Por Vilma Reis*, na Abrasco
Além do risco de causar mais mortes, a flexibilização do uso de armas de fogo decretada pelo governo de Jair Bolsonaro pode sobrecarregar a saúde pública. Nos últimos 4 anos, com normas mais rígidas para o acesso a armamentos em vigor, o SUS (Sistema Único de Saúde) gastou R$ 191,33 milhões com atendimentos de pessoas baleadas, segundo levantamento feito pelo Ministério da Saúde, a pedido do HuffPost Brasil.
Os custos incluem R$190,59 milhões com 92.668 internações entre 2015 e 2018 e R$ 742,32 mil com 16.325 atendimentos ambulatoriais no mesmo período. Uma mesma pessoa pode ter sido atendida mais de uma vez.
O montante é similar ao valor liberado pelo governo federal em março para ações de assistência emergencial e acolhimento humanitário de pessoas vindas da Venezuela, na crise migratória que atinge principalmente o estado de Roraima.
A amplitude de brasileiros baleados, contudo, é ainda maior. Os números dos SUS não incluem pessoas atendidas pela rede particular ou que nem chegaram a ter atendimento médico. Em 2014, das 45.068 pessoas mortas por disparos, 25,1% chegaram a ser atendidas em um estabelecimento de saúde, mas não resistiram aos ferimentos, de acordo com estudo da Fiocruz publicado em 2017 com base em dados do SUS de 24 capitais.
Apesar de a liberação de armas ter reflexos na saúde pública, o Ministério da Saúde não participou das discussões sobre a elaboração do decreto publicado na última terça-feira (15). A pasta não respondeu questionamento da reportagem sobre sua posição no debate do desarmamento nem se avaliou possíveis impactos do decreto no SUS.
O documento prevê que a “efetiva necessidade” para posse de arma vai abranger proprietários rurais e de estabelecimentos comerciais, agentes de segurança e moradores de unidades federativas que tenham índices anuais de mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, conforme os dados de 2016 do Atlas da Violência 2018. Todos os estados e o Distrito Federal se encaixam nesse critério. O texto não muda regras para porte de arma.
As exigências para conseguir o registro do armamento são: ter ao menos 25 anos, concluir curso técnico de manejo de arma de fogo, ter ocupação lícita, não ter antecedentes criminais nem estar respondendo a inquérito policial ou processo criminal.
Gastos da saúde com violência
Os gastos dos SUS com vítimas de armas de fogo são uma parcela do impacto total da violência para os cofres públicos. De acordo com o estudo “Valor Econômico da Paz”, do Instituto para Economia e Paz, referência no tema, o Brasil desperdiça cerca de 13,5% do seu PIB com o problema. É o equivalente a R$ 5.140, para cada cidadão, ao ano.
O cálculo inclui de gastos diretos com orçamento militar, policial, judicial e em saúde pública, até perdas indiretas, como o prejuízo com queda de produtividade.
Na avaliação de especialistas, o decreto que amplia o acesso às armas irá sobrecarregar o sistema público de saúde. “Os casos vão crescer. Vai impactar diretamente os custos do SUS desde o atendimento pré-hospitalar à reabilitação física e mental do paciente”, afirmou, ao HuffPost Brasil, Ferdinando Ramos, coordenador do grupo temático Violência e Saúde da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
O pesquisador destaca que o atendimento nesses casos inclui profissionais de urgência e emergência, pediatria, agentes comunitários, a rede de assistência psicossocial e agentes de saúde que atendem nas ruas. ”É uma questão financeira, necessariamente, mas é também de ter recursos humanos não só em quantidade, mas em condição de atender um público cada vez mais específico”, destaca.
Apesar de não ser possível dimensionar qual pode ser a sobrecarga, algumas análises podem ajudar a traçar um cenário. Um estudo do Ipea ( Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicado em 2013, quando o Estatuto do Desarmamento completou 10 anos, concluiu que a taxa de homicídio no Brasil seria 12% superior às atuais, caso a legislação não tivesse sido aprovada.
De acordo com o Atlas da Violência de 2018, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram cometidos 62.517 assassinatos em 2016, um patamar 30 vezes maior do que o da Europa. Do total de homicídios, 71,1% foram com armas. De 1980 até 2016, 910 mil pessoas perderam a vida por perfuração causada por disparos.
Baleada antes dos 2 anos
Hoje com 18 anos, Caroline Vieira tinha menos de 2 anos quando foi baleada no ombro em um showmício em Riacho Fundo, cidade do Distrito Federal a 17 quilômetros de Brasília. “Começou um tiroteio. Meu pai me pegou no colo e a gente foi se esconder, mas a bala veio”, contou ao HuffPost.
