No Taqui Pra Ti
Nem mesmo o Geraldão, que se gaba de conhecer a idade de todos os moradores do bairro de Aparecida, em Manaus, sabia quantos anos a Luzia tinha quando morreu. O tempo, que passa e vai semeando rugas e cabelos brancos, não tocou em Luzia, franzina, prestativa, solidária. Diariamente, às 6h00 da manhã, lá estava ela, sentadinha no batente de sua porta, com um rádio portátil marca Tecsun, de manivela, cor cinza patauá comprado no Sukatão do Jumbinho, ligado em alto volume para compartilhar a programação com os vizinhos.
Tantos anos depois, lembrei da Luzia porque nesta quarta (13) a UNESCO comemorou o Dia Mundial do Rádio, com merecida homenagem no Brasil a Ricardo Boechat, apresentador da BandNews FM, falecido dois dias antes em acidente de helicóptero. Muitos ouvidos ficaram órfãos da voz do “jornalista que fez do rádio sua maior vocação”, segundo a UNESCO, em cuja celebração se enfatizou o papel na democratização das informações das empresas radiofônicas, mas também das rádios comunitárias.
Entre esses programas alternativos ouvidos hoje por tantas Luzias estão dois que sigo fielmente. O primeiro é A Hora do Xibé, um projeto de extensão da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), hospedado na Rádio Rural de Santarém. Lá ouço a música de Nilson Chaves e Verequete. Lá foi lançado, no dia 13, o livro “Pajés, benzedores, puxadores e parteiras: os imprescindíveis sacerdotes do povo na Amazônia”, organizado por Florêncio Almeida Vaz, que traz reflexão antropológica sobre o xamanismo e dá voz a pessoas humildes e sábias sobre suas crenças, saberes e ofícios.
O segundo é a Rádio Yandê (“Nós” em línguas Tupi), criada em 2013, no Rio de Janeiro, para difundir as culturas indígenas, usando as novas tecnologias como uma “flecha digital” no combate ao preconceito e à desinformação. Esta web rádio, com mais de 180 correspondentes indígenas, conta em sua programação com músicas, entrevistas, depoimentos, poesias, denúncias e notícias. Pode ser acessada no site ou por aplicativo para celular e já ultrapassou os 2 milhões de ouvintes espalhados por todos esses brasis.
Manivela
Entre esses ouvintes, se viva fosse, poderia estar Luzia, embora seu rádio tivesse uma propriedade singular: funcionava com uma bateria que não gastava nunca e que, além de alimentar o próprio som, ainda servia para dar luz a uma lanterna colocada em uma de suas extremidades. Era um aparelho multifacético, que produzia som e luz ao mesmo tempo.
Luzia usava uma “manica”, nome dado antigamente pelos mecânicos de Manaus à manícula, uma manivela que fazia o papel do motor de arranque dos carros das décadas de 1940, provocando uma faísca para dar início à combustão. Depois da guerra, pararam de fabricar essas “fubicas”, cuja partida fez meu tio Nelson Cunha suar muita camisa girando repetidas vezes até pegar, no tranco, o motor do seu velho studebaker.
Com o rádio era parecido. Luzia ligava o aparelho e enquanto a música tocava, ela ia virando manualmente a manivela para carregar a bateria. Trata-se, segundo os entendidos, de um mecanismo banal. Talvez devido à ignorância nesses assuntos, confesso meu fascínio diante de tal engenhoca. Há muitos anos, numa passagem por Manaus, ao ver o rádio lanterna nas mãos da vizinha, não me contive:
– Luzinha, maninha, me empresta um instantinho?
A rádio estava sintonizada no programa do radialista Marcos Santos. Enquanto eu rodava a manivela, tinha a ilusão de que ele só conseguia falar porque eu estava girando a “manica” e que eu tinha o controle de sua fala, porque se parasse de carregar a bateria, ele se calava.
E daí? O que é que a rádio da Luzia tem a ver com a atual realidade brasileira?
Dona Mercedes
Tudo a ver. Podemos “filosofar” um pouco, aproveitando a metáfora do rádio que produz luz e som para seus ouvintes. Nesses tempos bicudos do circo de horrores instalado no país pela família Bolsonaro que trata a questão pública como privada, e seus ministros e laranjas: Queiroz, Damares, Moro, Bebianno, Ernesto Araújo, Ricardo Vélez, Ricardo Salles, Tereza Cristina e tantos outros, temos que seguir o exemplo da Luzia e girar continuamente a manivela, para carregar as baterias dos parlamentares, comunicadores, professores e ativistas sociais que combatem criticamente os descaminhos do país.
As águas do rio Negro subiram e desceram dezenas de vezes. Folhas dos benjaminzeiros e dos oitis-cagões da rua Xavier de Mendonça secaram e caíram anos após ano. Seus troncos apodreceram ou foram decepados. Luzia, no entanto, permanecia inalterável, acrônica, usando diariamente a manivela para que seu rádio não parasse de funcionar. Por isso, ela não envelhecia. Esse é o segredo da eterna juventude da Luzia: era ela que fazia seu rádio falar.
Nós também precisamos reabastecer as baterias da Rádio Yandé, da Hora do Xibé e de jornalistas como Boechat, que ouvia e reproduzia a voz de quem carecia ser escutado e por isso foi tão pranteado por gente como Marlene, hoje aposentada, mas com quem convivi mais de 30 anos saboreando o imbatível feijão nosso de cada dia que ela fazia com muita arte. Sua mensagem enviada pelo whatsApp, dizia:
– Gostaria de ler alguma coisa escrita por você sobre Ricardo Boechat.
Remeti a ela entrevista, que circulava nas redes sociais, de dona Mercedes Carrascal, 86 anos, que enfrentou altaneira o pior dos destinos, invertendo a ordem ‘natural’ das coisas ao enterrar o filho, “um homem honesto, correto, sincero que falava com o faxineiro ou com o mendigo de rua com o mesmo carinho” porque sabia “que todos somos todos iguais, não há raça superior, tem tanto valor um porteiro como um médico porque a sociedade necessita do trabalho de cada um. Não vamos acabar com os problemas sociais se não mudarmos as cabeças e se não exigirmos hospitais equipados, escolas públicas, trânsito ordenado. Não é caridade, é respeito” – ela disse.
– Ah, agora sabemos de onde veio Boechat. Está tudo explicado – respondeu Marlene.
Efetivamente, quem saiu de um útero como o da dona Mercedes, quem foi amamentado por ela e embalado no seu colo tinha de ser alguém capaz de se indignar com a injustiça. São Luzias e Marlenes desse Brasil que reabastecem baterias criadas por tantas Mercedes.
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Complementação de Combate: para quem não viu, reprozimos abaixo a fala de Dona Mercedes Carrascal, mãe de Ricardo Boechat