Indígena foi preso durante truculenta ação da Força Nacional na reserva Tey’i Kue. Fazendeiros e jagunços que mataram seu filho em 2016 permanecem livres
por Tiago Miotto, em Cimi
Na manhã desta quinta (13), durante truculenta ação policial, o Guarani Kaiowá Leonardo de Souza foi preso na reserva Guarani e Kaiowa de Tey’i Kue, em Caarapó (MS). Leonardo é o pai de Clodiodi Aquile de Souza, jovem indígena assassinado no local em 2016, durante o ataque paramilitar realizado por fazendeiros que ficou conhecido como Massacre de Caarapó, que ainda deixou outros seis indígenas feridos por armas de fogo.
O indígena foi preso pela Força Nacional e levado para a sede da polícia federal de Dourados, onde permanece até agora. Familiares e integrantes da comunidade de Tey’i Kye, onde vivem mais de cinco mil indígenas, denunciam a truculência policial da ação. Os indígenas relatam que a polícia utilizou bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta e, além disso, matou o cachorro de uma das filhas de Leonardo.
Segundo Apyka Rendy, liderança Kaiowá, a comunidade está revoltada por considerar que a ação foi desproporcional e injusta. “Essa operação foi uma prestação de contas dos policiais aos fazendeiros, porque eles foram presos após o assassinato”, avalia o indígena.
“Estamos muito preocupados com a forma como eles chegaram, usando violência. Na mídia, disseram que a comunidade resistiu, mas na verdade eles assustaram todo mundo”, prossegue Apyka Rendy.
“Não comunicaram as lideranças e não teve presença da Polícia Federal. Um mês atrás, a Força Nacional nos disse que estaria aqui para apaziguar a região, e agora faz isso. Ficamos sem ter em quem confiar para fazer nossa segurança”, preocupa-se o indígena.
Truculência
Kunumi Kusua Vera, um dos filhos de Leonardo, conta que o spray também foi usado contra crianças, inclusive seu irmão e sua irmã mais jovens, de doze e treze anos, que moram na casa de seus pais.
“Os policiais chegaram entrando na casa, sem apresentar mandado, apontaram arma para minha irmã. Espalharam pela casa roupas, documentação, e na saída ainda mataram o cachorro da minha irmã atropelado”, relata.
Ele também relata que que seu irmão, que possui deficiência mental, foi tratado de forma violenta pela Força Nacional. “Meu irmão estava deitado na cama. O policial mandou ele levantar, mas ele não entendeu, e aí eles derrubaram ele no chão. E depois de tudo isso, na saída, disseram: ‘vamos embora, depois a gente volta acabar com essa família’”.
Pai de indígena assassinado preso, assassinos soltos
Leonardo de Souza, ex-capitão da reserva de Tey’i Kue, foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos crimes de tortura de policiais, cárcere privado qualificado, roubo qualificado, sequestro, dano qualificado e corrupção de menores.
As acusações se referem ao conflito ocorrido entre indígenas e policiais depois do ataque que resultou no assassinato de Clodiodi e deixou diversos outros indígenas feridos, seis deles por armas de fogo e cinco dos quais com gravidade.
O próprio Kunumi Kusua Vera, irmão de Clodiodi, ficou um mês internado no hospital, em estado grave, e ainda carrega em seu abdômen o projétil que o atingiu durante a ofensiva.
O ataque iniciou na manhã do dia 14 de junho e envolveu ao menos 70 fazendeiros e pistoleiros uniformizados, mascarados e munidos de armas de fogo de diversos calibres e espingardas carregadas com balas de borracha. A milícia havia sido organizada pelos fazendeiros para retirar à força os indígenas das retomadas feitas em propriedades no entorno da reserva, as quais incidem sobre a Terra Indígena Dourados-Amabaipegua I. O relatório de identificação e delimitação da área acabara de ser aprovado pela Funai, o que foi tratado pelos ruralistas como uma afronta.
O MPF, por meio da força-tarefa Avá Guarani, chegou a obter a prisão preventiva dos proprietários rurais denunciados por envolvimento no massacre de Caarapó. Os fazendeiros Dionei Guedin, Eduardo Yoshio Tomonaga, Jesus Camacho, Virgilio Mettifogo e Nelson Buainain foram presos em agosto de 2016, mas foram soltos em novembro do mesmo ano por decisão do TRF-3. Desde então, respondem ao processo em liberdade.
Após o massacre, os indígenas, revoltados, mobilizaram-se e realizaram novas retomadas em sedes de fazendas lindeiras à reserva. Em meio à agitação, alguns deles entraram em confronto com policiais que se encontravam dentro do território. Uma viatura acabou incendiada e os policiais, acusados pelos indígenas de conivência com os fazendeiros, foram capturados e, após negociação com o corpo de bombeiros, liberados.
Ao contrário do que aponta a denúncia contra Leonardo, entretanto, lideranças e familiares negam que ele estivesse envolvido no conflito com a polícia.
“Essa acusação contra ele é injusta. Ele é morador antigo dali, nunca pensou em fazer mal para ninguém. Só que resolveram colocar no nome dele. Meu irmão foi baleado na retomada e o fazendeiro está solto. Foi preso, mas logo saiu. Agora, parece que acusam meu pai de ter feito algo mais grave do que terem matado meu irmão”, indigna-se Kunumi Kusua Vera.
“Eles querem achar um culpado. O filho dele está morto e ele está pagando por tudo que aconteceu, enquanto os brancos estão soltos”, complementa Apyka Rendy.
Saúde e segurança
Os indígenas buscam auxílio da Defensoria Pública da União (DPU) e temem pela saúde e pela segurança de Leonardo, caso ele seja enviado para o presídio.
“A maior preocupação é se mandarem ele para o presídio público. Tememos que façam algo com ele, pela situação de conflito aqui na região”, explica Apyka Rendy.
Outra preocupação é com a saúde de Leonardo, que tem 57 anos e, segundo seu filho, utiliza medicação diária para diabetes e pressão alta, além de ter desenvolvido depressão depois do assassinato de Clodiodi.
“A gente já perdeu uma parte da nossa família e agora pode perder meu pai, e ainda por cima acusado de uma coisa que ele não fez”, lamenta Kunumi Kusua Vera.
Confira a linha do tempo com os acontecimentos que antecederam e sucederam o massacre de Caarapó (clique aqui).
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Velório de Clodiodi. Foto: Ana Mendes/Cimi