“Se fiz algo de errado foi ajudar a colocar a terra na mão do trabalhador”

Sucessor de Dorothy Stang na luta pela reforma agrária, o padre Amaro Lopes concede entrevista pela primeira vez desde que foi preso, em março. Ele é acusado de cinco crimes pelo Ministério Público. As denúncias são encampadas pelo presidente do Sindicato Rural de Anapu

Por Daniel Camargos, Repórter Brasil

Padre Amaro Lopes de Souza, de 51 anos, ficou 92 dias preso entre março e junho deste ano. Principal escudeiro da missionária norte-americana Dorothy Stang – assassinada em 2005 quando tinha 73 anos –, sucedeu a religiosa como referência para os trabalhadores rurais sem terra que tentam a posse de áreas públicas em Anapu, às margens da rodovia Transamazônica, no Pará.

Acusado de associação criminosa, ameaça, extorsão, invasão de propriedade e lavagem de dinheiro, o padre teve habeas corpus concedido no final de junho e aguarda a decisão em liberdade condicional. Não pode celebrar missas e nem se reunir com mais de cinco pessoas. O processo contra Amaro tem a frente Silvério Fernandes, madeireiro e presidente do Sindicato Rural de Anapu. O irmão de Silvério, Laudelino Délio Fernandes, confessou ter ajudado na fuga de um dos mandantes da morte de Dorothy, mas não foi condenado.

“Eles (a família Fernandes) se dizem donos dessas terras”, afirma o padre. O processo, segundo Amaro, se deve aos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), uma bandeira de Dorothy que Amaro seguiu defendendo. O modelo consiste em assentar pequenos agricultores em lotes de terra destinando 20% para a produção e 80% para o manejo florestal comunitário, o que contraria os interesses de madeireiros. Nos últimos três anos foram 15 assassinatos de camponeses em Anapu, segundo a Comissão Pastoral da Terra.

Nascido no Maranhão, o padre conheceu Anapu em 1989, quando era seminarista e estagiou na cidade convidado pela irmã Dorothy. “Quando ela falou desse novo modelo de sociedade que estava se construindo no Anapu e contou das associações e das comunidades eu me apaixonei por aquilo”, recorda.

A decisão de ser padre, contudo, veio bem antes, em 1986, quando escutou a notícia da morte do padre Josimo Tavares, coordenador da CPT assassinado a mando de fazendeiros em Imperatriz, no Maranhão. “Aquilo me incomodou muito. Ele subindo a escadaria, os caras chegaram e meteram bala nele. Eu disse que ia entrar para o seminário, ia ser padre e ia trabalhar nessa mesma entidade que ele trabalhava. Eu nem sabia o que era CPT”.

O padre Amaro tem trejeito de quem pensa mais rápido do que fala. Não deixa pergunta sem resposta e estampa no peito sua luta. No primeiro encontro com a reportagem, em Anapu, usava uma camisa de Dom Romero, o arcebispo de San Salvador assassinado há 38 anos por defender os trabalhadores rurais de El Salvador e canonizado em outubro. Na segunda, no dia de audiência no Fórum de Anapu, quem estampava a camiseta era a foto da irmã Dorothy. Na terceira, quando a entrevista foi realizada na sede da Prelazia do Xingu, em Altamira, a camiseta era de Nelson Mandela. “Levo um ensinamento que aprendi lendo a biografia dele. Transformar toda a raiva em luta”, disse o padre.

Por que há tantos conflitos entre os trabalhadores acampados e assentados contra os grileiros, madeireiros e posseiros em Anapu?

Anapu foi projetado para ser um grande polo agropecuário. Não foi projetado para ser um local de desenvolvimento sustentável. Por que eles mataram a Dorothy? Mataram porque ela batalhou pelos Projetos de Desenvolvimento Sustentáveis (PDS).

