Quando ser homem faz mal à saúde

Marcada pela antifeminilidade e violência, a masculinidade tradicional afeta mental e psiquicamente os meninos, demonstra novo estudo. Que leva a indústria cultural a estimular uma hipermasculinidade, como em “Vingadores”?

Por Inês Castilho, em Outras Palavras

Dia desses, ao arrumar os brinquedos dos meus netos, três garotos de 5, 7 e 11 anos, levei um susto ao descobrir a quantidade de bonecos de super-heróis que eles acumulam. De Homem de Ferro a Capitão América, todos norte-americanos, exibem uma masculinidade tóxica: músculos que saltam e postura de combate, quando não armas nas mãos e corpos transformados em tanques de guerra.

Digo isso a propósito do filme Vingadores: Ultimato, o mais recente dos 21 filmes lançados pelos estúdios Marvel, pertencentes à Disney, e que teve início em 2008 com Homem de Ferro. Com lançamento simultâneo em todo o mundo, e no Brasil em 2.950 das 3.352 salas contabilizadas no país pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), tomou de assalto o imaginário de crianças e jovens. E assaltou também a alimentação, numa sinistra ação de marketing Disney-McDonald’s que brinda o consumo de mac lanches com bonecos vingadores em miniatura.

Corpos e mentes tornados fonte de lucros inimagináveis. Como diz Moriti Neto no o joio e o trigo:

“Neste 25 de abril, com o lançamento de Vingadores: Ultimato nos cinemas mundiais, com grande possibilidade de quebrar o recorde histórico de bilheteria pertencente a Avatar, filme de 2009, Disney e McDonald’s vão jorrar dinheiro (estimativas apontam uma arrecadação de três bilhões de dólares, quase 12 bilhões de reais, só de ingressos nas salas de cinema!) nas contas bancárias e nas ações no mercado financeiro, enquanto milhões de pessoas compram junk food para ter bonequinhos fajutos de Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva Negra e Gavião Arqueiro – lembrando que, dentre esses bilhões de pessoas, muitas certamente têm ou terão doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, câncer, hipertensão), a maior causa mundial de mortes, sendo parte significativa associada à má alimentação e ao consumo de ultraprocessados.”

Falemos agora da ocupação da subjetividade e do modelo de masculinidade que esses bonecos representam para as crianças. Músculos hiperdesenvolvidos, expressões faciais agressivas ou inflexíveis, eles vivem em guerra, supostamente em defesa do Bem contra o Mal, militarizando os relacionamentos em intermináveis lutas pelo poder. O fato de haver agora uma figura feminina entre eles é puro oportunismo, pois o modelo é o mesmo – não basta ser mulher.

Em que pese o papel dos heróis e super-heróis na conformação da subjetividade, e as possíveis lições aprendidas com “autores de mentes bem abertas que conseguiram e conseguem fazer trabalhos excelentes e politicamente progressistas”, como a Mulher-Maravilha, que usei num de meus filmes, salta aos olhos a hipermasculinidade dos heróis, todos brancos, e a ligação dessa deformação de gênero com o hipercapitalismo das corporações.

Masculinidade tóxica

A masculinidade tradicional faz mal à saúde física e mental dos meninos, afirmou a Associação Americana de Psicologia (APA) ao divulgar, recentemente, diretrizes para o trabalho dos profissionais de saúde mental com homens e meninos. Agora, imagine a hipermasculinidade representada por esses bonecos.

Mais de 40 anos de pesquisas mostram que a masculinidade tradicional é psicologicamente prejudicial e que a socialização dos meninos para reprimir suas emoções causa danos que repercutem interna e externamente, diz a APA. As diretrizes, 10 no total, reconhecem que as ideias sobre masculinidade variam nas diversas culturas e grupos de renda, etários e étnicos. Mas apontam para questões comuns como antifeminilidade, inflexibilidade, dificuldade em admitir fraqueza, violência e gosto pelo risco, aventura, conquista.

