Luiz Eduardo Soares defende o fim da militarização das polícias e vê pena de morte aplicada a jovens pobres no Brasil
por Eduardo Nunomura, em CartaCapital
Antes que a entrevista acabasse, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares compartilhou notícias pelo WhatsApp que recebeu de moradores do Complexo da Maré, na zona norte do Rio, denunciando policiais militares que atiravam de dentro de um helicóptero. “Não sei se viu os vídeos do governador Witzel conclamando à barbárie, se apresentando como vingador, justiceiro, entrando ele mesmo com policiais armados no helicóptero, um negócio inacreditável”, relatou. “Essa é a nossa realidade, que invade nossa entrevista.”
Uma das maiores autoridades sobre segurança pública no Brasil, Soares estava em Nova York para ajudar na seleção de projetos da Open Society Foundations e falou sobre o lançamento do livro Desmilitarizar, da Boitempo, enquanto a violência eclodia em seu estado natal. Ironicamente, parte da sociedade aplaude e tira selfies com forças policiais, como nas manifestações em 2015, enquanto uma maioria se vê na mira de fuzis.
Crítico do governo de Jair Bolsonaro, o ex-secretário Nacional de Segurança Pública (janeiro a outubro de 2003) afirma que o “Estado Democrático de Direito não está em plena vigência” e a hora é de bloquear a derrocada.
CartaCapital: O senhor afirma que o pacote denominado Anticrime do Sérgio Moro instaura, na prática, a pena de morte no Brasil. Poderia explicar melhor?
Luiz Eduardo Soares: Esse pacote constitui uma tragédia. De 2003 a 2018, houve 15.061 mortes no estado do Rio de Janeiro provocadas por ações policiais. Elas já correspondem a 25% dos homicídios, caminhando para um terço. Sem que haja controle. Pelo contrário, há autorização tácita e estímulo por parte do governador Witzel e do governo federal. E esse projeto está legitimando e legalizando não só a pena de morte, que é a execução extrajudicial, mas a execução sem julgamento. A imensa maioria dos casos é arquivada. O Ministério Público não está cumprindo seu papel constitucional de controle externo da atividade policial e acaba sendo cúmplice. E a Justiça abençoando toda essa insanidade.
CC: O pacote também reforça a política de encarceramento?
LES: Temos 60 mil homicídios dolosos por ano. Estima-se que a taxa de resolução desses casos é de 8%. Mas isso não faz do País o paraíso da impunidade. O que há é uma inversão de valores e prioridades. Está se prendendo muito e muito mal. O delito mais grave, o homicídio doloso, é negligenciado, porque atinge jovens, negros e pobres dos territórios vulneráveis. Mas as prisões estão superlotadas. Quem está sendo preso e por quê? Só 13% estão cumprindo pena por homicídio doloso. O subgrupo composto pelos que transgrediram a lei de drogas é o que tem mais crescido desde 2007. Já são 28% do total de presos. Mas estamos falando do “aviãozinho”, o pequeno varejista das substâncias ilícitas, que tem sido preso em flagrante delito, sem arma, sem violência, e aparentemente sem qualquer nexo ou relação orgânica com organizações criminosas. Estamos destruindo vidas e construindo um futuro mais violento, alimentando as facções, oferecendo a elas mão de obra gratuita.
CC: Por que ocorre essa inversão de valores e prioridades?
LES: A polícia mais numerosa é a militar. Ela é proibida de investigar, de acordo com o artigo 144 da Constituição, que define a arquitetura institucional da segurança pública. Lá está dito que cabe à Polícia Civil investigar, e à Militar, o trabalho ostensivo, preventivo, uniformizado. Essa divisão entre duas polícias constitui um modelo que só existe no Brasil e que, obviamente, não deu certo. Mais de 70% dos profissionais de segurança pública não concordam com ele. A PM está presente em todas as cidades e é pressionada a produzir. Mas como ela prende se não investiga? Só lhe resta prender por flagrante delito. Mais de 80% dos casos são de um crime mais simples. A lei de drogas é o grande instrumento para o trabalho do policial militar. O policial militar captura o varejista, sem investigação. O encarceramento em massa decorre do casamento perverso entre nosso modelo policial e a lei de drogas.