A mãe, Marcia Álvares, de 53 anos, recorda que a família lanchava em uma barraquinha de cachorro-quente quando começou uma briga de gangue e um dos envolvidos correu para o local onde eles estavam. A mesma bala que atingiu Caroline acertou o pai, que sofreu um ferimento mais leve.
Após o tiro, a criança foi levada pelo Corpo de Bombeiros até o Hospital de Base, no centro da capital. “A pressão dela estava quase zero. O sangue indo todo embora”, lembra Marcia. No hospital, Caroline ficou 20 dias internada e teve de passar por uma série de procedimentos. “Não sabiam o que fazer com ela por ser muito nova”, conta a mãe, que não esquece o episódio. “Eu fico sonhando com essa pistola até hoje.”
Foi outra cena de violência no Riacho Fundo que levou a família a se mudar para um condomínio no Jardim Botânico, área mais próxima ao centro de Brasília, em 2003, ano seguinte ao tiroteio. “Da varanda de casa eu vi um cara botar a arma na cabeça de uma criança junto com o pai”, lembra Marcia. A pensionista é contra a flexibilização do armamento. “Acho que [o decreto] vai aumentar a violência. Vão roubar as armas. Isso não vai resolver”, afirma.
Caroline não teve sequelas físicas da bala, mas sofreu com terror noturno por alguns anos, agravado pela perda do pai, vítima de câncer. “Na época da morte do meu pai, eu tinha 5 anos e qualquer barulho, como fogos de artifício no Ano Novo, eu ficava chorando muito, desesperada, pensando que era arma”, conta a jovem, que passou por acompanhamento psicológico após os episódios.
Vítimas de armas de fogo
Enfermeira da rede pública no Hospital Risoleta Tolentino Neves, em Belo Horizonte (MG), Bianca Santana Dutra ressalta o impacto dos tiroteios no sistema de saúde. “Dentro dos casos de violência, o mais prevalente são as vítimas de arma de fogo”, afirma a mestra em promoção da saúde e prevenção da violência pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
A especialista acredita que uma legalização indiscriminada pode aumentar as estatísticas. “Um aumento de atendimentos geraria um custo enorme porque violência é um problema de segurança pública, mas o impacto é na saúde. Uma hospitalização por perfuração de arma de fogo é de cunho cirúrgico e terapia intensiva. É alta complexidade. O custo é muito alto em comparação a outras patologias e por uma coisa que é totalmente evitável”, afirma.
Além do atendimento de urgência, é necessário centro cirúrgico e uma equipe preparada técnica e psicologicamente para atender a vítima e aos familiares, inclusive em casos envolvendo conflitos criminais. “Lidar com o contexto de violência é muito complexo”, destaca Dutra. Há situações, por exemplo, em que a ambulância não consegue chegar ao local do tiroteio por ser uma área de alta criminalidade.
Levantamento feito pela pesquisadora mostra que 87,8% dos atendimentos por armas na rede pública de Sete Lagoas (MG), entre 2010 e 2013, eram de homens com faixa etária de até 27 anos. Apesar de não ser maioria, outro grupo que chamou atenção foi de mulheres agredidas de madrugada, possivelmente vítimas de violência doméstica. Especialistas alertam para o risco de aumento de feminicídios após o decreto.
O perfil encontrado por Dutra é similar ao da maior parte dos brasileiros que morrem pelos disparos: homens, jovens, pardos ou negros e com baixa escolaridade. Esse padrão também está no estudo da Fiocruz. Segundo o levantamento, mulheres têm 66% menos chance de sofrer uma lesão por arma do que homens. O percentual para maiores de 30 anos é de 52%, em comparação aos mais jovens. Já para aqueles com 9 ou mais anos de estudo, a chance de serem vítimas é 44% menor em relação aos com escolaridade mais baixa.
Do total de 875 atendimentos analisados na rede pública de saúde das capitais em 2014, predominaram as vítimas de intervenção legal (65,1%), seguidas por agressão (15,9%), lesão autoprovocada (1,5%) e outros acidentes (0,7%). As intervenções legais são conflitos entre agentes de seguranças e outras pessoas em situações como operações policiais em comunidades, por exemplo.
Os ferimentos por bala foram responsáveis por 29% das 61.268 internações hospitalares por agressões e tentativas de suicídio ocorridas no Brasil, naquele ano. A dimensão da violência, contudo, é ainda maior. “Possivelmente, grande parte das pessoas feridas por este meio não chega a ser atendida em um serviço de urgência e emergência, devido à sua alta letalidade. Isso pode ser observado na mortalidade por essas mesmas causas em 2014, em que 36,2% dos óbitos foram perpetrados com uma arma de fogo”, conclui o estudo.
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Foto: ARQUIVO/EBC