A associação já tinha diretrizes sobre o trabalho com mulheres e meninas e vários outros grupos definidos por idade, orientação sexual, minorias étnicas e linguísticas. Mas não oferecia um guia para trabalhar com homens, em parte porque eles eram considerados a norma. Em agosto de 2018 lançou o primeiro grupo de orientações para meninos e homens.

Homens cometem a grande maioria de crimes violentos, têm taxas de suicídio mais altas, mais doenças cardiovasculares e são mais solitários quando envelhecem, observa a APA. Ainda que tenham “maiores vantagens socioeconômicas do que as mulheres em todos os grupos étnicos”, pesquisas mostram que têm riscos de saúde específicos e morrem antes que as mulheres, em parte por causa de dietas mais pobres e comportamentos mais arriscados, como fumar. Evitam buscar ajuda, inclusive de psicólogos, porque isso os faria parecer fracos. E quando procuram ajuda, os psicólogos tendem a errar o diagnóstico, ao basear-se em sua aparência exterior – por exemplo, abuso de drogas ao invés de distúrbios mais internalizados como depressão.

Diante dos comentários negativos que inundaram a mídia conservadora, em resposta ao comunicado da APA, o professor de psicologia na Universidade de Redlands Fredric Rabinowitz, um de seus principais elaboradores, disse que estão tentando, com essas diretrizes, ajudar os homens a expandir seu repertório emocional, e não tirar a força que eles têm.

Quando meninos se tornam meninos

O documento reflete bem as dificuldades dos meninos, avalia Judy Y. Chu, professora na Universidade de Stanford e autora de Quando meninos se tornam meninos. Comportamentos vistos como “naturais” para os meninos refletem uma adaptação às culturas em que, para ser aceitos como “meninos de verdade”, exige-se que sejam emocionalmente estoicos, competitivos e agressivos, diz ela. Aos 4 anos, os meninos que retrata no livro eram sensíveis às emoções de outras pessoas e navegavam bem no mundo dos relacionamentos. Aos 6 anos, contudo, preocupados principalmente em provar que não eram meninas, já haviam se tornando menos perceptivos, articulados e receptivos, e mais cautelosos e contidos em seus relacionamentos.

“Quando meninos e homens desafiam as construções patriarcais de gênero, correm o risco de ser percebidos como fracassados ou fracos”, sustenta. “Mas quando mulheres, meninas e pessoas não binárias passaram a criticar sistemas patriarcais que as oprimiam, uma outra ideia começou a tomar forma: talvez esses sistemas também firam os homens, mesmo que lhes confiram certos privilégios”, considera a autora.

Os homens, especialmente brancos e heterossexuais, estiveram sobrerrepresentados nos estudos ocidentais, e suas necessidades e hábitos psicológicos eram considerados universais. Isso achatou o campo psicológico para todos, observa Matt Englar-Carlson, professor de aconselhamento da California State University em Fullerton, também da equipe que elaborou as novas diretrizes.

“Antes da segunda onda do movimento feminista, nos anos 1960, toda psicologia era a psicologia do homem. Muitos grandes estudos foram feitos apenas com homens e meninos brancos, que eram considerados representantes dos humanos como um todo”, afirma Stephanie Pappas, em artigo publicado pela APA.

No Brasil, a psicanalista Malvina Muszkat, 15 anos de trabalho com homens com histórico de violência doméstica e especialista em mediação familiar, lançou há um ano o livro O Homem Subjugado – O Dilema das Masculinidades no Mundo Contemporâneo, sobre a situação do homem diante da transformação das mulheres.

“O que observo entre os jovens é que as meninas estão sendo criadas para ser mais assertivas, enquanto os meninos deveriam estar sendo preparados para ser mais ternos. Mas a homofobia, entre nós, ainda é uma praga. Os pais muitas vezes temem estimular a ternura dos meninos, com receito de que sejam julgados fracos ou homossexuais”, diz ela. “Falta trabalhar com os homens, ajudá-los a ressignificar a masculinidade.”

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