Pedro Casaldáliga do Araguaia

Maria Júlia Gomes Andrade*, no Brasil de Fato

“Para descansar
eu quero só
esta cruz de pau
como chuva e sol
estes sete palmos
e a Ressurreição!”

(Poema “Cemitério do Sertão”, de Dom Pedro Casaldáliga)

Há cerca de 20 anos Dom Pedro Casaldáliga celebrou uma missa no dia de finados num dos cemitérios de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Ao final, ele disse na presença do povo e agentes pastorais: “Quero que vocês todos escutem muito bem, porque vou falar algo muito sério: é aqui que eu quero ser enterrado”. O “aqui” era o que o povo da região chama de “Cemitério Karajá”, onde foram enterrados muitos indígenas, e outros tantos trabalhadores que vinham de muitas partes e eram explorados nas fazendas de gado. O lugar onde foi enterrada a gente mais humilde daquela terra. O cemitério dos mais pobres.

Das coisas que mais chocaram Dom Pedro quando ele chegou nessa região do Mato Grosso em 1968, era a situação dos “peões”, trabalhadores assalariados que migravam de vários estados na ilusão da vida que iria melhorar no trabalho nas grandes fazendas. Muito era prometido por quem os recrutava, e já durante a viagem e depois no próprio trabalho muitas dívidas eram sendo atribuídas… A maldição da escravidão por dívida. E fugas eram duramente reprimidas, com a tradição de cortar as orelhas dos trabalhadores que buscavam escapar daquele martírio.

A situação dos pequenos posseiros e dos vários povos indígenas da região não era muito diferente, nessa terra das maiores concentrações fundiárias durante a ditadura militar. Na Carta Pastoral de 1971, “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”, Pedro faz uma forte denúncia de todas essas situações, de uma região tão desigual, posicionando a Igreja – a recém-criada Prelazia de São Félix do Araguaia – do lado dos mais pobres:

“Nós – bispo, padres, irmãs, leigos engajados – estamos aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto, marginalizado e acusador, que acabo de apresentar sumariamente. Ou possibilitamos a encarnação salvadora de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos os direitos e a esperança agônica de um povo de gente que é também povo de Deus: os sertanejos, os posseiros, os peões; este pedaço brasileiro da Amazônia. Porque estamos aqui, aqui devemos comprometer-nos. Claramente. Até o fim. (Somente há uma prova sincera, definitiva, do amor, segundo a palavra e o exemplo do Cristo). Não queremos bancar os heróis, os originais. Nem pretendemos dar lição a ninguém. Pedimos só a compreensão comprometida dos que compartilham conosco uma mesma Esperança.”

Voltei a São Félix no final de 2018, depois de quase 16 anos de ter ido para lá pela primeira vez. Para, mais do que tudo, visitar o Pedro. Durante esses dias e pesquisando no monumental Arquivo da Prelazia, descobri mensagens trocadas com João Pedro Stédile, por quem o bispo Pedro sempre guardou grande admiração. Um desses e-mails datava de 24 de dezembro de 2002, e Pedro respondia ao João Pedro dizendo que não poderia estar no Fórum Social Mundial de 2003, nem poderia estar no lançamento do Jornal Brasil de Fato que aconteceria naquele encontro. Ele tinha uma viagem já marcada para Roma naquele mês. E Pedro disse ao amigo do MST: “Há muita expectativa com respeito ao governo Lula. Ninguém duvida da honestidade do companheiro, mas muitos estamos nos interrogando ansiosos pelas alianças e concessões. Vai ser um tempo novo de autocrítica serena, mas livre. A Terra e toda a sua problemática vão definir em boa parte os desafios da alimentação, do emprego, do alívio das cidades, da gradativa correção das desigualdades sociais. O latifúndio continua a ser o inimigo número um!”.

O latifúndio continuava presente no coração das preocupações do Pedro, 34 anos depois de sua chegada ao Brasil. Pedro teve sempre essa reflexão profunda de entender que as mudanças estruturais não aconteceriam só por uma vitória mais à esquerda nas eleições. As maiores mudanças precisariam vir da consciência e organização do povo. E vida pastoral para o Pedro passava fortemente por contribuir na organização do povo na sua luta por direitos, nessa região do Mato Grosso que escolheu viver. Mas toda essa história de muita profundidade de reflexões e ação política foi tratada por apoiadores do presidente eleito em São Félix do Araguaia e região, como um “bispo petista” nessas eleições presidenciais despolitizadas e manipuladas de 2018. Um bispo petista que ainda precisa ser combatido.

