Nota Abrasco sobre a perversa tragédia da Vale em Brumadinho

Por Vilma Reis, Abrasco

Passados pouco mais de três anos do desastre socioambiental envolvendo as empresas de mineração Samarco/Vale/BHP ocorrido em Mariana, é com profundo pesar e indignação que a Abrasco volta a se manifestar para alertar a comunidade da saúde coletiva e a sociedade como um todo sobre os significados e implicações do novo desastre ocorrido em 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho com o rompimento da barragem controlada pela empresa Vale.

Mais uma vez nos solidarizamos com todos os atingidos e seus familiares, assim como com todas as entidades, movimentos sociais e sindicais que, nesse momento, se mobilizam para compreender e enfrentar os trágicos efeitos do novo desastre. Assim como o ocorrido em 2015, consideramos que o atual desastre deve ser tratado como tragédia de gravíssimas proporções. Dessa vez presenciamos o maior acidente de trabalho da história do país em termos de mortes de trabalhadores.

A pergunta que todos nesse momento nos fazemos e devemos responder é por que tragédias anunciadas continuam a acontecer, e o que precisamos fazer para transformar as causas que as produzem. Consideramos que mais esse desastre da megamineração expressa não apenas trágicas consequências para a saúde dos trabalhadores, das populações nas áreas afetadas e para o meio ambiente, mas uma crise mais ampla do desenvolvimento, da democracia, da atuação do Estado e das políticas públicas.

A Abrasco, por meio desta Nota e outras ações futuras, reafirma seu compromisso de buscar esclarecimentos e apontar caminhos para que as condições que levaram a mais essa terrível tragédia sejam transformadas e possamos construir para um futuro mais justo, democrático, sustentável e saudável.

O alerta de 2015 como tragédia anunciada e ambiental permanece atual

Em 25 de novembro de 2015 a Direção da Abrasco, junto com seus Grupos Temáticos (GTs) de Saúde e Ambiente e de Saúde do Trabalhador, publicou uma Notasobre o trágico acidente da Samarco, empresa controlada pelas empresas Vale e a australiana BHP, em Mariana, MG. O desastre matou 19 pessoas, a maioria trabalhadores terceirizados, e afetou dezenas de cidades em MG e ES às margens do rio Doce. Até hoje as populações, principalmente as mais atingidas e vulneráveis, lutam para recuperar sua dignidade em questões básicas relacionadas às condições de moradia, saúde e trabalho.

Nota afirmava que o desastre ocorrido em Mariana era uma tragédia anunciada, e alertava que novos desastres voltariam a ocorrer caso não fossem implementadas profundas mudanças na forma como o modelo da megamineração se expandiu no país. Esse modelo extrativista, priorizando lucros de curto prazo na exploração de recursos naturais, flexibiliza critérios de licenciamento e atenua riscos ocupacionais e ambientais. Desrespeita não apenas a vida de trabalhadores e comunidades, mas a própria natureza e as populações que vivem e dependem dela. No caso do desastre da Samarco, além de agricultores familiares, a forma com que indígenas, pescadores e populações negras foram atingidas demonstrou a presença do racismo estrutural e ambiental.

A seguir reproduzimos alguns trechos da Nota Abrasco sobre Mariana que poderiam ser aplicadas para o desastre recente da Vale em Brumadinho.

“A tragédia atual é uma repetição agravada de várias outras que vêm acontecendo nos últimos anos. Portanto, uma tragédia anunciada e que se relaciona diretamente com fundamentos centrais da saúde coletiva e do movimento pela reforma sanitária no Brasil: a determinação social da saúde, o enfrentamento das desigualdades sociais, espaciais e ambientais, e a luta por democracia”.

O Brasil é o segundo maior exportador de minério de ferro, e a Vale é a maior empresa mundial neste ramo, além de grande financiadora de partidos e políticos que, eleitos, atuam como legisladores e gestores. Este fato alimenta a postura absurda de várias “autoridades” eleitas ao relativizarem as responsabilidades de empresas que os apoiaram financeiramente.”

Empresas, com tecnologias e formas de gestão inseguras e perigosas, se espraiam na busca pelo lucro rápido da megaprodução, fato agravado por conjunturas de quedas nos preços do volátil mercado de commodities. Essa é uma das armadilhas de nosso modelo de desenvolvimento atual.

