Por Eliana Alves Cruz , no The Intercept Brasil
O presidente [eleito] Jair Bolsonaro, em sua já famosa fala no Clube Hebraica do Rio, destilou preconceito contra as comunidades quilombolas. Disse que em seu governo não haverá “nenhum centímetro demarcado” para reservas indígenas ou quilombolas. No discurso altamente ofensivo, o presidente eleito se referiu aos quilombolas com medidas utilizadas para pesar gado e tratou a titulação das terras como “benesse” ou “privilégio” concedido pelo Estado e não um direito constitucional – sua fala foi alvo de processo, mas o STF arquivou denúncia contra o então candidato do PSL com o voto de minerva do ministro Alexandre Moraes que classificou como “grosseira” e não crime de racismo.
Mas a despeito de um presidente que os despreza, 4,8 mil comunidades quilombolas entrarão com uma ação inédita no Supremo Tribunal Federal por danos morais pelos 30 anos em que estão sem a posse da terra garantida pela Constituição. Apenas 200 detêm esse direito, enquanto os outros 4,8 mil, ainda não.
Quem entrará com a ação no STF será a Federação Nacional de Associações Quilombolas, a Fenaq. “Isso está nas disposições transitórias do artigo 168 da Constituição Federal, em tratados internacionais, mas vem sendo postergado sem a menor cerimônia pelas instituições do estado brasileiro”, afirma Humberto Adami, advogado da Fenaq. “Isso independe de o governo estar à direita ou à esquerda e do presidente gostar ou não. É um cumprimento da Constituição Federal”, explicou Adami, que também é presidente da Comissão Nacional da Verdade sobre Escravidão Negra do Conselho Federal da OAB.
No caso dos quilombos, não é qualquer grupo que pode receber o título de quilombola. A Fundação Cultural Palmares é a primeira instância para reconhecer se a comunidade se encaixa dentro do que preconiza a Constituição Federal como “remanescentes de quilombos”. Para ter a posse definitiva, é preciso percorrer um longo percurso de 16 etapas até ser reconhecida pelo Incra, o órgão responsável pelo processo administrativo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas.
O artigo 68 da Constituição Federal de 1988 deu um novo significado ao termo “quilombo”. Em sua definição original, de 1740, o termo era usado para identificar espaços ocupados por pelo menos cinco escravos fugidos. Com a Constituição de 1988, no entanto, a palavra quilombo passou a designar a ocupação coletiva da terra e com ligações ancestrais ligadas à opressão e a escravidão. Após a promulgação da Carta de 1988, o estado brasileiro passou reconhecer a existência de outras formas de propriedade, orientadas por interesses coletivos. O decreto nº 4.887/2003 regulamentou o artigo 68, dizendo que os chamados “remanescentes de quilombos” são grupos étnico-raciais que possuem uma trajetória histórica própria, associada a uma ancestralidade negra que se reflete na constituição do território.
Mas o Democratas, antigo PFL, não gostou da mudança. O partido entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI 3239, para bloquear seu reconhecimento. Solicitou que o decreto nº 4.887 fosse considerado nulo, em um processo que se arrastou por 15 anos até finalmente ser concluído em fevereiro, quando o STF derrubou a Adin.
O DEM sustentava que a autodeclaração como comunidade quilombola era um critério insuficiente para garantir a posse da terra. Além disso, queria que só fossem tituladas áreas que estivessem sob posse quilombola em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Na votação, o ministro Edson Fachin puxou um voto contrário ao marco temporal, que foi seguido pela maioria dos magistrados que rechaçaram a tese defendida por ruralistas, um fantasma que assombrava também os povos indígenas.
O STF entendeu também que a autodeclaração como quilombola não é o único critério, mas apenas um dos muitos que embasam a decisão. O ministro Barroso derrubou a argumentação de que a autodeclaração abriria brechas para fraudes. “A autodefinição feita pela comunidade quilombola é apenas o ponto de partida de um procedimento que – eu contei – é feita em 14 partes, e que inclui laudo antropológico, inclui manifestação do Incra e de todos os interessados. A ideia de que pudesse haver fraude é um pouco fantasiosa”, afirmou.
Humberto Adami acredita que é chegada a hora de dar um passo adiante. “A pergunta é: Quanto tempo mais vai demorar a demarcação dessas 4.800 comunidades quilombolas, nessa demora sem fim?” Com a ação por danos morais, a Fenaq pretende destravar a titulação das comunidades – o valor será estipulado pelo tribunal, em caso de vitória.
