“Lá no meu sertão pros caboclo lê / tem que aprender um outro ABC”
(Luiz Gonzaga e Zédantas – ABC do Sertão, 1953)
No Taqui Pra Ti
– “Tem que voltar ao velho método fônico, beabá, como era nos anos 60, 70” – declarou Olavo de Carvalho na quinta (3), à Folha de SP, ao defender medidas daquele que ele indicou para ser ministro da Educação do governo Bolsonaro, o colombiano Ricardo Vélez Rodriguez, professor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército.
A frase resume as atuais diretrizes dogmáticas do MEC. O primeiro ato do ministro foi extinguir, de uma canetada, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), que desde 2004 vinha apoiando grupos historicamente excluídos. Criou outra só para Alfabetização com “o objetivo de formar cidadãos preparados para o mercado de trabalho” e não “mentes escravas das ideias de dominação socialista”, como definiu o pensador capitão Jair Bolsonaro, para assombro até da mídia europeia, que procura com lupa esse fantasma do socialismo.
Seria difícil achar educadores brasileiros capazes de levar adiante, em pleno século XXI, proposta tão arrojada. Daí, o gesto louvável de recrutar alguém nascido em país hermano, homenagem tardia a Simón Bolívar que outrora presidiu a Gran Colombia. De minha parte, procurei também no mesmo país a assessora pedagógica em programas de leitura da prefeitura de Medellin, Gladys Lopera Cardona. No entanto, suas experiências em oficinas de formação de professores no Projeto “Articulação Biblioteca – Escola – Comunidade”, lá na Colômbia, contrariam a proposta de seu conterrâneo aqui no Brasil.
As oficinas sobre “práticas de leitura e escrita em ambientes pedagógicos”, partem do princípio de que o objetivo da leitura é interpretar e construir sentidos, desenvolver as funções cerebrais e fomentar a cidadania. Ou seja, quem “aprende a ler” apenas para entrar no mercado é tratado como reles mercadoria. E não como cidadão. O alfabetizado precisa vender sua força de trabalho, é verdade, mas o cidadão necessita compreender o mundo, incluindo o mercado. A não ser que se queira matar o cidadão para melhor subjugar o trabalhador, ambos não são excludentes, como mostra um simples olhar sobre a história, que ajuda a entender os desastres causadas por algumas políticas educacionais.
Labirintos da leitura
Existem pesquisas de excelência sobre a história do letramento e da alfabetização feita por autores brasileiros. Experiências como a de Magda Soares, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), coordenadora do projeto de alfabetização em Lagoa Santa (MG), pelos seus resultados, se tornaram referência até mesmo fora do país. É possível que ela e os demais pesquisadores sejam considerados “mentes escravas do socialismo” pelos atuais donos do poder empantanados no século XIX.
Por isso, fomos buscar no país “brother” o insuspeito historiador Harvey J. Graff, professor na Universidade de Ohio, que publicou em 1987 “Os labirintos da alfabetização”, traduzido em muitas línguas, inclusive ao português. Depois de avaliar que a alfabetização é inseparável da ideologia, que não é só de esquerda, mas está presente em todas as correntes, ele pergunta:
– “O que aconteceria se o mundo inteiro se tornasse alfabetizado? Resposta: não muita coisa”.
E ele mesmo completa:
– “Mas se o mundo consistisse de pessoas alfabetizadas, autônomas, críticas, construtivas, capazes de traduzir as ideias em ação, individual ou coletivamente – então o mundo mudaria”.
Bingoooo! É isso justamente o que os assaltantes do poder não querem: que o Brasil mude. Ou que ‘mude’ para que tudo fique igual. Por isso, propõem o retorno da Cartilha do Beabá que logo virá acompanhada da velha tabuada memorizada que se “aprendia” com palmatória, mas que na realidade adestrava, como se faz com um cão, bloqueando qualquer raciocínio. Aliás essa velha prática, responsável pelo analfabetismo funcional, que ainda persiste em alguns grotões, agora será oficial. Quem for assim alfabetizado será capaz de ler o desaparecimento do motorista Queiroz, que simplesmente se nega a prestar depoimentos sobre as falcatruas cometidas?