Os impactos socioambientais e sanitários da nova tragédia produzida pela Vale em Brumadinho: a defesa do SUS e das políticas públicas

Passados mais de três anos sem que as injustiças ocorridas com o desastre da Samarco/Vale/BHP fossem reparadas, uma nova tragédia anunciada ocorreu com o rompimento da barragem da Vale na Mina Córrego do Feijão. Dessa vez com o lastimável título de maior desastre industrial do Brasil em termos do número de trabalhadores mortos. Dados recentes indicam 169 mortos, 151 desaparecidos e 138 pessoas desabrigadas.

A lama atingiu e praticamente acabou com a vida do rio Paraopeba, afetando toda a população que dele depende. Além de ter afetado a aldeia Naô Xohã, do povo Pataxó Hã-hã-hãe, que vive junto ao rio Paraopeba, a lama caminha para o Rio São Francisco. Caso as medidas de contenção dos resíduos tóxicos que estão sendo tomadas não funcionem adequadamente, os efeitos socioambientais poderão ter proporções ainda maiores, já que milhões de pessoas vivem nos 507 municípios de seis estados abastecidos pelo rio São Francisco.

Uma avaliação preliminar realizada pela Fiocruz2 dos impactos do desastre da Vale em Brumadinho aponta, à luz da experiência de Mariana, diversos problemas de saúde pública que deverão ser objeto de cuidadoso acompanhamento. Dentre eles podemos citar o agravamento de doenças crônicas já existentes na população afetada, tais como hipertensão, diabetes, insuficiência renal, tuberculose, dentre outras. Também são esperados novos problemas relacionados à saúde, como depressão e ansiedade, crises hipertensivas, doenças respiratórias, acidentes domésticos e surtos de doenças infecciosas como disenteria, hepatite e esquistossomose. Alterações socioambientais poderão também acarretar ou agravar novos surtos de dengue, zika, chikungunya e febre amarela.

A atuação do SUS, da Defesa Civil e do corpo de bombeiros demonstra a importância do Estado e do sistema público de saúde na resposta a desastres como esse, seja no resgate e assistência aos atingidos pela tragédia, seja na vigilância e promoção da saúde no nível local. Sem o SUS público e presente no território com seus princípios básicos previstos na Constituição e na legislação brasileira, as consequências da tragédia seriam ainda mais graves e desumanas. Instituições de pesquisa e formação vinculadas à saúde pública têm tido um papel importante no fortalecimento do SUS e seus profissionais, além da sociedade como um todo.

O maior acidente de trabalho da história do país gerado pela Vale

A tragédia da Vale em Brumadinho é o maior acidente de trabalho em número de mortes registradas já ocorrido no Brasil.

Diferente dos mortos da barragem de Fundão em Mariana, em sua grande maioria terceirizados, dessa vez os trabalhadores diretos também foram violentamente atingidos. Levantamento preliminar feito mostrou que, entre o total de 310 pessoas mortas já identificadas e desaparecidas, cerca de 90% eram trabalhadores vinculados à Vale, 5% da comunidade e outros 5% cujos nomes até o momento não foi possível identificar sua origem.

Dentre o conjunto dos trabalhadores, há uma inversão no número de mortos identificados e desaparecidos. Os identificados são, em sua maioria, diretos da Vale (65%). Já os desaparecidos são, em sua maioria, terceirizados e outros prestadores de serviços (cerca de 72%). A principal hipótese para esse dado é que diversos terceirizados, no momento do acidente, encontravam-se realizando tarefas em áreas a céu aberto, justamente as de maior perigo por serem próximas ao local de ruptura da barragem. Supõe-se que muitos trabalhadores diretos encontravam-se no momento do desastre no refeitório, escritórios ou áreas edificadas nas quais a busca por corpos é facilitada.

Diferente do ocorrido com o desastre da Samarco em Mariana, o ocorrido em Brumadinho parece mostrar um agravamento dos precários níveis de proteção dos trabalhos diretos da Vale. Isso pode estar associado a uma tendência geral de precarização do conjunto das relações de trabalho. Além disso, no caso de Brumadinho a barragem rompida fazia parte da Farteco Mineração, do grupo alemão Thyssen Krupp Stahl, até 2001, quando foi comprada pela Vale. Relatórios anteriores indicam a falta de documentos sobre o estado da barragem para avaliar as condições de segurança da mesma. Diante da atual tendência de precarização das relações trabalhistas e formas irresponsáveis de privatização e atuação do Estado, futuros estudos devem avaliar com mais clareza seus impactos sobre a saúde dos trabalhadores, da população em geral e do meio ambiente.