A morosidade nesta corrida com barreiras fragiliza as comunidades, que são o elo mais frágil da corrente e ficam demasiadamente expostas ao conflito. Como quase tudo o que envolve terras no Brasil, por conflito entenda-se uma luta intestina que pode acabar em morte.
A bancada ruralista, com sua famosa capacidade de articulação e pressão sobre os governos, tem prejudicado as comunidades quilombolas que, por motivos óbvios, não se encaixam no agressivo modelo de desenvolvimento do agronegócio. Os especuladores imobiliários também são grandes atores neste teatro. São muitos os exemplos. O quilombo do Sacopã, no Leblon, um dos metros quadrados mais caros do país é um deles. Assim como as terras quilombolas cobiçadas pela Vale do Rio Doce, no Maranhão, ou o Quilombo Rio dos Macacos, que disputa a área com a Marinha, na Bahia.
Santa Rita, uma história que dá um filme
Um bom exemplo é o quilombo de Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis, no estado do Rio. Nove anos antes da abolição, em 1879, o comendador José de Souza Breves, irmão de Joaquim Breves, conhecido durante o império como “o rei do café”, libertou todos os seus escravizados e fez uma doação formal de terras para os que ali residiam.
A família Breves, na verdade, desembarcava, em sua praia, escravizados no período ilegal do tráfico e utilizava sua grande influência política para que o caso não terminasse em punições. O convívio entre os escravizados que aqui nasceram e os que chegaram em levas sucessivas escondidos nos navios dos Breves forjou uma comunidade que resiste até hoje.
José não tinha filhos, alforriou todos os seus escravos, deu a vários deles pensões vitalícias e lhes entregou duas enormes fazendas: a Fazenda Cachoeirinha, em Arrozal, e a Fazenda Bracuhy, em Angra dos Reis. As duas fazendas juntas mediam algo em torno de 1400 campos de futebol, com 2 km de linha para o mar.
A história poderia ser o final feliz de abolição com reforma agrária se, em 1956, essas terras não aparecessem no espólio de Honorato Lima, que havia sido o inventariante de plantão dos bens deixados por José de Souza Breves. Essa propriedade transferida por meios ainda hoje obscuros fez com que parte do patrimônio fosse parar em outras mãos. Nos anos 1970, com a abertura da rodovia Rio Santos as terras supervalorizaram e, em 1975, surgiu uma empresa dizendo ser dona de parte delas, sem dúvida a parte mais valiosa: a de frente para o mar.
Homens armados intimidaram os descendentes dos escravizados, e barragens foram erguidas em volta do Rio Bracuhy, fechando o acesso às terras que eram dos seus antepassados, de fato e de direito. Em 1978, com o apoio da Igreja e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura, a Fetag, os herdeiros negros da fazenda entraram na Justiça. Só cinco famílias conseguiram comprovar a descendência dos negros que deram origem ao local e conquistaram o direito a um ínfimo quinhão da enorme doação de Breves. As demais perderam.
Em 1999, a Fundação Cultural Palmares reconheceu a comunidade, que ainda hoje não está totalmente demarcada pelo Incra em contendas judiciais eternas. Enquanto isso não ocorre, lotes vão sendo vendidos, estradas abertas, árvores derrubadas, o rio poluído. A não demarcação de terras indígenas e quilombolas destrói o meio ambiente.
O resumo de tudo isso é que, mesmo a doação constando do testamento do proprietário da terra, os quilombolas enfrentam até hoje a agressiva investida de grileiros e o avanço dos condomínios de luxo. Podemos imaginar o que não ocorre com as comunidades que receberam o chão em que vivem apenas pela palavra de senhores e ali permaneceram por gerações. O Bracuí é um entre milhares de casos que cobrem o Brasil de norte a sul.
O engenheiro negro e abolicionista André Rebouças, que dá nome ao túnel que liga a zona norte à zona sul da cidade do Rio, acreditava que os “pilares do atraso” nacional estavam firmados na mortal combinação entre escravidão, monopólio territorial e monocultura. É dele uma frase que, às portas da terceira década do século 21, soa desconcertantemente atual e profunda: “A abolição eu vivi para ver. A democracia rural, não. Quem possui a terra, possui o homem”. O ano de 2019 anuncia mais um capítulo para as históricas disputas em torno da terra. O STF terá a chance de estancar o sangue que já adubou por tempo demais o solo fértil da nação brasileira.
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Manifestação dos quilombolas de Oriximiná em 2016. Foto: Carlos Penteado.