Treinados para não revelarem suas próprias dores, policiais militares de todo o país enfrentam números explosivos de transtornos mentais e suicídios sem quase nenhum apoio da corporação
Matheus Moreira, Thiago Picolo, A Pública
Há cinco anos, o pai de Fernanda, um policial militar de Santa Catarina, cometeu suicídio no caminho para o trabalho. O corpo do PM, de 40 e poucos anos, foi encontrado logo pela manhã dentro do seu carro, estacionado próximo à casa da família, que descobriu que a causa da morte era suicídio ao liberarem o corpo no IML. Jorge usou a própria arma de trabalho para por fim à vida.
“Foi algo que ninguém esperava, fomos descobrir que ele teve depressão depois que ele se matou. A depressão dele é aquela que tem alteração de humor, ele sempre teve isso. Depois que se matou que fomos entender o que era. Meu pai nunca falou sobre isso [depressão]. No dia achamos que tinham matado ele, não sabíamos que tinha sido suicídio. Até porque só falaram para a gente que ele tinha se matado perto do velório. Foi difícil porque ele não nos contava nada. Ele era bem fechado, era o jeito dele”, diz a filha.
A jovem, com 16 anos na época, conta que a Polícia Militar tinha ciência da necessidade de acompanhamento psicológico do seu pai. “A polícia também nunca tirou ele da rua, mesmo sabendo das situações. A polícia sabia, tanto que ele chegou a consultar um psicólogo da instituição, mas aí ele não quis mais ir, não gostou e não o obrigaram a sair da rua. Ele continuou trabalhando. Meu pai passou 20 anos na polícia, todo esse tempo na rua.”
Em todas as regiões do país, que conta com cerca de 425 mil policiais militares, são altas as taxas de suicídio e de transtornos mentais. Em São Paulo, por exemplo, estado com o maior efetivo policial do país (93.799 agentes),120 policiais militares cometeram suicídio entre 2012 e 2017.
São números explosivos, resultado de décadas de omissão, como explica Adilson Paes de Souza, hoje coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo. A primeira vez que viveu de perto um suicídio na instituição, lembra, foi nos anos 1980. Um de seus colegas na PM apareceu de surpresa no serviço, visivelmente alcoolizado. Não explicou o motivo da visita, mas Paes de Souza conta que ele fez questão de se despedir de um por um, antes de ir embora, de volta para o bar. Uma hora mais tarde, ele e seus colegas de farda foram chamados pelo superior para atender a ocorrência de um suicídio. Aquele PM, que alguns conheciam desde os tempos de academia, havia se matado.
Pesquisador de segurança pública, Paes de Souza é doutorando da Universidade de São Paulo (USP), e seu tema principal é a inadequação da formação policial para lidar com a pressão da violência cotidiana. O treinamento exigente – quando não abusivo – desde a entrada na corporação prolonga-se em um cotidiano de rigidez hierárquica e intimidação, agravando o estresse, o medo e a angústia inerentes à profissão. Quase sempre vividos em silenciosa solidão.
“Há muitos casos que não são notificados e muitos não buscam o tratamento psiquiátrico porque vão sofrer chacota no ambiente de trabalho. Serão chamados de covardes e fracos; os comandantes podem crer que eles estão enrolando para matar serviço, por exemplo. É um ambiente bem machista e de virilidade, em que não podemos assumir fraquezas. Eu fui treinado assim, com os trotes na academia, os trotes das unidades em que passei. Você é humilhado e tem que aguentar porque o bom militar aguenta, o guerreiro aguenta toda e qualquer violência e acha isso normal. Nos fazem achar que fomos feitos para isso, mas ninguém foi feito para isso. Quando a PM não assume que seus policiais têm problemas, a instituição está fechando uma panela de pressão vazia, sem água, que vai explodir um dia”, adverte Paes de Souza, que ainda carrega as cicatrizes da violência sofrida na profissão. “Bom, eu faço terapia”, diz.
Violência policial e sofrimento individual
O problema ocorre em todo o país, especialmente nas regiões em que a polícia é mais violenta, como o Rio de Janeiro. Um grupo de psicólogos da PM com pesquisadores do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), investigou a questão através de uma pesquisa realizada entre 2010 e 2012 entre policiais militares. Entre as conclusões, um dado impressionante: no Rio, os PMs têm quatro vezes mais chances de cometer suicídio em comparação à população civil.
