Por que o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional é necessário?

Por Patrícia Constante Jaime*, no Jornal da USP

A Medida Provisória n. 870, de 01 de janeiro de 2019, publicada pelo novo governo federal de modo a estabelecer a organização administrativa dos órgãos da Presidência da República e seus Ministérios, trouxe más noticias para a política pública de segurança alimentar e nutricional.

Ela revoga inciso e artigo da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional/LOSAN, de 2006, de modo a levar a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional/CONSEA na estrutura organizativa do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN.

O CONSEA Nacional era um órgão de assessoramento à Presidência da República cuja competência institucional tratava do controle social na formulação, execução e monitoramento da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.  Representava um espaço de consolidação da participação da sociedade nas políticas voltadas à promoção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e de defesa de uma agenda da administração pública que defenda os cidadãos da violação do direito humano à alimentação adequada.

Criado, em 1993, à época do governo Itamar Franco e sob demanda da sociedade civil articulada nos movimentos Ética na Política e Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, o CONSEA foi, em uma perspectiva histórica, a primeira tentativa de elevar o debate sobre segurança alimentar e nutricional para uma arena política intersetorial, plural e participativa. Pelo caráter transitório do então governo e pela frágil inserção do tema na agenda política brasileira, o conselho foi extinto em 1994, um ano após sua proposição. Recriado em 2003, o CONSEA assumiu a importante tarefa de não ser apenas um espaço institucional de diálogo do governo com a sociedade, mas também de ser o lócus impulsionador da elaboração participativa do Projeto de Lei Orgânica para a Segurança Alimentar e Nutricional no país, o que ocorreu em 2006.

Desde então, observou-se o rompimento de ações pontuais e fragmentadas em direção a um novo paradigma na construção e governança de políticas públicas em segurança alimentar e nutricional. Progressivamente, têm-se implantado de forma mais articulada programas e ações de proteção social, de superação da pobreza e redução das desigualdades, de fomento a produção agrícola de base familiar e de acesso à alimentação. Neste espectro, está o aprimoramento do marco normativo do histórico Programa Nacional de Alimentação Escolar e sua interface com os programas de compras públicas de alimentos produzidos por agricultores familiares. Iniciativas como essa foram produzidas e articuladas no âmbito do CONSEA e foram reconhecidas pelas Nações Unidas, em 2014, como responsáveis pela saída do Brasil do Mapa da Fome.

Por outro lado, novas expressões da insegurança alimentar, como a perda dos padrões alimentares tradicionais, o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, a obesidade e a exposição da população a alimentos contaminados por agrotóxicos, ganham proporções epidêmicas. Os sistemas alimentares, incluindo os processos de produção, transformação, distribuição, marketing e consumo de alimentos, estão fortemente relacionados à transição alimentar e nutricional observada nas últimas décadas e precisam ser reposicionados para não apenas ofertar alimentos, mas sim promover dietas mais saudáveis e sustentáveis para todos.

O CONSEA, bravamente, assumiu a defesa da dimensão sociocultural da alimentação e da valorização de um sistema alimentar justo, saudável e sustentável, tanto do ponto de vista social como ambiental, onde sejam valorizados e protegidos a biodiversidade, a comida de verdade sem veneno e os padrões alimentares tradicionais com o respeito e o resgate das identidades, memórias e culturas alimentares. Fez, assim, a defesa do alimento como elemento central da vida, um direito social, um bem material e imaterial e parte do patrimônio cultural do povo e da nação brasileira. Há que se reconhecer o choque paradigmático com setores que, em outro extremo, veem o alimento apenas como mercadoria dotada de valor monetário, em uma economia nacional ancorada nas commodities agropecuárias.

O Brasil alcançou reconhecimento internacional na área e se tornou referência para inúmeros países. Em 2016, publicação de um renomado painel de especialistas em Nutrição Global – The Global Nutrition Report Stakeholder Group – apontou os fatores que explicam o protagonismo brasileiro na agenda de Segurança Alimentar e Nutricional, sendo eles: o ativismo de organizações não governamentais e de movimentos sociais, a produção e uso de dados e indicadores de segurança alimentar e nutricional e, por fim, a criação do CONSEA como espaço de governança, engajamento e diálogo independente entre Governo e Sociedade Civil.

Compreender a formação de uma agenda de política de segurança alimentar e nutricional significa considerar que a mesma pode refletir ou não os interesses dos diferentes setores da sociedade, a depender do grau de democracia participativa, de mobilização de cada setor e de institucionalização de mecanismos que viabilizem a participação dos sujeitos, em especial dos mais vulneráveis e dependentes da ação do Estado.

O episódio da Medida Provisória n. 870 é preocupante porque nega os êxitos da experiência brasileira; compromete a continuidade e aprimoramento da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; fragiliza a administração pública ao negar a participação social como elemento estruturante do Estado Democrático de Direito; induz um efeito cascata nos modelos de governança das políticas estaduais e municipais; e, não menos importante, deixa um recado que, para o Governo que se inicia, o exercício da cidadania parece só ter importância no momento do voto no processo eleitoral.

*Nutricionista, doutora em Saúde Pública, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP

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