direito de responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades.

Não pairam dúvidas de que o jogo viola o direito da personalidade do Presidente eleito da República Federativa do Brasil e, por consequência, gera danos morais reflexos ou em ricochete em relação a todos os brasileiros.

Além disso, o jogo expõe o país, de forma negativa, no cenário internacional, ao fomentar a imagem de que o Presidente eleito é racista, homofóbico e misógino.

Defendido o “direito da personalidade” do presidente da República eleito, sobra um pequeno parágrafo para os demais personagens da história:

Da Violação ao Direito da Personalidade da Mulheres, LGBTs, Negros, Integrantes de Movimentos Sociais e Parlamentares

Conforme já exposto acima, fica claro, também, que o jogo viola direito da personalidade de mulheres, LGBTs, negros, integrantes de movimentos sociais, parlamentares federais e estaduais, além de fomentar o ódio em relação às minorias.

Só. Nada mais. Nada além e nessa ordem.

No mínimo, curioso.

Cena do jogo em que há agressão a mulheres e referência preconceituosa ao Nordeste. Imagem: Carta Capital.

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