Os resultados do estudo foram publicados em 2016 no livro Por que policiais se matam?, coordenado pela pós-doutora em sociologia pela Uerj Dayse Miranda. Entre os problemas apontados, estão a dificuldade de pedir ajuda e a forma como são tratados na corporação quando adoecem.
Entrevistado pelos pesquisadores, um praça da PM disse que passou a ser tratado de forma pejorativa pelos colegas e oficiais após a licença médica e seu retorno ao posto. “Fiquei 15 dias em casa; quando eu voltei pra trabalhar, eu estava trabalhando já com arma de fogo, normalmente. Não entrei nem em Sina [Serviço Interno não Armado]. Quando eu voltei, eu fiquei seis dias detido no batalhão, preso. É. Meu tratamento foi esse. Eu fiquei dois dias hospitalizado e 15 dias em casa. No 16° dia, eu voltei à companhia. Me entregaram à tropa e fui punido”, disse.
Os dados apresentados pelo estudo de Dayse e sua equipe revelam que 58 policiais militares tiraram a própria vida e 36 tentaram suicídio entre 1995 e 2009 no Rio de Janeiro. “Embora esses números sejam altos, o trabalho de campo revelou que essas cifras estão subestimadas. Muitos dos casos de suicídios consumados e tentativas de suicídio não são informados ao setor responsável por inúmeras razões. Entre elas, estão as questões socioculturais – o tabu em torno do fenômeno; a proteção ao familiar da vítima (a preservação do direito ao seguro de vida) e a existência de preconceito ao policial militar diagnosticado com problemas emocionais e psiquiátricos”, afirma o relatório da pesquisa.
De acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, entre janeiro de 2014 e junho de 2018 três PMs foram diagnosticados, por dia, com transtornos mentais. Entre janeiro e agosto de 2018, 2.500 policiais militares foram afastados por transtornos mentais, mais que o dobro dos afastados em todo o ano de 2014 (836).
Para os autores do estudo, os profissionais da saúde da PM devem estar atentos para sinais de deterioração da saúde mental dos agentes, “no atendimento ao policial militar, principalmente aquele em atividade-fim, e em constante atuação de enfrentamento junto à criminalidade, o profissional de saúde deverá estar atento a comportamentos que demonstrem o afastamento das condutas de segurança requeridas para a prática da ação policial militar”, e complementa: “deve-se afastá-lo de sua arma de fogo ou outro meio que tenha à disposição e conduzi-lo ao psicólogo. É interessante entrar em contato com familiares ou amigos próximos na tentativa de fortalecer a rede de apoio”.
Números explosivos
Ao longo de dois meses, a reportagem enviou mais de 50 solicitações de acesso à informação para os 26 estados e Distrito Federal, questionando as secretarias de Segurança Pública sobre o número de policiais que cometeram suicídio e a quantidade de PMs afastados do serviço por transtorno mental. Onze estados e o DF informaram ter registros de suicídios, mas apenas dois enviaram os dados referentes ao período de janeiro de 2008 e julho de 2018, como solicitado pela reportagem: Pernambuco e Rio Grande do Sul.
Ainda que incompletas, as informações obtidas mostram que a quantidade de policiais militares afastados nos estados que responderam às solicitações é alta. Há relatos de afastamentos e suicídios em todos os 26 estados e no Distrito Federal. No Espírito Santo, por exemplo, aumentou o número de tentativas de suicídio entre PMs após a greve que paralisou parte dos policiais no estado no início de 2017. A Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar e Bombeiro Militar do Espírito Santo (ACS/ES) registrou, nos meses seguintes à greve, pelo menos cinco suicídios. Além disso, ao menos 13 policiais da 5ª Companhia do 4º Batalhão da PM foram afastados por agravamento de transtornos psíquicos. Entre as causas mais comuns relatadas está a perseguição perpetrada por oficiais de patentes superiores nos momentos pós-greve.
Em São Paulo, entre 2006 e 2016, 182 policiais militares cometeram suicídio: uma morte a cada 20 dias. A partir de 2012, a situação piorou. Entre aquele ano e 2017, 120 policiais militares tiraram a própria vida, um a cada 15 dias. Dados do relatório da Ouvidoria das Polícias do estado, publicados pela Ponte Jornalismo, mostram que houve 71 casos de suicídio em entre 2017 e 2018. Mais grave: houve crescimento de 73% nas ocorrências, com 20 casos ao longo de 2017 e 51 registros em 2018.
