‘Os bandidos não vão interromper a Marielle’, diz assessora que sobreviveu ao atentado

Da Folha

Marielle Franco queria esticar as pernas e resolveu sentar no banco de trás do carro, e não ao lado do motorista, como era seu hábito. “Isso foi uma coisa que ela nunca fez. E eu voltava quase sempre para casa com ela porque éramos praticamente vizinhas”, diz Fernanda Chaves, ex-assessora de Marielle, sobre a noite do dia 14 de março.

A jornalista estava no veículo no dia em que a vereadora do PSOL foi assassinada. Por um milagre, se tornou a única sobrevivente do atentado, que também tirou a vida do motorista Anderson Silva.

Não viu absolutamente nada. “A gente estava naquela hora em que pega o [celular para ver o] WhatsApp depois de um evento e tem um monte de mensagem. A Marielle me disse que a Mônica [mulher da vereadora] estava com febre. Alguns segundos antes, eu tinha olhado para fora para me localizar. E voltei para o meu celular”, relata.

“A Marielle fez um ‘eita’. Mas não sei se era de alguma mensagem. E aí eu só ouvi a rajada. Tráááááááá.”

Fernanda conta que se abaixou. E logo depois veio o silêncio. “Lembro do Anderson fazer um ‘ai’ e os braços dele se soltaram do volante. Puxei o freio de mão e parei o carro. Eu gritava por ela [Marielle]. Estava escuro e ela estava com a cabeça abaixada.”

A assessora diz que, naquele momento, pensava que o veículo havia passado no meio de um confronto e tinha sido atingido por engano. “Saí do carro. Quando levantei, vi pessoas do outro lado da rua. Me assustei num primeiro momento porque pensei que poderiam estar envolvidas no tiroteio. Depois vi que eram mulheres e crianças.”

O celular de Fernanda estava dentro do carro e uma das pessoas se ofereceu para ligar para chamar socorro. “Eu ainda chamava a Marielle, e ela lá quieta dentro do carro. Então falei para a pessoa que me ajudava: ‘Fala que é uma vereadora’. E aí foi um caos. As pessoas que estavam próximas começaram a filmar, e eu comecei a gritar para que elas parassem.”

A polícia demorou cerca de dez minutos para chegar. “O policial olhou para a minha cara e, antes de falar qualquer coisa, entrou em contato com uma central. E disse: ‘São dois mortos e uma sobrevivente’. Nesse momento eu congelei! E só então me dei conta de que a Marielle tinha morrido.”

Fernanda afirma que ainda hoje vive os reflexos de toda a mudança que foi imposta a ela depois da tragédia. “Dois dias depois do acontecido, eu mudei de cidade com a minha família. Saí do Rio, do estado e algum tempo depois eu fui para a Espanha para um programa da Anistia Internacional”, diz.

De volta ao Brasil, morando em uma cidade que não revela por segurança, Fernanda conversou com a coluna.

O policial não parava de me fazer perguntas, a frase dele [‘São dois mortos e uma sobrevivente’] não parava de ecoar na minha cabeça. Eu não me sentia segura com a polícia. Os bombeiros queriam me levar para a ambulância, mas eu não queria deixar a cena [do crime] sem nenhuma pessoa minha. Liguei para um colega e falei que tinha tido um tiroteio, para ele ir me encontrar e avisar o meu marido.

Logo chegou outro amigo [que estava mais próximo] e foi terrível. Ele se deparou com aquela cena: Marielle e Anderson mortos e eu completamente em choque. Foi ele que me convenceu a ir pra ambulância. Me limparam, mediram a minha pressão, meu marido chegou e me levou para casa. Tomei um banho para poder encontrar a minha filha [de 7 anos]. Não tinha condições de vê-la no estado em que eu estava.

Ainda estava digerindo aquilo tudo e me disseram que era melhor eu ir prestar depoimento. Passei a madrugada inteira na delegacia e cheguei em casa de manhã.

Foi muito trabalhoso desfazer essa ideia de que eu tinha visto alguma coisa. Eu ouvi. Eu estava lá, claro. Mas não vi o tipo de veículo que foi usado e nem a cara de ninguém.

Eu estava em choque e vazaram o meu depoimento. E aí virou uma coisa louca. Em um programa de TV, alguém disse que um dos assassinos teria virado para mim e falado: ‘Não é nada com você’.

No dia seguinte, comecei a ver a movimentação em torno dos funerais e me preparei para ir. Mas meu marido não deixou. O [deputado estadual do Rio] Marcelo Freixo e as autoridades me disseram que eu ia ter que sair do Rio imediatamente. Ouvir isso foi como uma segunda metralhada.

É fundamental viver o luto. E eu não vivi esses rituais [velório e enterro]. Tem horas em que eu penso que nada aconteceu. São várias camadas para lidar. O horror da violência, do fato em si, de metralharem duas pessoas. A morte de uma pessoa muito querida. Marielle era madrinha da minha filha.