O número de vítimas graves ou mortais na comunidade restringiu-se basicamente à pousada Nova Estância e casas próximas à barragem. Áreas atingidas um pouco mais distantes do local de rompimento da barragem tiveram um pouco mais de tempo para tomarem providências, mesmo sem os sinais de alarme previstos. Caso estes tivessem funcionado adequadamente, o número de vítimas teria sido muito menor.

A tragédia socioambiental e sanitária da megamineração é também da democracia

Como já apontado em Mariana, o sistema de regulação e fiscalização da segurança de empresas de mineração é extremamente falho e ineficiente, com ampla margem de autorregulação de empresas geradoras de riscos. Foram necessários dois desastres de grande porte considerados os piores da história do país (da Samarco/Vale/BHP em Mariana como o pior desastre ambiental, e o da Vale em Brumadinho como o com maior número de trabalhadores mortos) para que um órgão do governo (Agência Nacional de Mineração) decretasse o fim para apenas 2023 de barragens de rejeitos a montante com método de alteamento, consideradas extremamente perigosas. Apesar dessa medida, as expectativas não são positivas para o futuro diante da existência de inúmeras outras barragens a montante de populações expostas, do desmantelamento do Ministério do Trabalho e da fragilização de órgãos públicos de controle e fiscalização.

Uma das explicações para tal tragédia também pode estar baseada em análises como a dos economistas Beluzzo e Sarti3. Eles mostraram que a Vale distribuiu aproximadamente 66% do lucro líquido acumulado para os seus acionistas entre 2008 e 2017, embora o limite mínimo obrigatório a ser distribuído seja de 25%. Em relação aos investimentos em operações, quando são desagregados, observa-se que os gastos em “pilhas e barragens de rejeitos” foram reduzidos pela metade entre 2014 e 2017 (US$ 474 milhões para US$ 202 milhões). O mesmo ocorreu com os gastos em “saúde e segurança” (US$ 359 milhões para US$ 207 milhões). Apenas os investimentos nas áreas “social e proteção ambiental” mantiveram-se relativamente constantes no patamar de US$ 250 milhões, apesar da tragédia ocorrida em novembro de 2015 com o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana.

Ambos os desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho demonstram a falácia da maior eficiência das empresas privadas frente às públicas e estatais. A irresponsabilidade de corporações preocupadas com lucros de curto prazo em detrimento da segurança e saúde de trabalhadores e da população como um todo, além do meio ambiente, revela a necessidade de rever os critérios de atuação do Estado e das políticas públicas. O Estado tem sido permissivo e incapaz de defender os direitos coletivos e os bens comuns da sociedade.

Diante desse quadro, infelizmente devemos esperar a ocorrência de novos problemas e desastres causados pelo atual modelo de expansão da mineração no país. Reverter essa situação somente será possível com mudanças expressivas no atual quadro político-institucional do país que fragiliza políticas públicas relacionadas à defesa da saúde, dos trabalhadores, do meio ambiente, da educação, dos povos tradicionais e da agricultura familiar, dentre outras. Toda a sociedade á atingida e deve se mobilizar.

A lama tóxica atingiu a consciência de toda a nação, que com perplexidade verifica como a mineração e suas grandes corporações, como a Vale, continuam a desprezar vidas humanas e a natureza em nome do lucro rápido. É necessário que a sociedade brasileira, com a solidariedade internacional, aprenda com as tragédias ocorridas na busca por justiça social, sanitária, ambiental e histórica. A Abrasco reafirma seu compromisso com a democracia, a saúde, a sustentabilidade ambiental e os direitos humanos na construção de alternativas de desenvolvimento que respeitem a vida e a dignidade.

Referências:

1 Abrasco. 2015. Nota Abrasco sobre a tragédia da mineração em MG: SAMARCO-VALE-BHP. Publicada em 26 nov 2015.

2 Observatório do Clima e Saúde. Icict. Fiocruz. 2019. Avaliação dos impactos sobre a saúde do desastre da mineração da Vale (Brumadinho, MG). Publicado em 01 fev 2019.

3 Belluzzo LG, Sarti F. 2019. Vale: uma empresa financeirizada. Le Monde Diplomatique. Publicado em 11 fev 2019.

Foto original: El País.

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