No Rio Grande do Sul, 50 PMs cometeram suicídio entre 2008 e 2018, período em que 10 se mataram em Pernambuco. No Ceará, entre 2011 e 2018, foram 18 PMs mortos por suicídio; enquanto no Rio Grande do Norte, entre 2010 e 2018, foram oito os suicídios – mesmo número dos ocorridos entre 2015 e 2018 em Alagoas.
Já no Distrito Federal, foram 11 suicídios entre 2016 e 2018, mesmo período em que 21 PMs se mataram na Bahia, de acordo com a Associação de Policiais e Bombeiros e de seus Familiares do Estado da Bahia (Aspra-BA). A PM baiana não confirma nem disponibiliza outros dados referentes aos suicídios cometidos no período.
Também forneceram dados sobre suicídios de PMs Maranhão – cinco mortes entre 2014 e 2018 –, Mato Grosso do Sul – 12 suicídios – e Paraná, 26.
Suicídio de PMs por estado
PMs afastados por transtornos mentais por estado
PMs afastados por ano
Os demais estados alegaram falta de informações precisas sobre afastamentos e suicídios ocorridos na última década, uma dificuldade que o pesquisador Adilson Paes de Souza conhece de perto: “A instituição [Polícia Militar] não se abre. Você mal consegue dados e, sem eles, não é possível estudar o fenômeno ou entender como ele surgiu, como se manifesta e quais os caminhos para se superar esses problemas. Os poucos dados que se obtêm pela Lei de Acesso à Informação são, na maioria das vezes, incompletos”, diz.
Para Paes de Souza, a rotina de negar ou proteger dados relacionados à segurança pública no Brasil ganhou força durante o regime militar. “Em 1969, no auge da repressão, houve um decreto-lei, o 667, de 1969, que criou os policiais à imagem e semelhança do Exército. Uma tropa militarizada para combater os inimigos da sociedade. E essa tropa militarizada era considerada a nata, a casta, os únicos que poderiam salvar a nação do comunismo. Os militares acreditavam e acreditam que são a elite, que são os únicos que sabem o que é bom para todos. E, portanto, eles não precisam prestar contas a ninguém. É por isso que é tão difícil conseguir dados”, afirma.
O problema dos dados se repete quando a pergunta é sobre a quantidade de PMs afastados da função devido a transtornos mentais. No estado de São Paulo, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação apontam que 4.115 policiais foram afastados para se submeterem a tratamentos psiquiátricos entre 2008 e 2018. Entretanto, em setembro de 2017, o portal de notícias VICE Brasil recebeu, também via Lei de Acesso à Informação, dados que apontavam que “entre 2006 e 2016, 15.787 PMs foram afastados temporariamente da corporação para se submeterem a tratamentos psiquiátricos”. Procurada pela Pública, a Polícia Militar do Estado de São Paulo não deu esclarecimentos sobre a discrepância numérica até a publicação desta reportagem.
Seis estados negaram à reportagem o acesso aos dados: Ceará, Pará, Goiás, Rondônia, Sergipe e Piauí. No geral, a justificativa apresentada pelos estados foi que as informações requeridas eram de caráter pessoal dos policiais e, portanto, sigilosas. Os dados requeridos pela reportagem não previam a identificação de nenhum servidor, apenas estatísticas e informações quantitativas.
Medo de morrer
A função “policial militar” está entre as mais perigosas, e o peso da alta mortandade profissional, somado ao temor da morte, pode ser, paradoxalmente, dois entre muitos fatores que influenciam a decisão do PM de cometer suicídio. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um policial militar ou civil foi morto por dia em 2017 no Brasil.
Em 2014, o Rio de Janeiro foi o estado em que mais pessoas morreram em decorrência de ações policiais, foram cerca de 3 mil mortes. Paradoxalmente, no mesmo ano, o estado também foi o que mais perdeu policiais para a violência, com 98 mortos, seguido de São Paulo, com 91. “No geral, dos 398 policiais militares mortos por homicídios em 2014, quase 25% correspondem às mortes de policiais somente no estado do Rio de Janeiro. Esses dados sugerem que a alta exposição de policiais militares à letalidade policial pode torná-los mais suscetíveis à vitimização letal”, explicam os autores de “Por que policiais se matam?”.
