Dezenas de policiais civis e federais, sem apresentar ordem judicial, tomaram a USP na quinta-feira em uma operação para prender um pedófilo
Na Época
Nesta quinta-feira 28, por volta das 8h, quando se iniciavam as aulas regulares no curso de Letras, parte da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o inacreditável aconteceu.
Duas dezenas de policiais (civis e da PF) tomaram o prédio da Faculdade. Eles se apresentaram ostensivamente armados, como se estivessem indo para uma guerra. Porém “missão” era tão somente prender um aluno que estava em sala de aula. Nada foi comunicado às instâncias da Universidade. Por quê? Sigilo? Medo de que reitores e diretores universitários estivessem pactuados com o suposto criminoso?
Ao longo do dia, relatos sobre a ação iam aparecendo. Alunos e professores presentes falavam em truculência, ameaças, recusas em explicar do que se tratava ou mesmo de apresentar a devida ordem judicial que justificaria a invasão armada. Algo assim deveria ser apurado. Há centenas de testemunhas, entre alunos, professores e funcionários da Universidade. Em nota oficial, a Diretoria da Faculdade relatou, ainda de manhã, que a ação policial se deu “nos edifícios da Diretoria e Administração, Prof. Antonio Candido (Letras) e no de Filosofia e Ciências Sociais”. Que os policiais “fortemente armados entraram em salas de aula para buscar um aluno acusado de crime potencialmente grave que choca a comunidade”.
Aparentemente, a “força-tarefa” sabia quem procurar, mas não onde exatamente encontrar. Relatos, que, repito, devem ser apurados, confirmam a nota da Direção. Policiais invadiram (creio que o termo correto é este) várias salas de aula atrás do procurado (enquanto a entrada da Faculdade era guardada por homens de preto com metralhadoras a vista), pedindo inclusive que professores lhes entregassem as listas de presença. Depois de invasões de salas “por engano”, chegaram àquela em que o suspeito se encontrava e ali, entre dezenas de outros estudantes que nada tinham a ver com o acontecimento, ele foi preso.
O que era inacreditável agora se torna inexplicável.
A manifestação da Diretoria fez as perguntas pertinentes: “por que o aluno não foi preso na sua residência, como seria típico de um flagrante? Para quê interromper aulas com armas à vista na Universidade? Para quê mobilizar duas dezenas de policiais uniformizados e com uso de metralhadoras para prender o acusado nos prédios da USP?
Essas perguntas, cristalinas e republicanas, pedem por uma explicação dos envolvidos. Até aquele momento, ninguém sabia quem era o aluno acusado nem qual crime teria ele cometido. No meio da tarde, as “justificativas” foram aparecendo. A ação faria parte da Operação “Luz da Infância”, deflagrada em 26 Estados e no DF. Segundo o delegado-geral da Polícia Civil, Ruy Ferraz Fontes, no celular do aluno se encontravam armazenadas imagens que o ligariam a práticas de pedofilia. O delegado justificou a invasão das salas de aula para que o suspeito não conseguisse se desfazer do aparelho.
Creio firmemente que ninguém, salvo os próprios pedófilos, seja contra uma grande operação para prender e colher provas de um crime de tal ordem nefasto que, como disseram os diretores da Faculdade, “choca a comunidade” e, certamente, todo o país.
Ainda assim, o que era inexplicável se torna injustificável.
Pois nada do que foi alegado justifica polícia armada dentro de sala de aula. Repito: nada. O delegado-geral declarou que a investigação sabia quem era o procurado, mas não sabia o endereço de sua residência (sic). Sabia de seu celular, mas não sabia de sua casa? Numa operação desse porte, a “inteligência” policial não foi capaz de identificar o endereço de um estudante universitário?
Ora, se a polícia não sabia, a USP saberia e imagino que conseguir isso sem ferir o necessário sigilo da operação não seria tarefa impossível. Pois o suspeito deveria ter sido preso em sua residência, na entrada da Faculdade, na saída, no ponto de ônibus, na rua, onde fosse. Por que dentro de uma sala de aula, de um edifício universitário com milhares de outros alunos, funcionários e professores?
O delegado-Geral declarou, orgulhoso, que “a prisão foi realizada com todo o cuidado sem que ninguém se ferisse”, concedendo, talvez sem se dar conta, de que o perigo de ferir inocentes em plena sala de aula fosse uma possibilidade aceitável. Concedendo também que a inteligência da operação fora incapaz de pensar em uma estratégia de prisão menos arriscada.
A USP certamente irá exigir melhores explicações. Espero, sinceramente, que a polícia colabore para que uma operação justa e necessária (a prisão de centenas de criminosos perversos) não seja maculada por uma ação atrapalhada, espetaculosa, desproporcional e muito perigosa.
Isto porque o contexto histórico, o momento atual e o lugar da ação temerária são todos muito delicados e significativos. Estamos a poucos dias de “comemorar” os 55 anos do Golpe Civil-Militar que jogou o país (e dentro dele a Universidade pública) nos tempos de trevas, cassações, prisões arbitrárias e torturas que o atual presidente, eleito, celebra e envaidece. Tanto, e de tal maneira, que andou pela América Latina exultando outras ditaduras e outros ditadores. Um momento quase inacreditável, não fosse o fato de que tudo isso é dito, escrito e tuítado sem pudor, em que o Estado de Direito propõe celebrar a supressão do Estado de Direito!
Os apoiadores desse barbarismo antidemocrático veem e ruminam em suas redes sociais as Universidades públicas (e dentre elas a USP em especial) como antros de “esquerdistas”, “pervertidos”, doutrinadores contra Deus e contra a Pátria, “maconheiros inúteis” que “mamam nas tetas” do Estado e nunca viram Jesus em goiabeiras. Os neoliberais almejam sua privatização. O Ministério da Educação e muitos deputados almejam a intervenção em sua autonomia através de bizarrices fascistóides como o projeto “Escola sem partido”. Que nada disso seja mais do que meras coincidências ou uma infeliz farsa de primeiro de abril.
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Francisco Alambert é professor do Departamento de História da FFLCH-USP
Memorial aos Membros da Comunidade USP Vítimas do Regime da Ditadura Militar – Foto: Marcos Santos /USP