Hoje, o país nas ruas. E depois?

Tsunami da Educação contagiou as escolas e pode espraiar-se pela sociedade, a partir desta quarta. O que ele revela sobre as fragilidades do projeto neoliberal e a necessidade de uma oposição verdadeira

por Antonio Martins, em Outras Palavras

Poucas vezes uma greve foi tão necessária quanto a que estudantes e educadores farão hoje, em centenas de cidades. Ela pode tirar o país de uma contradição paralisante, que perdura há meses. Por um lado, o governo Bolsonaro patina. A completa ausência de projeto, a precariedade intelectual e a incapacidade do diálogo fecham-lhe os caminhos. Seus projetos estacionam no Congresso. Uma sequência de atos irresponsáveis aumenta, a cada dia, os riscos de um impeachment – ou de revezes que levem à renúncia. A mídia, que abriu caminho para ele, indispõe-se. No entanto, uma espécie de agenda implícita avança avassaladora – que não tinha, até agora, oposição relevante. Desmonte dos serviços públicos, a ponto de faltarem, no SUS, medicamentos vitais. Ataques ao mundo do trabalho, na forma de contrarreforma da Previdência, inviabilização dos sindicatos, preparativos para adoção da “carteira verde-amarela”, sem direitos. Pico de violência contra negros, pobre e periferias, agora com uso de novos instrumentos de terror, como os “caveirões voadores” e o assassinato por snipers posicionados em plataformas de tiro. Onda obscurantista, que vai da “Escola sem Partido” à equiparação dos abortos a homicídios. Espectro de uma mega-leilão que pode entregar o Pré-Sal às petroleiras internacionais.

Este cenário complexo deve-se, em grande medida, a uma ambiguidade marota. Mídia, maiorias no Congresso e correntes hegemônicas no Judiciário procuram distanciar-se do governo, temendo ser tragadas em seu presumível colapso. Mas comungam com quase todos os pontos do programa do presidente – em especial, o ultracapitalismo, em seus dois aspectos: antissocial e antinatureza. Isso gera entre aqueles que, como Outras Palavras, se opõem aos retrocessos, uma sensação de impotência dupla. Acordaremos do pesadelo atual? Não corremos o risco, nesse caso, de mergulhar num outro, o de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”?

A potência do tsunami em preparação para esta quarta-feira está no fato de negar – e, em certo sentido, inverter – esta dupla cilada. A greve alastrou-se, em boa medida, graças a um governo obtuso. Foi convocada inicialmente pelos professores – que estão entre as grandes vítimas do desmonte das aposentadorias. Mas ganhou dimensão inteiramente nova com a entrada em cena dos estudantes. Provocou-os a ignorância arrogante do ministro Weintraub. Não lhe bastou cortar 30% das despesas livres das Universidades e Institutos Federais; reduzir também as verbas para o ensino; liquidar as agências de apoio à pesquisa científica; ou cortar as bolsas para pós-graduação. Ele precisava também acessar algum recalque pessoal, quando ao se referiu à “balbúrdia” universitária, às “festas inadequadas” e “seminários absurdos”, ou defendeu a invasão dos campi pela polícia. As palavras incendiaram as escolas.

Mas nas manifestações deste 15-M está implícita uma visão de mundo que vai muito além da crítica ao bolsonarismo – abrange todo o projeto das elites. Ela tem apreço pelo conhecimento e pela técnica, rejeitando por isso a tentativa de subordinar as universidades e institutos à lógica do lucro mercantil. Inclui desejo de superar nossa desigualdade abissal, e por isso opõe-se ao desvio de recursos públicos em favor do baronato financeiro. Está antenada com o debate sobre os impasses civilizatórios contemporâneos – daí não se dobrar à negação da Ciência, dos riscos de catástrofe climática, da importância das vacinas ou, no plano geopolítico, à tentativa bizarra de subordinar o Brasil às políticas dos Estados Unidos. Aposta que a sociedade é capaz de refletir sobre si mesma e a valorizar sua própria diversidade – e nega, em consequência, os ataque à Sociologia e à Filosofia, ou a tentativa de mobilizar as massas mais brutalizadas oferecendo-lhes o porte da armas, o machismo ou o ódio aos LGBTs.

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Estas ideias antissistêmicas estão mobilizando jovens, numa escala nunca vista em muitos anos. Nas imagens, garotas e garotos pintam cartazes, panfletam, convocam pais e familiares, reúnem-se em rodas de conversa, assembleias e debates. Sugerem um ambiente semelhante ao da Primavera Secundarista, em 2016. E se o bolsonarismo, muito a contragosto, tiver ajudado a difundir aqui a rebeldia juvenil que marca o crescimento da simpatia pelo “socialismo” nos EUA; ou as “sextas-feiras pelo futuro”, difundidas em março por dezenas de cidades no mundo?

Mas, na crise do bolsonarismo, outro fenômeno agrega-se a este. A presença, nas ruas, de um setor articulado e munido de razões para lutar pode servir de centelha. Multidões que votaram contra Bolsonaro, e que foram antes às ruas em jornadas memoráveis com as do #elenão, os protestos contra a execução de Marielle Franco ou os atos que tentaram barrar o impeachment, em 2016, sentem-se perdidas. Não houve oposição, desde a posse de Bolsonaro. As esquerdas institucionais refluíram. As críticas ao governo e às políticas neoliberais ficaram estranhamente restritas a figuras como Reinaldo Azevedo, André Lara Rezende e o general Mourão… Agora, os educadores e estudantes sinalizam uma retomada.

E há, além desse, um outro contingente: o dos envergonhados. Milhões votaram em Bolsonaro por acreditar em seu discurso antiestablishment. Curtem, agora, a vergonha de haver optado por um homem cuja famiglia cultiva “rachadinhas” e laranjas; que se esfalfa por restabelecer, no Congresso, todas as dinâmicas surradas do “toma-lá-dá-cá”; que assiste indiferente ao avanço da crise, do desemprego e da depressão; que, acima de tudo, nada fez para honrar quem viu nele chance de uma “nova política”. Também estes precisam de um canal para conduzir sua frustração e de uma razão concreta para mudar de postura, face à crise brasileira. Os educadores e os estudantes podem oferecer este motivo. Têm rostos que não podem ser associados aos de uma esquerda histórica e a legitimidade de uma causa incontestável.

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Tirando a falta de um projeto de governo, a ausência mais notável, nos últimos meses, é a de oposição. Além dos ataques aos direitos e à proporia ideia de nação, sucedem-se, no governo, as patetices. Mas – e nisso regredimos muito, em relação à ditadura pós-1964 – não há contestação.

O mais chocante é a passividade da oposição institucional diante de um projeto claramente fracassado. Critica-se, moderadamente, os ataques a certos direitos – mas não o conjunto da obra. Ninguém aponta um caminho alternativo; ninguém diz: “chega de cortes, de restrições, de depressão – só sairemos da crise pela rota oposta: ampliar direitos, distribuir riqueza, valorizar o público, governar para as maiorias, investir no SUS, reconstruir escolas, tributar os ricos, defender o mundo do trabalho, estabelecer a Renda da Cidadania”. Este programa “radical” parece amedrontar os velhos partidos — ao contrário do que ocorre mesmo em países como os EUA e a Grã-Bretanha, onde despontam lideranças como Alejandra Ocasio e Jeremy Corbyn.

Quem sabe, o tsunami da Educação não se torna uma oportunidade para enxergar (e rever) a paralisia. Quem sabe, encontramos – ou nos partidos, ou em quem ocupe seu lugar – energia para romper o círculo de ferro do neoliberalismo. Quem sabe, a partir de hoje.

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