A uva do vovô
O genial escritor argentino, Jorge Luis Borges, insuspeito porque abominava o socialismo, já advertia sobre o perigo de encarar a leitura como beabá do mercado:
– A leitura é um ato de lucidez crítica, mas pode ser também uma estupidez capaz de perpetuar a ignorância e o obscurantismo. É preciso que as escolas primárias ensinem a arte de ler os jornais com incredulidade para as pessoas não se deixarem enganar.
No momento em que já se está discutindo o letramento digital, voltar ao século passado com um cartilha para repetir que “o Ivo viu a uva” é um retrocesso jurássico, inaugurando uma “nova era” em que alunos devem vestir farda azul e alunas cor de rosa – como prega a pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. As crianças em ordem unida serão forçadas a associar letras a sons, mas não necessariamente a compor sentidos. O vovô Ivo vê a uva, mas não sabe quem a plantou, em qual regime de trabalho, qual o salário pago, quem lucrou e – tal qual a raposa de La Fontaine – nunca conhecerá o sabor dela, porque estão verdes. Ignorará porque bicho e lixo, com um som em comum, são escritos de forma diferente.
O fracasso dessa tentativa ficou evidente nos anos 1930, nos Estados Unidos, quando o exército norte-americano descobriu que seus recrutas, já alfabetizados, não entendiam as instruções escritas dos generais e capitães. Esses soldados eram o que a UNESCO chama de “analfabetos funcionais”, porque mesmo reconhecendo as letras e as palavras não tinham habilidade para interpretar textos.
O educador Paulo Freire sacou isso, quando criou um método que considera a alfabetização como um ato social, capaz de incorporar as vivências do educando, tornando-o apto a desenvolver a compreensão leitora do conteúdo e não apenas de soletrar. Mas Paulo Freire, celebrado no mundo todo, foi jogado na lata do lixo pelos atuais donos do poder que propõem contra a educação libertadora do cidadão, a educação algemada ao mercado. Quem discorda é acusado de “comunista”, numa defasagem histórica de algumas décadas, mas que é útil para encerrar uma discussão.
Parece que o ministro da Educação do capitão Bolsonaro é produto de uma “educação para o mercado”, o que deve criar problemas na composição de sentidos daquilo que ele lê. De qualquer forma, lhe recomendamos a leitura do poema “Educar” do escritor espanhol Gabriel Celaya, que me foi enviado por sua conterrânea, minha amiga Gladys Lopera Cardona. Talvez ele descubra, através do poema e da experiência de Medellin, que o bea-bá é outro.
– Educar – diz o poeta – é o mesmo que colocar um motor numa canoa. É preciso medir, pesar, equilibrar e pôr tudo em movimento. Para isso, a gente tem que ter na alma um pouco de marinheiro, de pirata, de poeta e um quilo e meio de paciência. Mas é gratificante sonhar enquanto a gente trabalha, que essa canoa, com essa criança, viajará longe por mares nunca dantes navegados. Sonhar que esse navio transportará nossa carga de palavras por povoados distantes, ilhas longínquas e que.quando um dia a nossa própria canoa soçobrar, nossa bandeira desfraldada seguirá em novas canoas.
Desconfio que nem Bolsonaro, nem seu ministro, conseguirão dar sentidos ao que Celaya escreveu:
EDUCAR
Educar es lo mismo
que poner un motor a una barca.
Hay que medir, pesar, equilibrar…
… y poner todo en marcha.
Pero para eso,
uno tiene que llevar en el alma
un poco de marino… un poco de pirata…
un poco de poeta…
y un kilo y medio de paciencia concentrada.
Pero es consolador soñar mientras uno trabaja,
que esa barca, ese niño,
irá muy lejos por el agua.
Soñar que ese navío
llevará nuestra carga de palabras
hacia pueblos distantes, hacia islas lejanas.
Soñar que cuando un día
esté durmiendo nuestra propia barca,
en barcos nuevos seguirá nuestra bandera enarbolada.