Racismo: “Um policial não tem o direito de ser ignorante sobre certos assuntos”

Existem diferentes formas de racismo. O fato de que quem mais morre de tiro e de fome no Brasil é preto revela o racismo estrutural do nossos país

Por Martel Alexandre del Colle, em Justificando

Eu gosto bastante de filmes de super-herói. Costumo assistir todos os filmes da Marvel e alguns da DC, porém tenho amigos bastante intelectuais que consideram esse tipo de entretenimento muito vazio. O tipo de filme que não vai lhe causar nenhuma grande reflexão. Obviamente, eu respeito a opinião deles, mas eu confesso meu encantamento com os últimos títulos da Marvel.

Eu procuro assistir aos filmes atento às mensagens que eles querem repassar ao espectador, as lições etc. Há uma mensagem interessante no filme Thor Ragnarok, assim como no Capitã Marvel, mas, sem sombra de dúvida, o filme mais importante já lançado pela Marvel foi o Pantera Negra.

Os efeitos visuais, a história, a redenção do herói, a catarse, tudo é muito significativo. A apresentação da beleza de uma cultura que foi por muito tempo diminuída, a força da mulher guerreira, o vilão que é criado por um sistema cruel e muito parecido com o real, o herói que começa com uma visão superior e colonialista e termina com uma visão democrática e libertadora, humana.

Os pequenos detalhes fazem desse filme algo além do mero entretenimento. E aquela fala do vilão olhando para Wakanda, após a luta com o Pantera Negra, emociona-me até hoje, mesmo tendo visto o filme por diversas vezes.

Um dos meus policiais (alocado em um dos batalhões sob meu comando), homem, negro, foi assistir ao filme. Ele sabia que eu havia assistido e adorado, e veio me contar sua experiência. Ele afirmou ter gostado do filme também. Aproveitamos para conversar sobre as cenas que mais gostamos. A conversa foi interessante, mas o que mais me chamou a atenção foi um detalhe que ele me contou que aconteceu na saída do cinema.

Ele me contou que quando estava saindo do cinema, viu um menino branco olhar para sua mãe e dizer: “Eu quero ser igual o Pantera, mãe! Eu quero ser negro” (a ideia da criança era essa, não me recordo exatamente das palavras utilizadas pelo policial).

O policial achou a fala muito curiosa e decidiu compartilhar comigo. Isso não saiu mais da minha cabeça. A fala era inocente. Uma fala de criança que acabara de ver alguém que ela admira e quer ser igual. Quem de nós nunca fez isto?

A questão é que a criança precisa ver algo em si que é semelhante a quem ela deseja se espelhar, uma pequena faísca de esperança para começar o incêndio. Ela viu que havia algo que era diferente no herói. E tudo bem, não somos todos iguais. O que me deixou refletindo por dias não foi isso.

O que me deixou refletindo foi a pergunta que eu fiz a mim mesmo após ouvir essa história. Quantas crianças negras já saíram de um cinema pensando: Eu gostaria de ser branco. Quantas vezes elas assistiram uma novela e quiseram ser a atriz principal, que era branca? Quantas vezes pessoas negras não tinham ninguém com a mesma tonalidade de pele para sentir que isso é normal?

A questão aqui não é afirmar que uma pessoa negra não pode se inspirar em uma pessoa branca, ou vice-e-versa, a questão que deve passar na cabeça de muito brasileiro é: Por que tentam, com tanta determinação, esconder a pele preta?

54% da população do Brasil se identifica como negra, segundo o IBGE. Agora, de posse desta informação, ligue a sua televisão nos canais abertos e repare nos personagens, nos atores, nas apresentadoras.

Depois, entre em algum site de moda, depois em um site de notícias de famosos, e repare nos personagens em destaque. Pesquise por empresários de sucesso no Brasil e se foque na representatividade. Como diria o Criolo: “Enquanto isso a elite aplaude seus heróis. PACOTE DE SEVEN BOYS”.

Não há nada de errado em ser branco. Eu sou branco. A pergunta é: o que há de errado em ser preto nesse país?

Chegamos ao ponto de colocar um suposto supremacista branco na presidência. Alguém que afirma que pessoas de pele branca são superiores. E se acha que estou exagerando ao imputar ao presidente este tipo de pensamento, tenho bons argumentos para acreditar que ele acredita nisso.

Bolsonaro disse que faria um governo de notáveis, ou seja, colocaria só os melhores nos cargos cuja nomeação cabe só a ele. E ele só colocou gente branca. Para Bolsonaro, gente capaz é gente branca. Num país com 54% de negros, Bolsonaro não conseguiu achar nem 30% de seus “notáveis” com essa cor de pele.

