Valor de R$ 100 mil doado pela mineradora motiva disputas entre parentes, ressurgimento de companheiros sumidos há vários anos e até sequestro de crianças herdeiras da compensação
por Junia Oliveira, em Estado de Minas
O rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, que tirou centenas de vidas em Brumadinho e causou um prejuízo socioeconômico de dimensões ainda incalculáveis, foi apenas o estopim para mais um infortúnio se abater sobre diversas famílias atingidas. Depois do primeiro baque, o dinheiro se tornou motivo de mais uma ruptura: a de laços familiares. Oferecida pela Vale a parentes de mortos e desaparecidos para reparar minimamente a catástrofe, a quantia de R$ 100 mil por vítima tem motivado a fragmentação de diversos núcleos familiares, tornando-se motivo de briga entre cônjuges, companheiros, irmãos, filhos e pais que disputam o auxílio financeiro.
A batalha não é regra, mas, em alguns núcleos, crianças que sofrem a perda do pai ou da mãe estão sendo submetidas a algo ainda mais cruel. Tendo direito a esse primeiro montante e sendo herdeiras de uma indenização que está por vir, a guarda delas se tornou centro de disputa. E, em meio à dor e aos conflitos, advogados de diversas partes do país desembarcam na cidade distribuindo cartões até em velório. A Defensoria Pública de Minas Gerais está de olho nos abusos e aguarda o encerramento das buscas para regulamentar as situações.
São inúmeros casos de disputas. Entre eles, os de ex-mulheres e ex-maridos que estão voltando para casa e requerendo direito aos R$ 100 mil. O retorno repentino tenta tirar de cena pais e mães com quem os antigos cônjuges, vítimas da tragédia, passaram a morar depois da separação. O caso se agrava ainda mais quando a pessoa que morreu ou está desaparecida vivia com um companheiro, sem ter formalizado um segundo casamento ou união estável. Sem contar os relacionamentos duplos.
Dois dias depois do rompimento da barragem da Vale, por exemplo, duas mulheres reivindicavam a condição de esposa de um funcionário terceirizado da Vale e chegaram a bater boca no Instituto Médico-Legal de Belo Horizonte. Uma delas alegou ter união estável e morar há dois anos com a vítima, em Venda Nova, na capital. A outra, que chegou ao local com os documentos pessoais para reconhecimento do corpo, também se intitulava esposa, dizendo não haver casamento no papel, mas que morava com o trabalhador, também em BH. Por fim, o homem foi registrado como solteiro e tendo como herdeiras as duas filhas de outros dois relacionamentos.
Para a diarista Malvina Firmino Nunes, de 61 anos, a dor de perder o filho, o auxiliar de almoxarifado Peterson Firmino Nunes Ribeiro, de 35, aumentou depois de se ver privada do convívio com os três netos. Ela conta que não os vê desde o enterro, no último dia 1º. Falou com o menino de 15 anos, recebeu afago do neto de 11, mas não conseguiu nem se aproximar da menina, de 6. Malvina era economicamente dependente do filho e agora está enfrentando dificuldades, já que não tem condição física nem psicológica de fazer a limpeza semanal de um escritório onde trabalhava.
A companheira e o filho não tinham a situação conjugal formalizada. “A gente não quer, o direito é dos meus netos. E espero que minha nora compre uma casa para eles morarem, porque meu maior medo é de as crianças ficarem desamparadas. Mas ela não entendeu isso, acha que eu quero os R$ 100 mil. Pelo contrário, quero que usem para estudar. Só não desejo que eles entrem nesse mundo ruim que tem por aí”, afirma. “Já não basta o sofrimento de perder meu filho, agora não tenho mais o direito de ter perto um pedaço dele. Essa tragédia destruiu e está destruindo muitos lares. Meu coração está cheio de sangue”, diz. “Esse é um dinheiro da maldição”, conclui.
A irmã de Peterson, Mary Firmino, endossa: “A Vale pode dar bilhões, mas nada vai trazer de volta a vida do meu irmão e o que tínhamos antes. Com ele aqui, poderíamos abraçar, beijar, brigar e voltar às boas. Agora, só choramos”. “Não é o momento de separar, mas de trazer os meninos para minha mãe ver e aliviar essa angústia. Por mais que minha cunhada esteja sofrendo, minha mãe também está”, diz Mary. O Estado de Minas entrou em contato por telefone com a nora de Malvina, mas ela não quis se manifestar sobre a questão.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais não sabe informar quantas crianças são vítimas dessa tragédia. A Vale também afirma não ter esses dados, embora esteja envolvida no cadastro das famílias. Uma das histórias mais graves em Brumadinho envolve duas crianças, filhas de uma funcionária que trabalhava no restaurante que foi varrido pela lama. O pai, que não fazia contato havia vários anos, reapareceu depois da tragédia e tirou à força os meninos da casa dos avós. A polícia conseguiu recuperar as crianças e o caso está sendo tratado como sequestro. Abalada e com medo do que pode ocorrer, a família preferiu não dar entrevista. O medo do reaparecimento de pais e mães biológicos é uma realidade em muitas casas, onde adolescentes têm preferido ficar com padrastos e madrastas, por quem foram criados.
Casos de disputa estão a cargo da Justiça, que definirá quem ficará com a guarda das crianças. “Esses R$ 100 mil estão sendo uma tragédia. As crianças viraram objetos e estão sendo disputadas”, afirma a conselheira tutelar de Brumadinho, Simone Brasil. Ela tem o papel de cercar de todo cuidado as histórias, para que candidatos a representante legal sem vínculo com meninos e meninas não saiam vitoriosos, sem legitimidade, nos processos.
A coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Caodca), promotora Paola Domingues, diz que nesses processos será feita análise caso a caso, considerando a característica da relação existente entre a criança e a pessoa que pleiteia a guarda, a partir de estudos sociais, para avaliar a situação dos pequenos e dos adolescentes. O Ministério Público de Minas Gerais também não tem conhecimento da quantidade de crianças que perderam os pais. “A Promotoria, enquanto fiscal da lei, vai acompanhar todos os processos que estão sendo propostos pelo MP ou todos que passam por ele”, diz.
Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o adolescente tem sempre que ser ouvido em relação a com quem quer ficar. Se tiver vontade de se manifestar e condição de expor a opinião, a vontade da criança também é considerada. “A manifestação delas tem um peso, mas a decisão é proferida com base em informações do processo e estudos sociais e avaliações que são feitas pelos técnicos do Poder Judiciário”, explica Paola Domingues. Ela ressalta que a prioridade é o cuidado especial com o público infantojuvenil envolvido no rompimento da barragem. “Direito à educação, saúde, assistência social… Todos eles devem ser resguardados, inclusive para esses que foram mais atingidos e que perderam seus responsáveis.”
Revoada de advogados
Além dos familiares das vítimas, um outro grupo está sendo atraído pelos R$ 100 mil: o de advogados. Todos os dias, profissionais do país inteiro chegam a Brumadinho à caça de clientes. Moradores relatam que muitos chegam em vans e distribuem cartões até em velórios. Não bastasse isso, advogados de Goiás, Santa Catarina e vários outros estados vão de porta em porta atrás de parentes de vítimas, oferecendo serviços. A Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG) informou que constituiu a Comissão Especial do Conselho Seccional de Apoio aos Desdobramentos do Rompimento da Barragem do Córrego do Feijão para prestar esclarecimento público sobre a atuação dos advogados, coibir o aliciamento de vítimas da catástrofe e orientar os atingidos sobre os cuidados que se devem ter na hora de contratar um advogado. O cidadão que se sentir assediado deve denunciar o caso à entidade.
Defensoria quer mediar disputas
A Defensoria Pública de Minas Gerais está identificando e monta estratégia para resolver as disputas, nas famílias em que elas existem. A ideia é procurar o Tribunal de Justiça e montar em Brumadinho um posto avançado para atender, em sistema de mutirão, a situações diversas, assim que os bombeiros derem as buscas por encerradas. Dentro das prioridades e sendo necessária para alavancar as outras questões, o primeiro passo será fazer documentos de união estável pós-mortem, para facilitar os trâmites e dar os direitos a companheiros legítimos de mortos ou desaparecidos. A segunda etapa é o procedimento de morte presumida em caso de corpo não encontrado, seguida pela regulamentação da guarda. De acordo com a Defensoria, são mais de 1 mil atingidos pelo desastre. “Primeiro precisamos declarar que os desaparecidos estão mortos para depois se chegar à guarda. Não podemos prescindir de rito algum, mas a ideia é fazê-los na hora. O Judiciário está sensível a isso”, afirma o defensor público de Minas Gerais Rômulo Carvalho.
A expectativa é de que equipes de assistentes sociais estejam presentes para fazer os laudos na hora, sobretudo em caso de guarda. O mutirão deverá ser a prioridade, deixando no aguardo os outros processos da comarca. “Esperamos que haja preferência em relação a isso no Judiciário, que precisará dar uma resposta a essa tragédia”, ressalta o defensor. Mas, em caso de conflitos, será impossível resolver imbróglios familiares em uma única audiência, fazendo-se necessário o estudo social. A Defensoria fará as ações pedindo a regulamentação e o MP deverá se manifestar.
A Defensoria está anotando as demandas para traçar estratégias de prioridades. O plantão é de 24 horas na Estação do Conhecimento, desde o primeiro dia da tragédia. “Estamos com receio de aproveitadores”, diz o defensor Rômulo Carvalho. A Defensoria vai mediar com a Vale situações conflituosas para que mais pessoas do núcleo familiar sejam beneficiadas pelos R$ 100 mil.
“A empresa quer pagar para uma pessoa. Mas, para um desaparecido que tem dois filhos com mulheres diferentes, por exemplo, recomendamos fazer o pagamento às duas. O mesmo para ex-mulher que dependia economicamente da pessoa”, afirma o defensor. “Não é pagar para aproveitador, mas para que, dentro dos vínculos afetivos e familiares, mais pessoas possam ser beneficiadas”, explica. Ele ressalta que promessa de doação tem elegibilidade jurídica. “Não é para quem a empresa quiser. Ela tem que doar e poderá ser exigido judicialmente.”
A Vale informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que os casos conflituosos serão analisados individualmente. De acordo com a mineradora, 253 famílias já receberam as doações, destinadas aos representantes de empregados da Vale, de trabalhadores terceirizados e de pessoas da comunidade falecidos ou desaparecidos.
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“Já não basta o sofrimento de perder meu filho, agora não tenho mais o direito de ter perto um pedaço dele. Essa tragédia destruiu e está destruindo muitos lares. Meu coração está cheio de sangue” – Malvina Firmino Nunes, de 61 anos, sobre a perda do filho, Peterson Firmino Nunes Ribeiro, de 35, e a privação do convívio com os três netos, levados pela nora no dia do sepultamento(foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.