Livro fala sobre as estratégias de grandes empresas para conquistar o domínio da cultura no Brasil
Por Michele Carvalho, no Brasil de Fato
O ano de 2019 mal começou e a questão fundiária no Brasil já foi alvo de duros ataques do novo presidente Jair Bolsonaro. Poucas horas depois de ser empossado, o capitão reformado passou para o Ministério da Agricultura a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas e quilombolas.
Em outra decisão, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O órgão era formado por 60 pessoas, entre representantes da sociedade civil e do governo, e tinha como objetivo, entre outras tarefas, defender uma alimentação saudável e sem agrotóxico.
Com as medidas, o novo governo faz um aceno aos ruralistas, fortalecendo ainda mais o agronegócio, modelo de produção que nos últimos anos vem ganhando cada vez mais visibilidade e espaço entre a população brasileira.
No livro “Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégias das empresas para a construção da hegemonia”, a psicóloga e integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ana Chã fala da influência dos meios de comunicação de massa no fortalecimento e popularização do discurso do agronegócio.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a autora explica como o agronegócio se utiliza das ferramentas da indústria cultural, como peças de teatro, novelas e até mesmo a música, para se colocar como única solução para os problemas do campo brasileiro.
Brasil de Fato: O que a indústria cultural tem a ver com o agronegócio ?
Ana Chã: A indústria cultural se relaciona com o agronegócio no sentido de trazer para o imaginário coletivo, para a sociedade, a ideia de que o agronegócio é o único modelo de agricultura possível para o campo brasileiro.
O agronegócio vem construindo, nas últimas duas décadas em especial, uma hegemonia no campo econômico e no campo político. Mas, além disso, eles vem se dedicando também a construir uma imagem do setor como algo imprescindível para o crescimento da economia brasileira e como proposta e projeto para o campo no Brasil.
Quais as principais ferramentas da indústria cultural que o agronegócio utiliza para passar a ideia de que o agronegócio é a única saída para o Brasil?
O agronegócio se usa dos vários mecanismos da indústria cultural, sejam eles propagandas, a produção de recursos culturais para ser distribuído em escala como os filmes, as novelas, a música. Através desses mecanismos e veículos de comunicação de massa, o agronegócio busca influenciar e construir um imaginário sobre o campo, que hoje a gente teria no Brasil.
Se há 20 anos atrás, a gente perguntasse às pessoas na rua o que é o agronegócio, uma boa parte delas não saberia responder. Hoje em dia, principalmente através dessas fortes campanhas na televisão, a mais recente, essa do agro é tec, agro é poo, agro é tudo, o agronegócio vem se apresentando com o produtor de alimentos, o produtor de roupa. Eles que são os grandes produtores para exportação de commodities. O grande forte do agronegócio no Brasil é produzir grãos, é produzir gado e suco de laranja para exportação, mas eles trazem esse discurso e essa imagem de que eles são os produtores também de alimento, de uma energia supostamente limpa.
Tudo isso se dá através desses mecanismos, digamos assim de forma simplificada, da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa. No entanto, em anos mais recentes, mais ou menos na última década, o agronegócio tem também construído esse seu discurso, essa sua imagem como algo muito positivo para o país também no meio rural. Em geral, no meio rural eles tem buscado fazer uma ação no campo da educação, da cultura e da arte. Eles estão nas escolas, nas pequenas comunidades, em pequenos municípios patrocinando via Lei Rouanet, com dinheiro público, grandes shows de música sertaneja, patrocinando também shows de orquestra sinfônica, mas patrocinando também projetos educativos nas comunidades para crianças, jovens e adolescentes na sua maioria e que, fundamentalmente, buscam fazer essa publicidade, ainda que de forma velada de seu projeto.
Quando o agronegócio começou a utilizar a indústria cultural para disseminar sua ideologia?
A partir da década de sessenta mais ou menos, isso já se dá fortemente com o apoio e influência da indústria cultural, através de mecanismos que eram disponíveis na época. Então, a gente já tem a publicidade televisiva, ainda em pequena escala, mas também fortemente na rádio.