A vivência é surreal demais. Você nunca imagina que vai estar num carro que vai ser metralhado. Ela era uma vereadora conhecida e eu cuidava da imagem dela. E estava tudo acontecendo sem que eu pudesse interferir. Foi muito, muito, muito difícil.

O Freixo me ligou e disse que a Anistia Internacional estava oferecendo um programa de acolhimento. E aí a gente resolveu aceitar. Me deram só algumas horas para sair de casa e eu saí sem levar sapato.

Foi muito complicado para a minha filha. Ela foi à aula no dia anterior, chegou da escola e nunca mais voltou. Nunca mais encontrou os amigos.

Num primeiro momento eu também não consegui dizer [à filha] como a Marielle tinha morrido. A gente tava muito destruído. E eu disse que foi num acidente de carro, que eu estava junto. Mas a psicóloga que me acompanhou nos primeiros dias me orientou a falar a verdade e eu logo contei.

Logo que cheguei em Madri, eu estava com uma sanha por notícias e não conseguia entrar no fuso horário da Espanha. Estava lá, mas totalmente ligada aqui. Era quase doentio. Achava que voltaria em 15 dias, crendo plenamente que essa investigação aconteceria.

Foi um segundo baque [participar da reconstituição do crime]. Foi muito difícil, muito bizarro. Eu estava começando a melhorar, mas ainda não ficava sozinha. E tive que entrar em um avião sem ninguém, rumo ao Brasil.

Disseram que eu ia fazer o passo a passo do percurso e que usariam uma gravação para eu tentar reconhecer certos tipos de arma pela rajada. Mas me colocaram na cena e utilizaram várias armas de verdade, com um carro igual. Atiravam, destruíam os vidros do veículo e trocavam. Levava meia hora entre uma cena e outra.

Voltei em 24h para a Europa, mas já não estava mais me sentindo segura para viver no Brasil. As investigações não davam em nada. Estava claro que era um crime político.

Mas a proteção oferecida pela anistia estava terminando. Tenho amigos diplomatas que estão na Itália e ofereceram para a gente ficar lá.

Fomos de Madri para Roma. Lá as coisas deram uma clareada. Eu estava mais fortalecida e comecei a ter agendas. Me apresentei no Senado [italiano] com o tema “Quem defende os defensores de direitos humanos?”.

Voltei ao Brasil no início de julho. Minha filha tinha passado todo o primeiro semestre fora da escola. Como a gente não tinha ideia de que ia demorar para voltar, não me organizei para colocar ela numa escola. Então, ela ficava o tempo inteiro com dois adultos.

Acho que não volto mais para o Rio. Lá virou uma terra de Marlboro e ficou muito sofrido ver homenagens para a Marielle em todas as esquinas.

Meu medo não chegou a me imobilizar. Vivi o terror. E deixei purgar minhas dores. Com tudo isso eu confirmei o que imaginava de mim mesma. Já passei por muitas situações e eu sempre volto fortalecida. Dessa vez não foi diferente.

A [ex-presidente] Dilma [Rousseff] foi me visitar no dia seguinte ao atentado. Ela parece ter sido a única pessoa que sabia como eu estava me sentindo. Ela me disse: “Seu couro cabeludo treme, né? E você faz força para controlar a tremedeira. Deixa estar”. Eu liguei um foda-se. Fiquei uns quatro dias tremendo e um belo dia a tremedeira passou.

O que se sabe hoje é que milícias estão envolvidas na morte da Marielle. É tudo muito estranho. Quem tem o papel e o dever de entregar quem mandou matar Marielle são as autoridades. A gente não tem que ficar especulando.

Dizer que foi disputa fundiária é uma loucura. É um grande engodo. Disputa de território não era a política da Marielle. Claro que ela se colocava, tinha projetos de lei com relação a mudanças de verticalização de favelas. Mas ela era presidente da comissão da mulher. A questão de gênero era transversal no mandato dela.

Ela morreu por ser o que ela era: mulher, negra, lésbica e favelada. O Brasil é muito patriarcal para aceitar uma mulher como ela. Uma mulher como ela não poderia chegar onde chegou. E ela chegaria a muito mais. Ela se tornaria em pouco tempo uma liderança nacional. Uma liderança que a gente não está acostumado a ver.

Não sonho com o que aconteceu. Lembro muito. Todos os dias. Sempre que eu entro num banco de trás de um carro eu me pergunto como fiz para escapar daquilo.

E tem a continuidade da Marielle. Ela era tão gigante, criou um grupo tão forte e representativo, que três colegas da assessoria foram eleitas deputadas estaduais em outubro. Isso mostra que os bandidos não vão interromper a Mari. Não se mata uma ideia.

Fernanda Chaves, ex-assessora de imprensa de Marielle Franco. Foto: Folhapress

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