O seu principal acusador é o Silvério Fernandes, presidente do Sindicato Rural de Anapu. Ele acusa o senhor, entre outras denúncias, de liderar uma organização criminosa para invadir as terras na cidade…

A família Fernandes fez parte do consórcio que matou a Dorothy [Laudelino Délio Fernandes foi apontado como facilitador da fuga de Vitalmiro Matos de Moura, o Bida, um dos mandantes]. Eles [os Fernandes] se dizem donos dessas terras. Qual a raiva que se tem? É que o PDS foi criado dentro da área que o Délio tinha vendido para o Taradão [Regivaldo Pereira Galvão, que foi condenado como o outro mandante da morte de Dorothy]. O Taradão vendeu para o Bida e eles mandaram matar a Dorothy. Esse consórcio matou a Dorothy.

O que o senhor tem a dizer sobre a acusação de liderar uma organização criminosa?

Achei interessante quando o Francisco (uma das testemunhas de defesa no processo do padre) estava dando depoimento. Ele é um professor e me conhece há 30 anos e disse: “Eu não conheço o Amaro que vocês estão pintando”. Se eu fiz alguma coisa de errado foi encaminhar o povo para buscar seus direitos no Ministério Público, na Defensoria Pública e em outros órgãos, pois muitas das vezes as pessoas eram ameaçadas, eram mortas e ficava por isso mesmo. A delegacia de polícia de Anapu nunca gostou de trabalhador. Tem um peso e duas medidas. Isso a gente denunciava. Por que aconteceu isso com a Dorothy? Por que aconteceu comigo? Por que tem a retaliação em cima da CPT e das irmãs? É porque nós não conseguimos nos calar diante das injustiças. Se eu fiz algo de errado foi ajudar a colocar a terra na mão do trabalhador e da trabalhadora.

O senhor teme ser assassinado, como aconteceu com a Dorothy?

Eu desconfio que eles armaram para me matar dentro da cadeia. Fiquei 92 dias preso. Quando eu cheguei lá o Taradão estava lá dentro. Foi ele que me deu Feliz Páscoa primeiro. Eu não disse nada e nem estendi a mão. Ele disse: “Você é inocente. Eu sou inocente. Foi uma coisa que armaram para nós”. Nas quatro vezes que a gente se cruzou ele falou isso para mim. Quando saiu o habeas corpus dele ele disse: “Padre, clareou para mim e vai clarear para você também”. Quando ele saiu passou na frente da minha cela e se despediu. Naquele período que eu estava ali houve rebelião em Belém, Itaituba, Marabá e não houve aqui, em Altamira. Só teve depois que eu saí. Eu desconfio que eles me matariam durante a rebelião.

Além da denúncia de liderar as invasões, o senhor também foi acusado pela polícia civil de assédio sexual. Chegaram a espalhar um vídeo íntimo do senhor. Foi uma tentativa de assassinato moral?

Eu, com 51 anos, se quisesse fazer alguma coisa não ia fazer isso filmando. Foi difícil, mas quem me conhece, como os próprios bispos, entenderam e disseram que não queriam ouvir falar nisso. A promotora, inclusive, tirou isso da acusação feita pelo delegado do processo. Eles pensaram que o pessoal da cidade ia ficar revoltado comigo. Você viu como é o povo comigo lá em Anapu? [no dia da segunda audiência, quando chegou na porta do Fórum, o padre foi abraçado por várias pessoas da cidade]. Eu tenho ciência dos meus atos. Quando terminar esse negócio eu quero entrar com pedido de danos morais.

Enquanto o senhor estava preso o irmão de Silvério, o Luciano Fernandes, foi assassinado em Anapu. A família chegou a atribuir a morte ao senhor, apesar da investigação da polícia descartar essa hipótese…

Em momento algum eu chorei quando fui preso. Aquele monte de carro que levaram para me prender como se eu fosse um bandido. Colocaram o nome na operação de “Eça de Queiroz” [escritor português autor do clássico “O Crime do Padre Amaro”] para dar aquela visibilidade. Doído foi ficar sentado no balde, desses de margarina, que é baixo e deixa o joelho dolorido, e ainda escutar o Silvério dizer que tinha certeza que eu que tinha mandado matar o irmão dele.