Existem diferentes formas de expressar racismo, a do Bolsonaro é, supostamente, só mais uma delas. Eu posso matar uma pessoa a tiros, ou posso matá-la privando-a da comida. O fato de que, estatisticamente, quem mais morre de tiro e de fome é a população preta revela o racismo estrutural do Brasil. Quando o racismo não mata os negros, os escondem, desumanizam.

Eu sonho com um Brasil em que todo o mundo seja representado. Em que os 54% de população negra seja representado em todos os lugares, como os seres humanos dignos que são. Como pessoas lindas, inteligentes, fortes que são. Não quero um país em que negros só sejam contratados para papel de criminoso, ou quando o papel “exige um negro”.

Em que o Big Brother Brasil coloque um negro no programa só para não pegar mal, quando qualquer amostra real da população teria de ser representada com metade da casa negra. Um país onde, se você pedir para uma pessoa fechar os olhos e pensar em um criminoso, a cor de pele desse criminoso imaginado será quase uma unanimidade: preta.

Sonho com um país em que mais crianças sejam representadas por heróis, só que por heróis nacionais. Num país de maioria negra, qualquer papel pode ser executado por um ator negro. Eu ainda ligo a televisão e parece que peguei o sinal da Europa, mas creio que isso pode mudar.

Apesar de 54% da população brasileira se autodeclarar negra – somos a maior população negra fora do continente africano -, apenas 17% dos homens mais ricos do país são negros. Se você achar isso normal, também deve achar que negros são mesmo inferiores, já que “quem se esforça chega ao topo” (como diz a velha meritocracia falaciosa, outra expressão do racismo estrutural), e a população negra está ficando para trás da população branca há séculos. Ou, então, você tem de admitir que tem algo de errado aí. Ou não existe a tal meritocracia no Brasil ou você vai ter de assumir que acredita que brancos são “mais capazes”. Não dá para fugir para o quarto e ignorar isso. Em que você acredita?

Fiz uma instrução sobre racismo para os meus policiais. Passei alguns documentários e dados sobre o racismo no mundo. Terminando o documentário, eu comecei um debate. Depois de alguma discussão, eu perguntei a eles: para acabar com o racismo, é melhor falarmos dele ou escondermos ele?

A maioria dos policiais brancos respondeu que esconder era uma melhor solução. Foi até citada a famigerada fala do Morgan Freeman. Porém, quando foi a vez dos policiais negros, a resposta foi o oposto. Para eles, nós deveríamos falar de racismo, sim. Para eles, deixar de falar de racismo não fará com que ele acabe. Seria como fingir que estupros não acontecem, em vez de fortalecer a prevenção.

Depois disso, os policiais negros começaram a contar suas vivências. Foi de chorar. Ouvir de uma policial feminina negra que os pais tiravam as outras crianças do parquinho quando a mãe dela deixava ela lá para brincar. Saber que ela já foi deslegitimada como policial em diversas ocorrências apenas por ser negra foi revoltante de ouvir. Doeu ouvir aquilo, aquele desabafo de uma policial que se manteve em silêncio por tanto tempo. Dava para sentir o peso daquele desabafo de quem sempre foi calada.

E, se quem sofre essas dores disse que precisamos falar sobre o racismo para fazer com que ele acabe, quem sou eu para dizer o contrário? Minha obrigação é falar que ainda tem muito racismo no Brasil e precisamos lutar para acabar com isso.

Pior mesmo é saber que existem policiais que acham que racismo não existe no Brasil, que “é frescura”. Como um policial desses vai conseguir atender uma vítima de racismo? Precisamos de uma reciclagem urgente. Um policial não tem o direito de ser ignorante sobre certos assuntos. E o fato de termos uma maioria de policiais que votaram em Bolsonaro demonstra que não estamos bem no quesito conhecimento dentro das corporações policiais.

Uma protocelebridade canadense chamada Faith Goldy quis “lacrar”, dia desses, indo a um protesto elaborado para chamar a atenção sobre as violências sofridas por muçulmanos em diversos lugares do planeta. Ela foi até o protesto com uma placa na qual estava escrito: “It’s ok to be White”. Ela queria mostrar que não havia uma violência de brancos contra negros.

E a moça é tão cega que ela não percebeu que o próprio cartaz dela continha a resposta. De fato, é ok ser branco em qualquer lugar, e ninguém está dizendo que não é. O que nós queremos é um mundo em que também seja ok ser negro, ser muçulmano, umbandista, Wicca, mulher etc. Só isso. Não queremos uma Wakanda só para nós, queremos uma Wakanda for everybody.

Martel Alexandre del Colle é policial há 10 anos. É aspirante a Oficial da Polícia militar do Paraná.

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