A Vênus hotentote, o seu público e a ciência

Por Vasco Luís Curado, no Buala

Em 2002, a África do Sul recuperou os restos mortais de Sarah Baartman, para lhe dar um funeral na sua terra natal. Durante mais de 150 anos, estes despojos, um esqueleto e alguns órgãos conservados em formol, não foram tratados como os restos de uma pessoa cujos direitos são defendidos por leis universais, mas sim como peças zoológicas de museu.

 O que alterou o destino político de Sarah Baartman, entre 1815, data da sua morte, e 2002? Os impérios coloniais não conquistaram a sua supremacia só porque possuíam um armamento superior, fanatismo religioso e cobiça de lucro. Procuraram também o aval da Ciência, que era um braço intelectual do poder político que enformou o predomínio da civilização europeia sobre todos os continentes. Durante séculos, as ciências gerais e, de modo mais evidente, as ciências naturais, mais não fizeram do que reafirmar os preconceitos da mentalidade vigente. De quem é o olhar que espreita por meus olhos?, pergunta o sempre inquietante Fernando Pessoa. Perguntamos nós: de quem era o olhar do biólogo que espreitava pela lente do seu microscópio? Julgando estudar as “raças”, o biólogo ajudava a validar formas de poder. O seu olhar era o do Marquês de Sá da Bandeira impulsionando a colonização do Sul de Angola; era o de Bismark anfitrião da Conferência de Berlim; o de Cecil Rhodes traçando a estrada do Cabo ao Cairo.

A mente humana não é objetiva, isso até as ciências que se diziam “duras” assumiram ainda antes do fim dos impérios coloniais. A Ciência muda, graças à seriedade do seu próprio labor, os sistemas políticos mudam, fruto do processo histórico, e ambos os domínios se influenciam e validam reciprocamente.

Sarah Baartman fora trazida da África Austral em 1810, do povo de pastores então conhecido como hotentote, para ser exibida numa feira de curiosidades e aberrações em Londres, sob o título A Vénus Hotentote. O qualificativo aberrante devia-se ao facto das ancas e nádegas de Sarah Baartman serem proeminentes (esteatopigia) e os pequenos lábios da vulva alongados (macroninfia). Hendrick Cezar, um africânder, o seu dono que tentava passar por seu sócio mostrava-a a um público pagante como se Sarah fosse uma selvagem aparentada com o orangotango ou o gorila e que ele tinha de aprisionar numa jaula, acorrentada, a toque de chicote. Alegadamente, ele afirmava, que dividiam os lucros. Um tribunal inglês tentou averiguar se Sarah era uma escrava de Cezar e este, indignado, perguntava porque é que o gigante polaco e os anões irlandeses da tenda ao lado da sua não eram alvo da mesma atenção judicial. Profissional da indústria do espetáculo, ele oferece ao público europeu o que este quer ver ou julga existir, uma selvagem africana, semi-humana, semi-animal.

Em Paris, um novo sócio engendra espetáculos cada vez mais lúbricos, explorando as fantasias sexuais de um novo público. Cuvier, o grande naturalista, examina o espécime, estuda as suas características morfológicas, estabelece um parentesco entre Sarah e os grandes primatas, vê-a mais próxima destes do que dos humanos. Sai reforçada a teoria da superioridade da raça caucasiana, que tem assim o direito (e o dever) de colonizar as raças inferiores.

Declinando no alcoolismo e na prostituição, também aqui joguete das fantasias de um público, Sarah volta, agora cadáver, ao laboratório de Cuvier, que lhe extrai os peculiaríssimos órgãos genitais e o cérebro, juntando-lhes um molde em gesso do corpo, em tamanho natural, e o esqueleto. Fabrica estas representações científicas para ilustração do aluno de laboratório ou do visitante de museu.

Chamar-lhe Vénus era já uma das muitas distorções que o mundo do espetáculo e a ciência da época tinham aplicado a Sarah. E acrescentar hotentote mostrava também como o europeu via o resto da Humanidade em função de si próprio: aquela palavra é uma onomatopeia que designa uma espécie de gaguez, porque os nativos africanos assim designados pareceram, aos primeiros colonizadores, ser gagos; ou talvez seja a fixação de alguns sons comuns da sua língua, que soavam como “hot on tot”. Desde que a Europa fez por se desalojar da posição que tinha concedido a si própria, a de centro do mundo, chamamos khoikhoi ao grupo étnico de que Sarah Baartman fazia parte, porque este próprio assim se designa, e khoisan à sua língua, porque é esse o nome que os khoikhoi lhe dão. Já não são gagos, ou melhor, nunca o foram. Numa era pós-colonial, dizer khoikhoi implica começar a ver os elementos desta população como eles se veem a si próprios.

O Museu do Homem, em Paris, já não exibia os despojos mortais de Sarah Baartman desde 1974 (e o molde em gesso desde 1976). Guardava-os numa cave. Quantos objetos estarão em caves e armazéns dos museus, recusados pelas novas leis e as novas ciências? A cave é o lugar do Inconsciente, do reprimido, do censurado, do que deve ser retirado das vistas do estimável público. Sarah Baartman, devolvida à sua terra, já não tem um público.

Deve haver ainda muitos esqueletos guardados em armários e caves de museus. Essas são outras e intrigantes coleções, as que já não são ou nunca foram vistas pelo público.

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Eu.

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