A gente tem a posse, principalmente a partir do golpe militar de 1964, a posse de fortalecer no campo essa proposta global que vinha da Revolução Verde, que passava então pela reintrodução de um pacote tecnológico muito assentado no veneno. Então, era preciso fazer esse trabalho com a opinião pública e também com os agricultores. Quando a gente olha, por exemplo, para a rádio, é um trabalho muito direto de chegar no agricultor e mostrar todas as vantagens que eles teriam em adotar essa nova proposta para agricultura.
De lá pra cá, tudo isso vem crescendo. O sistema da Rede Globo, por exemplo, se nacionaliza e essa parceria, digamos assim, passa a ser constante e mais presente. Então, a gente vai ter desde programas musicais, que trazem em alguma medida, uma mensagem sobre qual seria essa mudança no campo. Começam também a tratar o campo como um lugar que as máquinas iriam ocupar, então o ser humano, pode vir para cidade tranquilamente que a gente vai continuar tendo fornecimento daquilo que é produzido pela agricultura.
Hoje, quando a gente olha a composição, por exemplo, da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), a Rede Globo faz parte dessa associação. Então, se a gente for reparar inclusive, nessa campanha mais recente do agro é tec, agro é pop, agora é tudo, ela foi concebida pela gerência de marketing da Rede Globo.
Eles têm interesse também em fortalecer o setor do agronegócio e, em alguma medida, ao colocá-lo como a única possibilidade para o campo brasileiro, eles também estão retirando da pauta, de forma permanente, temas como, por exemplo, a reforma agrária e a agricultura familiar.
Esse processo se intensifica no governo de Bolsonaro, existe alguma perspectiva nesse sentido?
Ainda é bastante nebuloso como eles vão se posicionar. Claramente, a disputa no campo ideológico e simbólico tem sido um dos investimentos desse novo governo. Uma das suas bases de sustentação, sendo o setor do agronegócio, a gente acredita que isso vá continuar, no ponto de vista da propaganda e da publicidade e da defesa desse projeto, também a esse nível simbólico.
Do ponto de vista daquilo que a gente pesquisou, dessa atuação nas comunidades, eles atuavam muito através de financiamento e dos mecanismos da Lei Rouanet, que ainda não se sabe o que vai acontecer. A Lei Rouanet, como um financiamento público à cultura, acabou sendo usado como um instrumento dessa disputa ideológica, apesar de estar completamente inserido dentro de uma política neoliberal de apoio a cultura, acabou que na campanha, ela assumiu um caráter de vínculo com os governos de Lula e Dilma.
Então, a gente não sabe até que ponto ela vai se manter ou não, claro que não depende só do governo. Nesses dois últimos anos de golpe a gente verificou, bem superficialmente, uma diminuição de projetos que essas empresas do agronegócio bancariam. Ninguém sabe daqui pra frente como é que o setor vai se comportar nessa área.
Nosso desafio daqui pra frente é essa disputa ideológica?
Isso, do ponto de vista dos desafios a gente tem de se contrapor a esse discurso hegemônico mais geral, conservador, de retirada dos direitos do trabalhadores. Mais especificamente no campo, a gente precisa se contrapor a esse discurso do agronegócio, como a única possibilidade para o campo brasileiro, trazendo para o conhecimento da sociedade todas as contradições desse modelo, de como ele é, efetivamente, o responsável por vários impactos ambientais, por desmatamento, como ele ainda se apoia no trabalho precarizado, muitas vezes, análogo à escravidão, como ele é voltado para a exportação.
Por outro lado, trazer para a pauta da sociedade a necessidade urgente de um projeto de reforma agrária, de fortalecer políticas que foram abandonadas nesses últimos dois anos, de incentivo a produção agroecológica e, fundamentalmente, dessa possibilidade da gente ter uma vida no campo.
A reforma agrária popular traz uma pauta defendendo que o sujeito possa viver no campo, com direito de produzir sua própria cultura, sua própria arte. Direito à educação, saúde, a condições de vida digna. Esse é um pouco do embate no campo ideológico que a gente tem que fazer, sabendo que eles estão em vantagem por terem a propriedade dos meios de comunicação de massa e, inclusive, o mecanismo pelos quais financiam essas ações de cultura e de arte no Brasil.
Edição: Guilherme Henrique
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Ana Chã é integrante do MST e autora do livro “Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégias das empresas para a construção da hegemonia” / Arquivo pessoal