A capacidade de julgar, distinguindo o bem e o mal, nos actuais tempos

O que fazer face a todas estas situações? Só conheço uma forma. Actuar em todos os campos da sociedade em defesa da democracia e aprofundá-la em todas as suas instituições.

Por Irene Flunser Pimentel, no Público

Aqui há uns dois anos, o jornalista e escritor Olivier de Guez entrevistou-me, como a outros portugueses, para tentar desfazer aquilo a que ele chamava mistério português, o único país da Europa onde não havia movimentos populistas de extrema-direita, racistas e xenófobos importantes, e muito menos no Parlamento. O resultado das entrevistas foi um artigo, intitulado La mélancolie portugaise, rempart contre le national-populisme (Points, 13/4/2017). No entanto, se o jornalista francês cá voltasse hoje, veria que a situação, embora não completamente, já é outra.

Portugal, como é evidente, não é um país imune – nem poderia sê-lo, pois é europeu e também segue o “ar do tempo” – a esses fenómenos que mancham as democracias, desde logo a nossa. Democracia imperfeita, como todas as democracias, mas não preciso de citar Churchill, para lembrar que é o nosso mais precioso património, que por isso deve ser defendido e aprofundado diariamente.

Aqui chegados, cabe não nos distrairmos com insultos contra as nossas instituições, bem como com lutas corporativas ou que tendem a isolar os seus protagonistas e a dividir, em vez de unir, no combate contra o inimigo principal e comum, a nível europeu e em Portugal. E este é o nacional-populismo de extrema-direita, a xenofobia, o racismo, a homofobia e o sexismo que minam a democracia (liberal). Penso assim que é um dever de cidadania juntar-me aos que alertam contra os perigos que assombram a nossa democracia e lembrar que os inimigos desta têm em comum a utilização dos próprios mecanismos e das instituições democráticas para a destruir.

Muito brevemente, sem mencionar causas estruturais como o aprofundamento da desigualdade económico-social provocado pelo neo-liberalismo financeiro, nem manifestações racistas e/ou sexistas que abalam internamente instituições democráticas como os nossos aparelhos judicial e policial, recordo alguns recentes episódios, reveladores dos perigos que enfrentamos.

Entre estes, conta-se o facto de um canal televisivo privado propagandear objectivamente Salazar e a sua Ditadura, através da convocação de uma manifestação de carácter fascista e de uma entrevista a um neonazi confesso, preso devido a crimes de violência racista. Manifestação, aliás, cuja comunicação às autoridades não mereceram destas nenhum reparo, e que, quanto a mim, não cabe no âmbito da liberdade de expressão constitucional, devendo, por isso, ter sido proibida. Já uma manifestação de jovens contra o racismo e a violência policial no bairro da Jamaica, no Seixal, sem comunicação prévia dos seus promotores, na Avenida da Liberdade, foi reprimida de forma desproporcional.

Erguiam-se contra a violência policial no bairro da Jamaica (Seixal), o qual não deveria existir e, por isso, espero sinceramente que os meus impostos sirvam para realojar os seus habitantes em condições dignas de habitação. Num artigo do jornal britânico Guardian sobre estes acontecimentos, intitulado Lisbon’s bad week: police brutality reveals Portugal’s urban reality, uma jovem do bairro afirma: “Evidentemente que não queremos guerra com a polícia; no entanto, temos de lhe mostrar que temos direitos – assim como temos responsabilidades – e o seu comportamento tem de mudar.” A jovem tocou no ponto central, segundo penso: não à violência policial e à manifestação de sentimentos racistas e de extrema-direita no seio da polícia, nem se deve insultá-la, generalizando numa inteira instituição o comportamento de alguns.

É certo que, devido em parte às teorias luso-tropicalistas, que continuam a florescer por aí, o racismo em Portugal não é claramente combatido e, mesmo se ele não se expressa sempre às claras, não deixa de existir. Tem, aliás, raízes históricas importantes e múltiplas, entre as quais a Inquisição, a escravatura, o longo colonialismo português e a guerra colonial que apenas terminou em 1974/75.

Outro aspecto preocupante é o surgimento de partidos de extrema-direita que aguardam a sua legalização, para se candidatarem nas eleições europeias, reforçando assim o mundo nacional-populista e eurocéptico, xenófobo e racista europeu. Como não dizem ao que vêm – da mesma forma não o fez o até agora único partido neofascista legal –, passarão provavelmente pelo crivo do Tribunal Constitucional. Ora este, talvez não devesse apenas julgar o texto, mas também o comportamento já conhecido dos promotores de tais agrupamentos

Ultimamente também, neofascistas e neonazis ocupam, sem vergonha, o espaço público português assediando e agredindo. Aconteceu, em Lisboa, a Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, e, em Braga, a um jovem activista antifascista. Quem pode e deve combater este tipo de violência é precisamente a polícia da democracia. Até no próprio Parlamento, pela primeira vez, a líder de um partido de direita, Assunção Cristas, perguntou ao primeiro-ministro se ele condenava actos de vandalismo. Como muito bem escreveu Marisa Morais, ex-ministra de Cabo Verde, aqui neste jornal, nunca antes se tinha visto esse tipo de pergunta provocatória a outros primeiros-ministros, só podendo concluir – e bem – que a anormalidade de tal interrogação teria “por detrás uma intencionalidade” e “subjacente o preconceito”.

O que fazer face a todas estas situações? Só conheço uma forma. Actuar em todos os campos da sociedade em defesa da democracia e aprofundá-la em todas as suas instituições. Criar uma ampla frente que una no combate contra a discriminação, o racismo, a xenofobia e a extrema-direita nacional-populista, que se não chegaram agora a Portugal, pelo menos se expressam de forma mais agressiva e aberta. A responsabilidade é das nossas instituições, dos partidos e dos cidadãos em geral.

Nos anos 60 do século XX, a filósofa judia e refugiada Hannah Arendt recorreu ao imperativo categórico kantiano, lembrando, no seu livro Eichmann em Jerusalém, que, na Alemanha nazi, a sociedade alemã no seu conjunto sucumbiu a Hitler, num tempo em que desapareceram as máximas (morais) que determinam o comportamento social e os mandamentos da religião. Os raros seres humanos ainda capazes de distinguirem entre o bem e o mal tiveram “de julgar por eles próprios cada caso à medida que se apresentava, pois que não havia regra para aquilo que não tinha precedente”.

Os tempos referidos por Hannah Arendt foram os mais sombrios do século XX e não estamos – felizmente – numa época tão terrível como então, mas as nuvens têm-se claramente adensado. Por isso, tentemos usar diariamente a nossa capacidade de julgar, baseada em princípios éticos e morais, distinguindo entre o bem e o mal, como o fez o cônsul Aristides de Sousa Mendes, em Junho de 1940.

Dali: Capitalismo

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