Agressões filmadas por cinegrafistas amadores viralizam e muitas vezes se tornam peças importantes nos processos judiciais
Bruno Vinicíus, Camila Queiroz, Gabriella Leal, Juliana Aguiar, Luane Ferraz e Thiago Santos, da Agência Pública
“É esse que vai levar o tiro primeiro?” A bala que atingiu a virilha do estudante Edivaldo da Silva Alves, de 19 anos, conhecido em sua comunidade como “Pretinho” veio com aviso prévio. Era manhã de 17 de março de 2017. Dia de manifestação em Itambé, Zona da Mata Norte de Pernambuco. Os moradores se reuniram para reivindicar mais segurança na cidade que sofria constantemente com assaltos, furtos e criminalidade.
Assim como a maioria, Edivaldo estava insatisfeito com a situação e chamou os amigos para participar do ato na rodovia estadual PE-75. O protesto chamou a atenção dos policiais, que chegaram em viaturas para fazer a segurança e conter a multidão. Os ânimos estavam exaltados. O tom era de confusão, gritos e resistência. De repente, ouve-se a voz de um dos policiais ordenando o tiro e o som alto do disparo. Uma bala de borracha atinge a virilha de Pretinho, em uma proximidade suficiente para se tornar letal. O corpo ensanguentado é arrastado, agredido e jogado na carroceria de uma viatura pelos policiais. Edivaldo perdeu muito sangue. Passou os últimos 25 dias de vida internado no Hospital Miguel Arraes, em Paulista, no Grande Recife, mas não resistiu ao ferimento.
A pluralidade de sons, o agito, a rodovia interditada, pneus queimados e o tiro que atingiu Edivaldo foram registrados pelo celular de um dos manifestantes que pediu para não ser identificado. Sem saber, o cinegrafista amador produzia a principal prova do ocorrido. A partir da documentação em vídeo, foi possível judicializar o caso. O processo contra os policiais envolvidos segue na justiça mas a família conseguiu, um ano depois do ocorrido, um acordo de reparação com o estado de Pernambuco. Segundo a Procuradoria Geral de Estado, a indenização versa sobre danos morais e pagamento de pensão aos pais do jovem por danos materiais. Com o dinheiro, a família comprou uma casa e construiu um memorial com fotos de Edivaldo. Além disso, foi oferecido um investimento social de R$ 200 mil na cidade em ações sociais, a partir de sugestões apresentadas pela família de Edvaldo e analisadas tecnicamente pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de Itambé.
A casa da família de Edivaldo parou no tempo. Quem entra nela pode sentir a dor que permanece depois de um ano seis meses do ocorrido. O vídeo de Itambé foi veiculado no Youtube, reproduzido no WhatsApp, republicado no Facebook e assistido na televisão. Se tornou denúncia mas também eternizou o momento da morte de Pretinho para aquela família e para milhões de pessoas.
Em Salvador, o vídeo de uma mulher grávida sendo agredida viralizou
Em Salvador (BA), o cenário já conhecido pelas câmeras de televisão vai se revelando em uma caminhada pela Praça do Forte de Santo Antônio Além do Carmo. Foi ali o palco principal da violência policial sofrida por Emannuela*, de 34 anos, moradora de uma ocupação próxima ao local, grávida de três meses na época. Era 03 de junho deste ano e a baiana estava na Praça junto a amigos e familiares quando presenciou um jovem menor de idade ser abordado pela polícia e então ser agredido até desmaiar sob a justificativa de que portava um cigarro de maconha. Emannuela foi tentar defender o jovem e acabou sendo também agredida e arrastada pela calçada da praça. O momento foi registrado por uma pluralidade de dispositivos móveis erguidos por aqueles que assistiam o abuso policial e depois reproduzido à exaustão por diversas emissoras de televisão de todo o país. Temendo represália, Emmanuela não quis seguir com o processo. Sentindo-se vigiada pelos policiais que estavam no dia da agressão e passaram a marcar presença em sua comunidade, a ocupação Santo Antônio Além do Carmo, decidiu abandonar o telefone celular e se mudar com as duas filhas e o bebê que está por nascer. Os moradores da ocupação confirmaram os constantes ataques, a abordagem violenta e a exposição que sofreram e ainda sofrem por parte da polícia, que registra rostos, marcas, características de cada um. O celular, usado como arma de denúncia por parte de quem sofre com a violência policial, serve a diferentes propósitos.
Arma contra a violência policial
Uma região. Dois Estados. Dois casos diferentes. A mesma violência, a mesma arma usada como denúncia: o celular. As filmagens do caso Itambé e Salvador foram disponibilizadas no Youtube e, até o fim da reportagem, atingiam 21 mil visualizações e mais de 60 mil reproduções. Em uma pesquisa rápida no Youtube por “violência policial” é possível identificar mais de 100 vídeos gravados como forma de denúncia por cidadãos comuns. Espancamento, humilhações e mortes de pessoas quase sempre negras, pobres e periféricas. “O corpo morto do favelado é um corpo pornográfico que aparece exposto no chão, ensanguentado, espetacularizado. A imagem do corpo pobre é a mais violada” diz a professora e pesquisadora em análise do discurso audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Cristina Teixeira. Imagens que são também a síntese dos números estatísticos, como aponta a dissertação do mestrado em Ciência Política “Racismo institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição (2006)”, do pesquisador Geová de Barros, da Universidade Federal de Pernambuco. A pesquisa mostra que 60% dos policiais assumem que pretos e pardos são priorizados nas abordagens.
Produção ordinária das imagens
Para Cristina Teixeira, o uso do celular para filmar a violência policial atua como um mecanismo não só de defesa, mas de contra-ataque: “É um movimento de guerrilha que você tem com os celulares, a possibilidade de com imagens mais caseiras registrar esse momento de violência e talvez utilizar como prova. O celular entra como uma arma mesmo” diz. Já o cineasta e mestrando em comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pedro Severien, acredita que é preciso cautela na comparação: “Existe uma comparação entre uma arma e uma câmera, em um sentido filosófico, mas é importante a gente não heroicizar essa câmera. Existe uma assimetria entre uma câmera e uma arma. Muitas vezes, o ato de você gravar não inibe que um acontecimento grave aconteça, como a própria morte”, comenta. Ainda assim, a câmera se torna um ato político nas mãos de quem filma, segundo o cineasta: “O fazer essa imagem, com a função social e o entendimento político sobre um processo e colocar essa imagem a público dá a ideia de que uso daquilo é político. O ato de filmar uma ação policial não vai impedir que aquela pessoa seja agredida, mas serve de instância de midiatização contra aquilo que é aceito ou até mesmo desejado”.
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Arte: A Pública