O temor de adquirir transtornos mentais e comportamentais foi um dos temas da pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública em 2015. De acordo com o estudo, que ouviu mais de 10 mil agentes de segurança pública, 53,7% dos PMs têm receio “alto” e “muito alto” de desenvolver transtornos mentais. Dos PMs entrevistados, 15,1% sofrem de transtornos mentais comportamentais (TMC), como depressão e esquizofrenia, por exemplo.
Há outros fatores de risco para suicídios e transtornos mentais aos quais PMs estão expostos. A começar pela rigidez hierárquica, que faz com que os agentes escondam o problema de seus superiores. De acordo com a pesquisa “Vitimização e percepção de risco entre profissionais do sistema de segurança pública”, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2015, 55,4% dos policiais militares têm receio “alto” e “muito alto” de manifestar discordância da opinião de um superior. Um problema agravado pela formação a que se submetem, como afirmou Paes de Souza, o que faz com que esses profissionais sequer procurem ajuda.
“No Rio de Janeiro, muitos PMs resistem ao afastamento porque acabam não entendendo [a sua necessidade]. Por serem formados para servir em qualquer circunstância, muitos têm o sentimento do dever e chegam a trabalhar [durante a folga] prestando serviços de segurança. Isso é muito comum”, explica Dayse Miranda. Ela também alerta para os prejuízos concretos que sofre o PM que passa por atendimento médico. “Com o tratamento psiquiátrico e a licença, o PM perde a gratificação ou adicional por algum tipo de trabalho. Isso é puni-lo duas vezes, puni-lo por estar doente. A desculpa é que o estado não garante isso. O estado do Rio não se importa com a saúde do policial militar. Eles querem colocar homens na rua e não consideram a sua vida. Os PMs saem atirando a esmo porque estão com medo”, ressaltou.
Em Santa Catarina, a situação não é diferente. “Aqui, se você tira licença médica ou tira férias, o PM perde R$ 700 do salário, então o policial prefere trabalhar do que perder aquele valor. Eles não param. Meu pai trabalhava como segurança por fora. Ele trabalhava cerca de 15 ou 16 horas. Trabalhava como segurança particular em supermercados e padarias, mas não podia, a PM não deixa”, conta Fernanda*.
Um estudo realizado em 2009 por Joana Helena Rodrigues da Silva, mestre em psicologia escolar e desenvolvimento humano pelo Instituto de Psicologia da USP, aponta para a relação entre a prática policial e implicações na saúde mental dos agentes. Para Joana Helena, o mesmo policial que vai às ruas com o intuito de combater a violência está vulnerável a ela e “não somente enquanto cidadão, mas também quando se coloca como combatente”.
Assim, o indivíduo submetido às práticas policiais passa a enxergar a sobrevivência de maneira física, comprometendo sua capacidade de reflexão, ou seja, “renuncia a tudo aquilo que não seja a destruição daqueles que querem destruí-lo”.
Corda bamba
Em uma padaria na região central de Joinville, Henrique, um ex-policial militar de Santa Catarina e marido de Fernanda, reflete sobre esse assunto: “O policial está sempre em uma corda bamba: se você vacilar, você morre. Se você exagerar, vai preso. Será que eu arrisco levar um tiro ou arrisco dar um tiro?”.
O relato do ex-PM catarinense corrobora a tese defendida por Joana Helena de que o policial em situação de risco pode recorrer involuntariamente à violência como mecanismo de defesa e, assim, utilizar as ferramentas à sua disposição para tal: a força física, a arma de fogo e o respaldo jurídico.
As promoções na carreira também ficam prejudicadas, de acordo com Paes de Souza. “A promoção de oficiais é por merecimento ou por tempo de polícia. E por merecimento você pode ser promovido mais rápido, porém, se você tem algum transtorno psicológico na sua ficha, é possível que você não seja escolhido para determinados postos para ‘não dar problema lá’”, explica.
Outro fator de risco para os policiais são os problemas familiares, que surgem como consequência do estresse da profissão e do baixo valor dos salários. Segundo a mesma pesquisa do Fórum de Segurança Pública, 51% dos policiais militares já tiveram problemas para garantir o sustento de suas famílias. Para complicar, 39,4% dos PMs têm familiares que sofreram algum tipo de violência e/ou ameaça por serem parentes de um policial, e 31,8% sofreram algum tipo de violência e/ou ameaça como forma de retaliação pela atuação do parente.
