Na prática, medida autoriza pulverização de veneno ao lado de casas, escolas, rios e mananciais; acidente que vitimou em novembro quase cem pessoas, entre elas mais de 50 crianças, não teria nenhuma consequência pela nova regra
Rafael Moro Martins, Agência Pública/Repórter Brasil
A menos de 20 dias do fim do mandato da governadora do Paraná, Cida Borghetti (PP), uma resolução assinada por três secretários e os presidentes de duas autarquias estaduais revogou uma norma em vigor desde 1985 que estabelecia que agrotóxicos não podem ser aplicados a uma distância inferior a 50 metros de casas, escolas, unidades de saúde, rios, mananciais de água e outras culturas que podem ser danificadas pelo veneno.
Na prática, isso quer dizer que, desde o dia 12 de dezembro, qualquer agricultor pode pulverizar agrotóxico com trator ou equipamento costal – isto é, acoplado às costas do trabalhador rural – até o limite de suas plantações, ainda que ao lado delas estejam moradias ou escolas.
Dito de outra forma, um acidente como o que ocorreu no início de novembro em Espigão Alto do Iguaçu, em que quase cem pessoas (52 delas crianças) foram envenenadas com um agrotóxico potencialmente fatal, não teria nenhuma consequência se ocorresse hoje.
“É uma aberração”, disse à Pública o promotor Alexandre Gaio, coordenador regional do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo do Ministério Público (MP), que recorreu à Justiça dois dias depois de ter sido publicada a nova resolução.
Com a revogação da Resolução 22/1985, uma única norma – federal – passa a proteger moradores e o meio ambiente vizinhos a áreas de plantio com agrotóxicos: a instrução normativa 02/2008, do Ministério da Agricultura. “Mas ela trata só da pulverização por aeronaves. Ou seja, a aplicação com trator ou equipamento costal está totalmente liberada sem margens de segurança”, lembrou o promotor.
O acidente em Espigão Alto do Iguaçu, cabe lembrar, foi causado por uma aplicação descuidada feita com um trator.
“Carta branca para pulverizar onde quiser”
A Resolução Conjunta 001/2018 é enxuta. No primeiro artigo, cita uma série de normas federais, estaduais e da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que farão “a regulação correspondente ao uso e manuseio de agrotóxicos” no Paraná. No segundo, determina que “fica revogada a Resolução nº 22, de 05 de julho de 1985”.
O problema é que nenhuma das normas citadas trata de distâncias mínimas para aplicação de agrotóxicos, justamente do que tratava a Resolução 22/1985. “Com a simples revogação dela, deixaram a população totalmente descoberta. É mais do que um ilícito, é totalmente intolerável. Hoje, qualquer um pode pulverizar em cima de casas que não há ilícito previsto”, explicou o promotor Gaio.
“Na prática, [a nova regra] deu carta branca [ao agronegócio] para pulverizar onde quiser. E isso ocorreu mesmo depois de o MP ter feito uma recomendação administrativa [ao governo do estado] de que deveria ter discutido o assunto com toda a sociedade, inclusive com a saúde pública”, ele prosseguiu.
No material que distribuiu para celebrar o que chamou de “modernização das normas de uso e manejo de agrotóxicos”, o governo de Cida Borghetti deixa claro que “a mudança é resultado de um amplo processo de diálogo entre instituições do estado e entidades privadas ligadas à agricultura, que pediam a revogação de uma normativa de 1985, já superada por outras regulamentações”.
Na verdade, nenhuma norma posterior supre o papel da Resolução 22/1985, como deixou claro o promotor Alexandre Gaio.
Diálogo, só com o agronegócio
O governo ressalta a participação da Federação da Agricultura do Paraná (Faep), que “fez parte do grupo de trabalho que discutiu a modernização das normas nos últimos anos e subsidiou os debates com uma análise técnica e jurídica que detalhava a situação e concluiu que a Resolução nº 22, de julho de 1985 é sobreposta a outras leis, pois existe ampla legislação que aborda a poluição por agrotóxicos, atendendo aos conceitos atuais e ao determinado pela Constituição”.
Em junho passado, o MP enviou correspondência ao Instituto Ambiental do Paraná (IAP) pedindo “a inclusão de representantes da sociedade civil no estudo, revisão e aplicação da Resolução 22/1985”, e “a realização de consulta pública para manifestação de interessados”. Na resposta, que chegou aos promotores apenas em outubro, o IAP disse que não acataria a recomendação – sem incluir nenhuma justificativa para tanto.
“Não fomos convidados a participar. Tampouco a academia foi”, disse o advogado Aristides Athayde, vice-presidente de uma organização chamada Observatório de Justiça e Conservação.
A Faep, que celebrou a norma que acabou com margens de segurança para aplicação de agrotóxicos como “mais um passo em direção à modernização da regulamentação dos defensivos agrícolas (sic)”, homenageou a governadora Cida Borghetti por sua “contribuição com o agronegócio” num evento realizado dois dias após a publicação da norma que enterrou a Resolução 22/1985.