Silvério gravou um vídeo no dia da morte do irmão (20 de maio) pedindo ajuda ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro e relacionando a morte com conflitos com a disputa por terra…

Ele queria nos prejudicar de uma forma ou de outra. Primeiro ele jogou a questão moral, a promotora tirou e não colou. Depois ele jogou essa.

A acusação do MP diz que o senhor recebeu depósitos na sua conta. Há quem diga que o senhor teria chantageado adversários. Isso aconteceu?

Quando fui preso, eu tinha R$ 330 na minha conta. No início aqui em Anapu eu ganhava quatro salários, com plano de saúde. Pelas contas que o advogado fez era para eu ter mais patrimônio. Depois caiu para dois salários e tivemos que pagar pelo plano de saúde. Nunca recebi dinheiro da mão desse homem, do Silvério Fernandes. A questão deles é para dizer que era uma organização criminosa.

E a acusação de invasão de propriedade?

Nesses anos que estou no Anapu o pessoal ocupou terra sim. Mas se alguém disser que eu liderei é mentira. A Comissão Pastoral da Terra é uma entidade ligada à igreja católica. O papel nosso é dar assessoria aos trabalhadores e trabalhadoras rurais em qualquer tipo de situação em que eles estejam. O trabalho da CPT é dar assessoria e mostrar que o pessoal que ocupa uma terra pública da União tem direito a um pedaço de terra para trabalhar. O papel da CPT é esse, dar formação. O papel não é fazer por eles, mas ajudá-los a andar com seus próprios pés.

Qual o papel do senhor nesse movimento?

Vou te dar um exemplo. Você conheceu a Mata Preta [projeto de assentamento em Anapu]. Lá eram quatro glebas de terra na mão de um senhor apenas. Agora são 260 famílias. Até eles conseguirem ficar lá as casas foram queimadas várias vezes. É duro chegar, ver um pai de família dentro do capim com seus filhos, a casa queimada, ainda fumaçando e ao olhar para a sede ver que lá dentro está cheio de guachebas (pistoleiros). Eu fui lá tentar mediar. Naquele momento eu sabia que podia ter pegado uma bala, mas naquela hora de descaso e tristeza, superei tudo e fui conversar com os guachebas, que ficaram de deboche. Eu disse para eles: “mas se está na justiça porque vocês fazem uma covardia dessas?”. Eles responderam que a terra não era deles. Eu disse: “Está na justiça! Se a justiça disser que é do patrão de vocês tudo bem”.

Qual a estratégia para lidar com o governo do presidente eleito Jair Bolsonaro? Ele quer a aprovação da lei para criminalizar os movimentos sociais que lutam por reforma agrária.

Vamos sentar, a CPT e todas as entidades e ter paciência, resistência e união. Temos que dar as mãos independente da sigla de cada unidade. O girassol quando nasce durante o dia procura o sol. No momento de frio, quando o sol não aparece o que ele faz? Ele vira um para o outro, se aquece e não morre. Será que não estamos olhando cada um para um lado e defendendo a própria bandeira ou entidade? O momento é de juntar e partir para a luta. Acreditar na vida mesmo quando todos desacreditam. Resistir aonde quer que você esteja. Acreditar no pequeno, pois eles têm suas estratégias de luta e resistência. Muita coisa que vem de cima, nos pacotes, não tem sustentabilidade e nem se segura. Quem segura é quem está na base.

A irmã Dorothy assassinada, o senhor preso, 16 assassinatos de trabalhadores que lutam pela terra em três anos. Vale a pena essa luta toda?

Vale. Você nem imagina. Quando começou a construção dessa barragem [Belo Monte] veio muita gente, muitos ficaram na rua, pedindo comida. De repente essas pessoas acharam um pedaço de terra. Se for para morrer defendendo esse povo eu acho que estou pronto.

Imagem: Padre Amaro e Dorothy Stang: quando a Igreja questiona os poderosos

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