Ter um comportamento violento dentro de casa em consequência da tensão profissional também é comum. “O cara vai descontar em casa; vai desenvolver alcoolismo, uso de drogas ilícitas, dependência de remédios, como antidepressivos, e tentativas de suicídio. Se alguém acha que é normal a cada 15 dias um policial militar cometer suicídio, esse alguém deve estar louco”, diz Paes de Souza.
Uma pesquisa realizada pelo mestre em psicologia e coordenador da Saúde da Polícia Militar de Santa Catarina, Gustavo Klauberg, organizou dados do afastamento de 5.777 policiais e bombeiros militares do estado entre 2013 e 2016. Dentre as conclusões de Klauberg, destaca-se a prevalência de 6,32% de servidores com TMCs.
A pesquisa de Klauberg utilizou o sistema de corte transversal para analisar os dados de afastamentos da PM-SC. Na prática, isso significa que as causas prováveis das doenças e seus efeitos foram observados no mesmo intervalo temporal. Isso se mostra importante na análise, pois, sendo os transtornos mentais doenças influenciadas pelo cotidiano do paciente, contextos sociais específicos podem criar um ambiente favorável para o aumento no número de casos.
O pesquisador conclui que “cuidar da saúde do policial militar estadual é, portanto, estratégico para o Estado de Santa Catarina, tanto do ponto de vista econômico, considerando o investimento de dinheiro público nas forças de segurança, quanto de eficiência profissional, já que a saúde exerce importante influência no desempenho e na qualidade do serviço prestado”. Ele ressalta que, entre 2014 e 2016, o governo do estado de Santa Catarina gastou mais de R$ 40 milhões com o pagamento de salários de PMs e bombeiros afastados. Em 2014, o governo desembolsou cerca de R$ 6,5 milhões; já em 2016, o valor superou os R$ 18 milhões.
Além disso, os dados mostram que 79% dos 5.777 afastados tinham funções operacionais, como o policiamento. Klauberg conclui ainda que a maioria esmagadora dos pacientes, 97,3%, está nos cargos mais baixos da hierarquia. Entre 2014 e 2016, o aumento de servidores afastados foi de 238,4%.
São muitos os fatores que podem elevar o estresse dos agentes a níveis críticos. Entre os que aparecem com maior frequência em pesquisas, como a de Klauberg e de Dayse Miranda, estão históricos de abuso de álcool e outras substâncias, exposição a situações de estresse e violência, trabalhos em dois turnos e, também, maus-tratos por superiores na hierarquia militar.
Risco para si e para sociedade
De acordo com o Anuário do Fórum de Segurança Pública Brasileiro de 2018, 5.144 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais no Brasil. Isso equivale a 14 mortos por dia.
Um policial militar com transtornos mentais não diagnosticados ou não tratados pode representar um risco para si e para a sociedade; a alta exposição a situações de risco de vida acarreta, explica Klauberg, em sua dissertação, no aumento dos níveis de cortisol do indivíduo.
O cortisol é um hormônio envolvido diretamente no controle do estresse. Quando em excesso, pode resultar em falta de atenção, lapsos de memória, dificuldade de concentração e, a longo prazo, distúrbios do sono e alimentares. Esses sintomas, somados ao porte de arma e à atividade estressante da função policial, podem acarretar, por exemplo, excessos durante abordagens cotidianas que, teoricamente, seriam simples.
Para o coronel Adilson Paes de Souza, é possível compreender o comportamento violento e excessivo de policiais em abordagens com base no estudo da psique pela ótica do psicanalista referência na área, Sigmund Freud. Paes de Souza ressalta: “Segundo Freud, em A psicologia das massas, a massa tem uma psique própria, que é muito mais do que a junção das psiques dos sujeitos que a compõem. É aí que mora o perigo. Eu posso estar conversando com vocês sobre violência, depois ir ao Morumbi assistir a um jogo e matar um cara junto com outros torcedores violentos; e aí você me pergunta: por quê, Adilson? E eu não tenho como explicar, eu fui assimilado pela massa e aconteceu. Da mesma forma que os policiais cristãos vão à igreja, são absolutamente religiosos, mas quando assumem o serviço saem na rua e matam um, dois”.