CC: Por que chegamos a esse ponto?
LES: Há muitos anos, os governos estão dando velhas respostas. Quando damos mais do mesmo obtemos o mesmo resultado, apenas intensificado. E continuamos nas operações às cegas, matando 61 mil pessoas por ano, e promovendo um verdadeiro genocídio de jovens pobres e negros por conta da brutalidade do Estado. A população passou a clamar por soluções miraculosas, messiânicas, autoritárias, que impusessem a ordem. Vamos acreditando que para vencer o crime é preciso uma polícia violenta, que não respeite limites, a Constituição ou os direitos humanos. Com isso vamos degradando as nossas instituições, e gerando núcleos de interesse que favorecem o surgimento de milícias.
CC: O seu livro faz uma defesa enfática da desmilitarização das polícias. Bolsonaro propõe o oposto disso. Estamos entrando em um período de trevas?
LES: É tão obscura a situação, que nem percebemos que estamos imersos nessas trevas. O governo Bolsonaro aponta no sentido do estímulo à violência policial, que elogia e celebra a ignorância. É a intensificação de um processo que nos levou a esse desastre. O Estado precisa parar de matar e reorganizar as polícias sob a égide da legalidade constitucional, valorizar os seus policiais na ponta, reformar as estruturas de organização. As nossas são velhas e inteiramente incapazes de operar no século XXI, são uma herança da ditadura. Precisa também criar políticas de proteção da vida, sobretudo dos jovens.
CC: Como seria possível desmilitarizar as polícias?
LES: As polícias do mundo que têm algum destaque fazem o ciclo completo. Muita gente pensa que isso se dá por unificação. Mas a unificação se aplica quando tem uma polícia pequena. Em São Paulo, onde há mais de 100 mil policiais, quase um terço das Forças Armadas brasileiras, não dá. Podemos ter polícias metropolitanas ou municipais em São Paulo, desmilitarizadas, com ciclo completo, e destaco aqui uma grande bandeira da massa policial, a carreira única. Há duas polícias dentro das polícias civis, militares ou federais: a instituição dos delegados e não delegados, e a dos oficiais e não oficiais. Só em alguns casos, como na Civil, é possível fazer um concurso público para delegado. Mas há jovens recém-saídos das universidades, com 20 e poucos anos, que podem dirigir um grupo de homens e mulheres civis muito mais experientes.
CC: Para a desmilitarização ocorrer, o senhor defendia uma coalizão reformista ampla. Mas como dar esse primeiro passo?
LES: Estamos indo rumo à selvageria, à barbárie, ao aprofundamento da desigualdade, com a pobreza se expandindo, a miséria absoluta voltando a crescer, todos esses ataques terríveis a universidades, a ciência e tecnologia sofrendo todo tipo de restrição. E o Estado Democrático de Direito não está em plena vigência. Basta lembrar o caso de Lula, o principal líder da oposição está preso. O que podemos fazer no momento é bloquear a devastação, a derrocada.
CC: O senhor foi coautor de livros capitais, Elite da Tropa e Cabeça de Porco, que esboçaram um retrato sombrio sobre o que estava acontecendo nos anos 2000. Como se sente em ver que quase tudo o que escreveu nessas obras virou realidade?
LES: O curioso é que isso, com alguns detalhes distintos, aqueles relatos não eram uma antecipação a futuros possíveis, mas a constatação empírica do que já verificávamos. Lembro da Elite da Tropa 2, que saiu em 2010, em que há descrição detalhada de como as milícias empreendem projetos populares habitacionais, picaretagens assassinas. A Muzema e a tragédia recente do Rio estavam lá. Antes, existia aquela realidade absurda, mas havia governos democráticos apontando na redução de desigualdades, de enfrentamento do racismo, de abertura de novas possibilidades para os arranjos geopolíticos, estávamos diante de horizonte de esperança. Mas os ventos da inovação não chegaram a promover mudanças nos territórios vulneráveis e nas instituições que têm sido operadoras da brutalidade do Estado.