O dia seguinte do bizarro carnaval Bolsonaro

“A vitória da Mangueira, no Rio de Janeiro, é um cala-boca para o discurso bolsonarista que tenta apagar a história de racismo e colonialismo do Brasil”, diz Glauber Piva, em sua coluna na Fórum

Por Glauber Piva*, em Revista Fórum

Bolsonaro perdeu a disputa simbólica durante o carnaval. Homenageado em todas as regiões do país com ofensivos e ensurdecedores gritos de guerra, chegou no pós-carnaval revolvendo as próprias cinzas e tentando virar o jogo. Como se estivesse fazendo uma denúncia, postou um vídeo bizarro e alimentou uma falsa polêmica como se ainda estivesse em campanha eleitoral. Mas não entendo que seja possível uma compreensão lisa e sem arestas. O momento segue sendo acirrado e controverso. Vamos a algumas considerações:

  1. A vitória da Mangueira, no Rio de Janeiro, é um cala-boca para o discurso bolsonarista que tenta apagar a história de racismo e colonialismo do Brasil. A história que a história não conta foi uma homenagem às mulheres, negros e índios calados e mortos violentamente ao longo de séculos. Foi, principalmente, uma reverência aos heróis da resistência. Do ponto de vista da disputa política mais recente, a Mangueira homenageou, sobretudo, Marielle Franco, sobre quem toda homenagem será pouco. Ao homenageá-la, mostrou que o povo preto, pobre e favelado do Brasil não aceita o preconceito contra o carnaval desse obscuro presidente.
  2. Bolsonaro, cansado de ser agredido no carnaval, resolveu chocar e compartilhou um vídeo obsceno e impróprio. Eu não sei se o vídeo é desse carnaval, como ele afirma. Isso pouco importa, já que pode ter sido feito em qualquer lugar ou situação. Ao divulgá-lo, Bolsonaro pretendeu duas coisas: repetir a estratégia usada na campanha, depois da manifestação “Ele não” para reagrupar os seus apoiadores e, assim, riscar o chão como que invocando uma guerra santa contra o carnaval. Mas, como bem lembrou Renato Rovai e tantos outros, ao fazer isso ele jogou contra o próprio país – tão beneficiado pela economia da indústria do turismo nessa época -, foi ridicularizado no mundo todo e ampliou, em plena quarta-feira de cinzas, uma dúvida já existente: será que ele está à altura do cargo?
  3. Não foi só a Mangueira que homenageou Marielle Franco, mas também a Vila Isabel, que ficou em terceiro lugar no mesmo desfile do Rio de Janeiro. País afora, outras tantas homenagens à própria Marielle e, sobretudo, ao que ela representava: mulher, negra, periférica e de luta. Junto aos gritos de “Ei Bolsonaro, vai tomar no c*”, há uma clara tensão social que manda um recado: não há coitadismo. Ou você nos respeita, Bolsonaro, ou não respeitaremos você.
  4. Vou insistir. Essa quarta-feira de cinzas é de Marielle Franco. É preciso que isso fique marcado nas nossas avaliações políticas.
  5. O vídeo de Bolsonaro, os impropérios que proferiu contra a Xuxa e tantos outros, são apenas parte de uma estratégia de comunicação política. É claro que, para seus opositores, o debate aberto em torno de direitos civis (que vai muito além do que apenas questões morais) é muito indigesto. É óbvio que o vídeo divulgado pelo presidente é desagradável e ofensivo. É óbvio que, ao fazer isso, ele tenta nivelar por baixo a ideia de carnaval, conversando diretamente com os setores mais conservadores da sociedade. Assim, aquele risco feito no chão foi também um risco em torno de si mesmo e de seu grupo de apoio mais conservador e menos politizado. Esse grupo, muito possivelmente, ficará ainda mais fechado com ele, mas dificilmente terá capacidade de se multiplicar com facilidade, já que as confusões da família Bolsonaro são, também, cada vez mais escatológicas e indigestas.
  6. Ricardo Salles calado é um poeta. A frase não é nova, mas se aplica. O também idiota ministro do meio ambiente (no sentido grego, claro), ficou ofendido com a crítica de Philipp Lichterbeck no site da rede alemã Deutsche Welle. O alemão disse que a gestão de Jair Bolsonaro está “caminhando para transformar o meio ambiente brasileiro num inferno”. E descreve, da seguinte maneira, os apoiadores do governo: “são pessoas que agem e falam com arrogância e crueldade. São pessoas que riem quando morre uma criança de sete anos. Que comemoram quando a polícia comete massacres em favelas, quando morrem ambientalistas ou vereadoras negras. Pessoas que não conhecem a diferença entre flertar e assediar. Pessoas com relações com milícias.” Salles, que tem a cara e o figurino dos tucanos paulistas, invocou o nazismo para criticar o colunista alemão, desvelando, de maneira insistente, seu nível intelectual e emocional. O pior, nisso, não é o destempero no twitter, mas a intolerância e obscenidade política de todo um governo que o ministro do meio ambiente apenas faz ecoar.
  7. Como não lembrar de Zé de Abreu nesse pós-carnaval? Como Guaidó pretende ser, Zé de Abreu é presidente e faz o Bolsonaro perder o rumo, ficar nervoso e invocar os profetas da justiça sem direito. Ninguém é inteligente se não souber rir de si mesmo. Bolsonaro é mal-humorado, um intolerante que não suporta Zé de Abreu e sua liderança irreverente e popular. Nesta quarta pós-carnaval, mais uma vez ficou nervoso e perdeu a razão.

Para aqueles que estavam desatentos até agora, devo-lhes informar que o ano, enfim, começou. Ele não está bonito, não, mas ninguém pode negar que está bem emocionante.

*Pai do Théo e da Nina. Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), é um bisbilhoteiro da vida comum. Ultimamente escreve sobre cidades e infâncias, política e comunicação.

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