Ele explica que a formação do policial militar, assim como a dos militares das Forças Armadas, tem uma ideologia própria e é transmitida a todos os policiais. “Eu fui formado durante a ditadura. Fui formado para saber que ‘militar é superior ao tempo; militar não chora; militar não sente medo; paisano [civil] é bom, mas tem muito’. Hoje, depois de 30 anos de PM e de estudos, eu percebo que estávamos sendo doutrinados”, relata. Para ele, essa ideologia transmite a sensação de heroísmo aos PMs. Em sua analogia, o coronel compara os policiais ao Super-Homem [Superman]. “’Eu sou o Super-Homem, tenho superpoderes, mas não sou bem resolvido’. Esse é o policial militar. O suicídio é uma das opções. O PM não aguenta. O falso eu do policial é ser um super-herói. Então, talvez, o PM cometa suicídio para eliminar esse falso eu e proteger o verdadeiro eu”, conclui.
800 mil suicídios por ano
Todos os anos, cerca de 800 mil pessoas cometem suicídio no mundo. Na prática, isso equivale a uma morte a cada 40 segundos. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS). Só no Brasil, mais de 11 mil pessoas se matam todos os anos.
O ato de atentar contra a própria vida não é uma novidade deste século, mas está crescendo em ritmo acelerado, junto com a ocorrência de transtornos mentais. O suicídio já foi considerado uma doença, uma espécie de “loucura momentânea”, mas essa ideia foi descartada e enterrada com a publicação de O suicídio, de Émile Durkheim no século 17. De acordo com o sociólogo francês, são inúmeras as causas que podem levar uma pessoa a dar fim à própria vida. São tantas as possibilidades que não seria possível apontar causas, mas apenas disposições e fatores agravantes.
De acordo com o autor, ainda em 1897 já era possível dizer que o suicídio não é um evento individual nem uma loucura que toma conta do ser humano. Para Durkheim, o suicídio nasce da soma de tendências suicidas, transtornos mentais e contextos sociais. Porém, nenhum desses elementos seria a sua causa e, sim, pontos de pressão que podem ou não culminar num suicídio consumado.
Para Durkheim, o suicídio é um fato social e sua preponderância nas sociedades se dá pela coesão social, ou seja, quando a sociedade não é unida e vive entre tensões sociais, verifica-se maior ocorrência de suicídios.
Quando as instituições sociais não cumprem tão bem seu papel porque estão desmoronando, as normas de convívio social acabam enfraquecidas e a vida em sociedade pode se tornar angustiante e desmotivadora, de maneira que essas ocorrências se somam a questões individuais que terminam por levar o sujeito a cogitar o suicídio.
Durkheim sugere, logo de início, que o suicídio está ligado ao passar do tempo. Ele traz dados de países que, no século 17, já demonstravam maior ocorrência de mortes voluntárias autoinfligidas em pessoas com mais de 40 anos, aumentando com o envelhecimento.
“Não só o suicídio é muito raro na infância, mas é com a velhice que atinge o seu apogeu e, entre a infância e a velhice, aumenta regularmente com a idade […] Mesmo o recuo por volta dos 80 anos, além de ligeiro e nem um pouco geral, é relativo. Visto que os nonagenários se suicidam em igual ou maior proporção que os sexagenários, e sobretudo mais que os homens em plena força da vida. Por aqui não se vê que a causa responsável pela variação do suicídio não poderia consistir em uma impulsão congênita e imutável, mas na ação progressiva da vida social?”, escreveu.
É importante ressaltar que, no período em que Durkheim chegou a tais conclusões, o mundo tinha outros contextos sociais que permeavam o suicídio como fato social. Agora, nos primeiros 19 anos do século 21, tem-se noticiado um aumento expressivo e alarmante de suicídio na infância. De acordo com o Mapa da Violência Letal contra Crianças e Adolescentes do Brasil, entre 2003 e 2013 houve um aumento de 10% nos casos de suicídio entre crianças e adolescentes dos 9 aos 19 anos no país. Um dos fatores que pode estar ligado a esse aumento, por exemplo, é a dificuldade que pais e professores têm de notar sinais que indicariam a possibilidade de ocorrência de transtornos mentais.
De qualquer forma, o suicídio ainda impera entre os mais velhos. E as suposições de Durkheim encontram eco nas mortes de policiais militares em todo o Brasil, não somente quando relacionadas a faixa etária, mas também quando somadas ao contexto social e profissional em que vivem as vítimas.
*Os nomes foram modificados para preservar a identidade da fonte.
Essa reportagem é resultado da Microbolsa de Violência Policial, realizado pela Agência Pública e a Conectas Direitos Humanos.
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Ilustração: Helô D’Angelo/Agência Pública