A violenta emoção que absolve

por Antonia Pellegrino e Manoela Miklos*, em Folha S. Paulo

No dia 30 de dezembro de 1976, aproximadamente às 16 horas, Ângela Diniz, 32, mais conhecida como “pantera de minas”, estava em sua casa no balneário de Búzios (no estado do Rio de Janeiro) quando decidiu acabar definitivamente sua ligação amorosa com o playboy Doca Street, 40.
Juntos há três meses, Ângela quis terminar o namoro por causa do ciúme doentio de Doca. O casal discutiu, Street arrumou suas coisas, colocou tudo no carro e se afastou da casa, para retornar em seguida, sem nenhuma explicação. Tentou a reconciliação, mas diante da negativa, pegou sua pistola automática e disparou quatro tiros contra a cara e o crânio de Ângela.

O primeiro julgamento, ocorrido em 1979, terminou com o tribunal do júri absolvendo o réu e condenando a vítima. Ângela Diniz foi descrita pelo advogado de defesa de Doca como uma “Vênus lasciva”, “dada a amores anormais” —referência a um caso homossexual que teria tido. O defensor era o criminalista Evandro Lins e Silva e conseguiu convencer os jurados de que seu cliente agira “em legítima defesa da honra”.

Revoltadas, as feministas foram às ruas com o slogan “quem ama não mata” e conseguiram uma vitória extraordinária: anular o julgamento, para que outro acontecesse. Neste, Doca foi condenado a 15 anos. A partir deste episódio, a legítima defesa da honra e a forte emoção são considerados ilegais e inconstitucionais pelo STJ e STF.

Sabemos que companheiros e ex-companheiros, familiares, amigos, conhecidos ou vizinhos foram os responsáveis por 68% dos casos de violência física, 65% da violência psicológica e 38% da violência sexual sofrida por mulheres só no estado do Rio de Janeiro em 2016, segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), vinculado ao governo estadual.

Pais, padrastos, parentes, conhecidos, amigos e vizinhos também foram acusados de 37% dos estupros de vulneráveis no período. Mais de 60% dos estupros e dos crimes de lesão corporal dolosa e 40% das tentativas de homicídio contra as mulheres ocorreram dentro de casa.

Ao contrário da ideia comum de que o lar é um local seguro para mulheres e de que a rua é perigosa, é justamente dentro de casa que ocorre boa parte da violência contra a mulher. Mesmo assim, o governo Bolsonaro flexibilizou a posse de armas em 2019, ano que já começou com uma escalada vertiginosa dos números de feminicídios.

É neste contexto que o atual ministro da Justiça, Sergio Moro propõe seu projeto de lei anticrime. O PL trata segurança pública como persecução penal, mas reduz ou deixa de aplicar pena em caso de legítima defesa.

Uma das medidas propostas pelo ex-juiz federal diz respeito ao excludente de ilicitude, que se aplica aos policiais e também a qualquer cidadão. Moro pretende alterar o artigo 23 do código penal, de modo que: “o juiz poderá reduzir a pena até metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Na prática, significa que, numa briga de casal, se uma pessoa assassinar a outra, poderá alegar que cometeu o “excesso” devido “a violenta emoção”. Retrocedemos aos tempos de Doca Street, mas com um agravante: agora a absolvição é sumária.

O ex-juiz federal Sergio Moro construiu sua imagem de herói graças à operação Lava Jato e hoje já é ícone da operação que passa pano do governo Bolsonaro. Se mantiver o projeto como está, Moro ainda vai entrar para a história como um dos piores inimigos das mulheres.

*Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.

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