Comunidades tradicionais de Paraty são submetidas a “safári econômico”, diz procurador do MPF

Ministério Público Federal move ação contra o luxuoso condomínio Laranjeiras para obrigá-lo a respeitar o direito de ir e vir dos moradores caiçaras. Multa por descumprimento é R$ 5 mil por dia

Por Gabriele Roza, na Pública 

O Ministério Público Federal (MPF) moveu ação civil pública, na segunda-feira (10), para evitar que o luxuoso Condomínio Laranjeiras no município de Paraty, litoral do Rio de Janeiro, continue impedindo o acesso de populações tradicionais a três praias da região.

Em novembro 2017, a Pública revelou e documentou o histórico de segregação, ameaça e processos contra moradores feitas pelo condomínio no Especial Coleção Particular. Localizado na área de proteção ambiental federal APA de Cairuçu, o condomínio isola duas comunidades tradicionais caiçaras, do Sono e Ponta Negra, com aproximadamente 600 habitantes. A propriedade é a única passagem acessível para as comunidades. Para irem a Paraty, os moradores precisam passar por dentro do condomínio, mas a circulação a pé é proibida e cercada por correntes e seguranças, só é possível sair com a kombi oferecida pelo Laranjeiras que transporta também os turistas.

“A utilização de kombi por condomínio de elevado padrão econômico para transporte dos caiçaras traduz significativa expressão de violação de direitos fundamentais. A população caiçara disputa espaço com turistas em pequena kombi para poder levar suas compras mensais para casa”, diz o documento do MPF. “Há uma constante, insistente e impositiva restrição do direito constitucional de ir e vir”, concluiu a Ação Civil.

Inaugurado na década de 70, o condomínio, que tem mais de 150 mansões, é uma área usada por políticos e grandes empresários. Acionistas do banco Itaú, como Alfredo e Rose Setubal, e sobrenomes que remetem ao poderoso grupo Votorantim, como Fábio Ermírio de Moraes e Ana Helena Moraes Vicintin, ou mesmo Alberto Sicupira, um dos todo-poderosos da Ambev, têm casas ali. Luiz Nascimento, da holding Camargo Corrêa, envolvido em escândalos da Operação Lava Jato, é outro frequentador do condomínio.

O procurador da República Ígor Miranda da Silva pede na Ação Civil que a Justiça obrigue o Condomínio Laranjeiras a respeitar o direito de ir e vir dos moradores. Caso o condomínio continue impedindo o livre acesso à praia, terá que efetuar o pagamento de uma multa diária de R$ 5.000 até o limite de R$ 5 milhões. O MPF também requer a Superintendência do Patrimônio da União no Estado do Rio de Janeiro medidas administrativas para concessão do Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) e Cessão de Direito Real de Uso (CDRU) das populações caiçaras.

Em entrevista para a Pública, o procurador explica as propostas do MPF e conta a história de violação do condomínio. “A situação no condomínio laranjeiras ultrapassa limites e beira o surreal. Os moradores são sujeitados a uma espécie de safari econômico”, diz ele.

Qual é o histórico do Condomínio Laranjeiras e da região?

Eu estou há dois anos lotado em Paraty e desde o início fui procurado pela população, especialmente a população de Caiçara da Praia do Sono e Ponta Negra, que reclamava da dificuldade de acesso a sua residência e da resistência por parte do Condomínio Laranjeiras. A população caiçara tem um histórico de luta para estabelecer e permanecer em sua terra, desde a década de 70, quando foi estabelecida naquela região o condomínio. Mas, recentemente, houve uma Ação Civil Pública onde se debateu exclusivamente o acesso à praia, para que fosse exercido o direito constitucional. Essa ação de 2009 dizia respeito ao acesso à praia, ela não tratava da população caiçara, ela tratava do uso da praia, para qualquer cidadão, para turistas. No bojo dessa ação, foi feito um acordo, mas a população caiçara não foi plenamente consultada, como determina a Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre sobre povos indígenas e tribais]. Nós chegamos a tentar realizar algumas conversas com o próprio condomínio, mas não avançaram muito. Verifiquei também que o próprio acordo em si não é integralmente comprido. Em virtude disso, nós avisamos essa Ação Civil, que entre alguns pedidos tem a questão do livre acesso e a acessibilidade da população caiçara.

Quais são as dificuldades dos moradores?

A saída viável acessível dos moradores de suas casas é pelo cais, onde o serviço de kombi que o condomínio coloca ali dificulta bastante a locomoção. Há um quadro de criminalização da população tradicional. Já houve o caso de uma mãe que tinha que sair pra buscar o filho, uma questão pessoal sensível, e foi detida, recebeu uma representação por crime de invasão de domicílio e outras medidas judiciais.

Leia também: Condomínio Laranjeiras: segregação ameaças e processos em Paraty

Os processos contra moradores por ‘invasão’ ainda tramitam?

Sim, tramitam na Justiça comum de Paraty, mas o Ministério Público Federal vai requerer o declínio de competência para a Justiça Federal.

Como enxerga a resistência do condomínio em relação ao acesso do caiçaras?

Eu enxergo com naturalidade, mas com naturalidade no sentido que nós vivemos em um país onde diversos direitos fundamentais são historicamente violados há séculos. É usual essa resistência. Não é exclusiva no caso do Condomínio Laranjeiras e da população Caiçara, que está travada sua saída em razão desse condomínio. Compete ao poder judiciário fazer o seu papel e efetivar esses direitos. E de todo modo, a situação no condomínio laranjeiras ultrapassa limites e beira o surreal. Os moradores são sujeitados a uma espécie de ‘safári econômico’, onde de forma constrangedora, menos favorecidos são transportados em Kombi antiga enquanto visualizam a realidade imponente dos condôminos. Ao passo que um direito básico, a liberdade de locomoção, é sensivelmente cerceado.

Seguindo o trajeto pela estrada que leva ao condomínio, começam a aparecer placas na mata com os dizeres “Propriedade particular: Condomínio Laranjeiras”. Foto: Júlio César Guimarães /Agência Pública

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