Quem aplaude torturadores só pode esperar que o país vire o paraíso do extermínio
Na Folha
Creio ter sido Paulo Arantes o primeiro a formular que o sr. Bolsonaro não representava a ditadura militar, mas o porão da ditadura militar. O ideal não era Geisel, Golbery ou algo parecido. Na verdade, as velas de seu panteão queimavam por gente da laia de Ustra, Sérgio Fleury e Sylvio Frota.
É bom lembrar disso agora. Pois quem um dia acreditou que o exercício do poder iria moderar este governo, injetar alguma forma de “racionalidade administrativa”, deve ter tido a última decepção quando, nesta semana, viu o embate entre o núcleo militar e os ideólogos da revolução conservadora. Este governo tem lado e nada vai mudá-lo.
O que o Brasil está a testemunhar é apenas o primeiro capítulo de um programa que tem duas frentes principais. A primeira vem do céu. O mesmo céu para o qual os evangelho-fascistas levantam as mãos em oração responde com balas vindas de helicópteros contra populações pobres.
Comandado diretamente por um senhor que atende pela alcunha de governador do Rio de Janeiro, o país viu estarrecido um verdadeiro ritual macabro de abate elevado à condição de política explícita de extermínio.
Isso é apenas a face mais primária de um desrecalque. O Estado brasileiro sempre foi um necroestado. Sua função principal foi gerir a morte, o desaparecimento e a eliminação de parcelas de sua própria população. Sua herança escravocrata se perpetuou nessa lógica de que o Estado teria o direito natural de matar e apagar. Mas, nas últimas décadas, isso foi feito, em larga medida, em outro ritmo de visibilidade.
Agora, temos um necroestado espetacular, que entrega armas para a população enquanto ocupantes do Executivo saem para o abate. Estado que procura moldar a psicologia de seus cidadãos por meio da promessa de violência barata e acessível a todos.
A função disso é simples: é a lógica Sérgio Fleury no poder. Está tudo pronto para um país emergir de grupos de milicianos, de esquadrões da morte, com o beneplácito da vista grossa do governo. Quem aplaude torturadores só pode mesmo esperar que o país vire o paraíso do extermínio de pobres, pretos, índios e ativistas.
Mas o programa tem ainda outra frente. Esta não vem do céu, mas dos escaninhos da burocracia candanga. Nunca o país viu quatro meses de guerra tão aberta e declarada contra a educação nacional. Não se trata de um embate entre projetos distintos. Esse desgoverno não tem um projeto alternativo de educação. A falácia de que o país gastaria muito em humanidades e que deveria focar em exatas foi desmentida pelas últimas ações: corte linear de 30% das verbas de todas as universidades, corte de novas bolsas de mestrado e doutorado em todas as áreas.
Na verdade, o que lhe move é um projeto de claro combate a espaços mais ou menos autônomos de produção. As universidades, por mais que sejam controladas por avaliações e rankings, não se submetem por completo ao Estado. Ninguém pode fazer com as universidades o que o sr. Bolsonaro se julga no direito de fazer com bancos públicos: censurar peças publicitárias que não sejam do seu agrado.
Espaços dessa natureza devem ser destruídos o mais rápido possível. Todos devem estar submetidos ao servilismo ao Estado ou à irracionalidade performática dos ditos “mercados”. O verdadeiro horizonte aqui é a despolitização da sociedade para que a irracionalidade de uma economia de pauperização e concentração não encontre fricção alguma. De um lado, sociedade despolitizada; de outro, lógica de concentração e de livre-comércio para alguns defendida à bala.
Não é à toa que o ideólogo de tal projeto de despolitização e de engenharia social não é outro que um jurista nazista, Carl Schmitt. Pois isso já foi tentado antes, nos anos 1930, na Alemanha.
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Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.
Se não bastasse todas estas estratégias para tomar o país de assalto, eles ainda contam com o apoio de boa parte da população.