A reportagem perguntou à Faep – presidida desde 1991 por Ágide Meneguete, um dos mais longevos dirigentes sindicais do país – quais estudos científicos embasaram sua análise pela extinção da Resolução 22/1985. Não houve resposta.
Um gabinete ruralista
Tal qual no futuro governo de Jair Bolsonaro, Cida Borghetti entregou o comando de áreas da administração a representantes do agronegócio.
O primeiro nome da lista de autoridades que assinaram a nova resolução é Dilceu Sperafico, deputado federal pelo PP licenciado para ocupar a chefia da Casa Civil, a principal pasta do governo Borghetti.
Na Câmara desde 1995, Sperafico sempre integrou a bancada ruralista – chegou a presidir a Comissão de Agricultura e a Frente Parlamentar da Agricultura. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff e pelo arquivamento das denúncias contra Michel Temer. O político chegou a ser investigado na Lava Jato por associação criminosa, mas o inquérito foi arquivado. Ele não disputou a reeleição.
Também estão na lista o secretário de Meio Ambiente, Antonio Carlos Bonetti, ex-prefeito de uma pequena cidade de uma região agrícola do estado e que pela primeira vez na carreira política está à frente de uma pasta dedicada a temas ambientais, e o presidente do IAP, Luiz Carlos Manzato, um advogado que em publicações oficiais diz estar preocupado com a “segurança jurídica de produtores rurais“.
A ação do MP
“A forma utilizada para retirar do ordenamento jurídico a Resolução 22/1985 – com um mero ‘revogue-se’ – evidencia a intenção de, em verdade, suprimir os parâmetros protetivos mínimos para a defesa das populações, ecossistemas, plantações e recursos hídricos afetados pela aplicação de agrotóxicos, ao que tudo indica em prol de meros interesses econômicos bastantes específicos”, anota o promotor Alexandre Gaio na petição apresentada à Justiça.
“A conclusão da indispensabilidade de regramento que fixe distâncias mínimas para pulverização com agrotóxicos é ainda mais potencializada no Estado do Paraná, tendo em vista que possui 417.218 propriedades rurais registradas no Sistema do Cadastro Ambiental Rural, sendo que apenas no ano de 2017 foram utilizados, 92.398.000 quilos [92 mil toneladas] de agrotóxicos no território paranaense, consoante se infere de consulta ao sítio eletrônico da Adapar”, ele prossegue.
A ação, contra governo do Paraná, IAP e Agência de Defesa Agropecuária do Paraná, ainda está em fase inicial. Na segunda-feira, 17 de dezembro, o juiz substituto Jailton Juan Carlos Tontini deu prazo de 72 horas para que os réus se pronunciem sobre o pedido de liminar do MP. Os promotores pedem que a Justiça suspenda imediatamente os efeitos da Resolução Conjunta 001/2018.
Outro lado
Procurado pela reportagem, o governo do Paraná disse que “a edição de recente regulamentação sobre o uso e manejo de agrotóxicos é uma decisão técnica de Estado e não de governo”.
“As instituições envolvidas decidiram pela atualização de normas que estavam em vigor há 35 anos e que já não atendiam à regulamentação federal em diversos aspectos, notadamente na questão da segurança jurídica”, diz a nota.
“O tema é objeto das leis federais 7.802/89 e 12.651/12; da Lei Estadual 7.827/83; do Decreto Federal 4.074/02; do Decreto Estadual 3.876/84; da Portaria 86/05 do Ministério do Trabalho e Emprego; da Resolução Sema 57/14; e da Norma Brasileira da ABNT NBR 9843 de 2004”, prossegue a assessoria. Nenhuma das normas citadas, porém, trata de distâncias mínimas para a aplicação de agrotóxicos.
“A Resolução 22/85 menciona a distância mínima de 50 metros, porém não existe amparo legal, técnico ou científico para a determinação para todo e qualquer tipo de agrotóxico ou forma de aplicação. Compete ao responsável técnico emissor da receita agronômica informar as condições e tecnologia adequada de aplicação bem como as condições ambientais necessárias para que não haja a deriva do produto para outras áreas”, afirma o governo.
“As distâncias mínimas de aplicação não guardam correlação com a qualidade e segurança na aplicação de agrotóxicos. O que se busca coibir é a efetiva deriva do agrotóxico aplicado, que não depende de distâncias, mas da qualidade da aplicação.
Reforça-se a necessidade de qualificação e treinamento dos aplicadores, para que realizem as operações de calibragem e aplicação de agrotóxicos de maneira a diminuir a deriva e melhorar a eficiência dessa tecnologia e ferramenta de controle de pragas”, prossegue a nota.
Já Cida Borghetti afirmou, também via assessoria, que “a edição da resolução é um ato técnico, definido exclusivamente pelos órgãos signatários”. “A governadora tem recebido sugestões sobre o tema que estão sendo encaminhadas aos órgãos para avaliação.”
—
Imagem: Uniport, máquina agrícola usada para pulverização em lavouras –
Henry Milleo / Agência Pública/Repórter Brasil