Durante a viagem alguns agentes de pastoral da Prelazia me contaram também do episódio da carreata pró Bolsonaro. Um dia antes do primeiro turno das eleições foi organizado uma enorme carreata a favor deste candidato, e os carros buzinavam com mais força ao passar em frente à casa do velho bispo. Muitos gritavam dos carros. Era como uma vingança contra o Pedro e contra tudo o que ele representa, sentiram as pessoas da casa. Mas, pensando bem, e lembrando de todas as histórias dessa Igreja comprometida, essa radicalização entre dois polos não é uma novidade nesta região. Em realidades assim, só os covardes não se posicionam. E Pedro ainda incomoda, e muito.

O que poderia estar o Pedro falando – e nos ajudando a refletir – sobre esse turbilhão que se abateu sobre o Brasil? Certamente muita coisa. Uma vez eu chamei o Pedro de “a esperança indignada” num artigo em que escrevi. E ao ler nessa viagem cartas e mais cartas que Pedro trocava com amigos pessoais e com pessoas de Igrejas e movimentos do mundo todo, me dei conta o quanto essa palavra “esperança” era comum nas trocas de mensagens. Talvez não seja, então, um acaso, que uma das músicas preferidas do Pedro é sonho impossível: “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é vender”. Uma música que ele sempre pedia para a advogada e agente de pastoral Zezé cantar a capela, com a sua bonita voz, nas atividades da Prelazia.

E o bispo Pedro, como é chamado na cidade, continua aqui. O forte avanço do “Irmão Parkison” com quem ele convive há cerca de 20 anos deixa fortes marcas. Os 90 anos (quase 91!) também. Não mais se expressa com profusão de palavras e escritos, que sempre foram muito marcantes. E isso certamente é um grande sofrimento. Mas Pedro se comunica de outras formas, com gestos, olhares, apertos fortes nas nossas mãos, e nos dá a benção com os gestos das mãos dele. A gente sabe que ele está ali, que é o Pedro, e que ele nos reconhece. E trata bem cada um que chega na casa, seja gente do povo da cidade que vai vê-lo, seja algum indígena Karajá (Iny), seja alguma visita que vem de longe.

E a casa dele continua também sendo um refúgio para os Karajá de passada por São Félix, vindos de alguma das várias aldeias que existem na Ilha do Bananal, do outro lado do Rio Araguaia. Sabem que ali vão ter um copo de água fresca, vão ter um lugar para descansar das andanças pela cidade. E sabem que sempre será dado um prato de comida na hora do almoço. Estive cinco dias em São Félix e, em todos os dias, passaram por ali algum Iny, a maioria da aldeia Santa Izabel, a que fica mais pertinho da cidade. No penúltimo um jovem Iny estava passando mal e se dirigiu para lá. Parecia sentir muita dor, e disse que havia vomitado sangue. Conseguimos falar com a responsável pelo distrito de saúde indígena regional, que mandou um carro para buscá-lo. Aquele jovem indígena sabia que teria um refúgio naquela casa, com o “povo do bispo Pedro”.

Na epígrafe está apenas a primeira parte do poema “Cemitério do Sertão”. Mas Pedro continua: “Mas para viver, eu já quero ter, a parte que me cabe, no latifúndio seu, que a terra não é sua, seu doutor Ninguém. Mas para viver, terra e liberdade, eu preciso ter”. A luta do Pedro e sua Igreja comprometida sempre foi pela justiça e pela vida.

Pedro é luta. Pedro é inspiração. Pedro é exemplo. E a doença e a velhice de Pedro não devem ser entendidas apenas como um sofrimento. Deve nos provocar uma “profunda reflexão do significado de 90 anos de vida dedicados à resistência contra o capital e a defesa dos pobres”, palavras da professora e lutadora mineira Maria José Silva. E que possamos, todos e todas nós, nos inspirar em Dom Pedro Casaldáliga para os tempos difíceis que nosso país atravessa e atravessará. Que a esperança ativa e indignada nos guie!

Este texto é dedicado ao padre Félix Valenzuela e à Telma Araújo, pessoas muito amigas, há muito tempo, do Pedro.

*Maria Júlia Gomes Andrade é antropóloga e coordenadora do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

Edição: Joana Tavares

Imagem: bispo dom Pedro Casaldáliga – Foto: Rai Reis

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