No RJ, MPF investiga destruição de usina que serviu para ocultar corpos na ditadura

Segundo depoimento de ex-delegado do DOPS, fornos da Usina de Cambahyba eram usados para incinerar presos políticos

por Clívia Mesquita, em Brasil de Fato

A Usina de Cambahyba, no município de Campo dos Goytacazes, é alvo de duas investigações do Ministério Público Federal (MPF). A primeira apura o uso das instalações para ocultar cadáveres durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). A segunda tenta descobrir quem são os responsáveis pela demolição dos fornos onde ao menos 10 presos políticos teriam sido incinerados nos anos 1970 na região norte fluminense pelo regime.

“De repente, os fornos já não existiam mais”, comenta a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ana Costa, que se deparou com a estrutura danificada em uma aula de campo em julho de 2018. Já em novembro, ela e os alunos encontraram só escombros. Ana aponta a destruição de um registro histórico no local onde as investigações ainda não foram concluídas. 

“Os movimentos de luta pela terra tinham uma proposta de transformar em memorial da repressão. Não só de manter mas de torná-lo um espaço importante da resistência a todo esse processo que foi a ditadura”, afirma.

Entre os desaparecidos de Cambahyba estão os militantes de esquerda David Capistrano da Costa, Luiz Ignácio Maranhão Filho e o casal Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva. Ana Rosa era irmã do jornalista e escritor Bernardo Kucinski, homenageado na 40ª edição do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.

Aqueles que não resistiam às torturas praticadas na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), e no DOI-CODI, na Tijuca, eram levados para as caldeiras e cremados nos fornos com portas de ferro da usina de açúcar. Os crimes vieram à tona pelo assassino confesso da ditadura e ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Cláudio Guerra em depoimento à polícia e publicado no livro “Memórias de uma Guerra Suja” (Editora Topbooks, 2012).

“Não necessariamente as narrativas desses episódios vindos das pessoas responsáveis pelas violações correspondem à realidade dos fatos, então é preciso ter cuidado. Por isso é tão importante o trabalho do MPF de dar seguimento às investigações e constituir provas com a materialidade ainda existente”, analisa Nadine Borges, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade no Rio de Janeiro.

A advogada ressalta que a Comissão da Verdade nas esferas estadual e federal tinham um prazo de dois anos determinado por lei para funcionar e foram encerrado em 2015. Desde então, o MPF é o único órgão brasileiro responsável por continuar investigando os crimes contra os direitos humanos na ditadura. “O Estado não pode permitir que desapareça a possibilidade de periciar um determinado local apontado como de violações, então o Estado continua sendo responsável por essa ação de destruição de lugares de memória”, completa.

Questionado sobre a destruição dos fornos, o MPF informou que “instaurou procedimento investigatório criminal para apurar o caso, porém o mesmo encontra-se sob sigilo”. Também afirmou, em nota, que aguarda uma perícia no local em breve, mas não deu um prazo.

Escombros e memória

“Como o assunto envolvia um importante membro da oligarquia campista de um lado [Eli Ribeiro Gomes], “terroristas” de outro, e não tinha consistência de provas materiais ou documentais, pode imaginar que não foi preciso muito esforço para que o assunto morresse”, disse Antonio Carlos Ornellas Berriel, diretor do Instituto Histórico e Geográfico de Campos dos Goytacazes. O prédio da Usina de Cambahyba não é tombado e a destruição do equipamento pode comprometer a construção de um memorial caso seja condenado.  

Para o vereador Leonardo Giordano (PCdoB), autor da lei que instaurou a Comissão da Verdade em Niterói, a destruição dos fornos é um exemplo concreto da falta de proteção da memória histórica no país. Por isso, ele destaca a importância das comissões municipais. O Ginásio Caio Martins, em Niterói, foi o primeiro estádio de futebol usado como prisão política na América Latina. Estima-se, segundo depoimentos, que mais de mil pessoas ficaram detidas.

“Infelizmente aqui no Brasil a gente ainda luta contra essas tentativas de apagar ao invés de reconhecer. A gente conseguiu fazer uma Comissão da Verdade ampla com participação da sociedade civil, OAB, universidades, movimentos populares. Tem uma proposta de memorial das vítimas no Caio Martins no prédio físico  encaminhado ao poder público para execução do governo do Estado do Rio”, comenta o parlamentar.

O trabalho de resgate resultou no relatório total da Comissão da Verdade de Niterói com capítulos específicos sobre o estádio e outros locais da cidade. A publicação deve ficar disponível na internet e virar um livro ainda este ano para consulta.

Edição: Vivian Virissimo

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