A nova política de drogas do governo federal: saúde pública x ação policial

por Pedro Calvi / CDHM

“Só nos primeiros quatro meses deste ano, 558 pessoas foram mortas no Rio de Janeiro por causa do tráfico de drogas. Em 2017, foram mais de cinco mil em operações policiais. É o caveirão voador, dando tiro a esmo nas favelas, uma pegada racista e desigual em nome do combate às drogas”, relata Raul Santiago da Silva. Ele faz parte dos coletivos Papo Reto e Movimentos e participou, nesta terça-feira (21), de audiência pública sobre a proposta do governo federal para uma nova política de drogas.

Em abril, o governo federal apresentou, através do Decreto 9.761, uma Nova Política Nacional de Drogas. A iniciativa muda o tratamento de dependentes químicos no Brasil. Pelo texto, a política de drogas deixa de ser de “redução de danos” e passa a promover a “abstinência”. Na semana passada, foi para sanção presidencial o Projeto de Lei 37/2013, que endurece a política nacional antidrogas, facilita internações involuntárias e fortalece as comunidades terapêuticas, ações já previstas no Decreto.

O encontro de hoje, para debater essas propostas, foi uma iniciativa dos deputados Helder Salomão (PT/ES) e Marcelo Freixo (PSOL/RJ) e promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM).

“Essas ideias do governo só reforçam a histórica perseguição à população negra e pobre, tira direitos já sucateados de quem usa algum tipo de substância e engaveta seres humanos”, acrescenta Raul. Ele destacou ainda que o Projeto de Lei aumenta, de 5 para 8 anos, a pena para traficantes. “Quem vai determinar quem é o chefe?”

Para Lúcio Costa, da Rede Nacional da Luta Antimanicomial, o governo segue os interesses do mercado. “Hospitais psiquiátricos enriqueceram às custas do sofrimento de pessoas que foram internadas sem necessidade. Estivemos em 40 hospitais psiquiátricos de 17 estados. É assustador, depósitos de pessoas com casos de tortura e cárcere privado”, disse o especialista. “Prefiro pensar que o governo federal não conhece o que está financiando, porque se conhece, estaria sendo conivente com um crime”.

  “A vanguarda do atraso”

Para Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde, a nova política de drogas propõe um mundo onde a diferença não tem lugar, “nem todas as vidas valem a pena”, e provoca um sério problema de saúde pública: “Vínhamos liderando um processo com outros países, como o Canadá por exemplo, de tratar a questão das drogas com a responsabilidade de cuidar com respeito aos direitos humanos. Um indicador importante era o tempo do dia sob efeito da droga. Quanto havia vida, trabalho, lazer, menos tempo para droga”, afirma.

O sanitarista defende tratamentos que reconstruam projetos de vida e, segundo ele, isso é oposto à valorização de hospícios ou comunidades terapêuticas: “Eles tiram a vida da pessoa e a devolvem para o mesmo lugar sem reconstrução e isso cria uma repetição, a quem interessa essa mudança? Aos donos desses serviços”.

O ex-ministro ressaltou que a criminalização aumenta o mercado de drogas e de armas e incentiva ações policiais que “limpam, saneiam, e assim nos constituímos na vanguarda do atraso”.

Dandara Tinoco, do Instituto Igarapé, abordou a diferença entre uso e abuso de drogas e que, quando esse tema for tratado, deve ficar claro que não se trata de um incentivo. “Todos queremos uma sociedade mais protegida, com mais segurança e mais saúde. O uso, necessariamente, não é sinal de problema. Mês que vem, no Supremo Tribunal Federal, devemos ter um passo importante no julgamento do porte para consumo individual, quase todos os países da América Latina já viram que isso não é crime”.

Tinoco também condenou a opção pela abstinência como tratamento. “A redução de danos é uma questão coletiva, acolhida também. A acolhida evita os pequenos delitos cometidos para bancar a drogadição, e isso traz danos coletivos”.

Inconstitucional

A procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, lembra a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiências, que tem status de norma constitucional, para analisar o Decreto.

“O Estado deve organizar a vida do cidadão a partir da inclusão e da socialização, isso faz parte de sociedades plurais, ajudar a vencer as barreiras. Álcool e outras drogas não se enfrentam com abstinência se o entorno que levou à drogadição se mantém, o tratamento se mostra insuficiente”. Ela sustentou, ainda, que a internação involuntária não se sustenta constitucionalmente se não houver origem em um processo criminal condenatório.

“Com relação à criança e ao adolescente, a intervenção judicial se impõe ainda mais. São pessoas em desenvolvimento e o Decreto está na contramão do ECA e da Constituição”, completou Deborah. Quanto às comunidades terapêuticas, ela dá um testemunho. “Eu mesma visitei duas, e a situação é assustadora. O tratamento tem de ser dado no local onde a pessoa vive, é lá que ela precisa se ver livre das drogas ou reduzir danos. A comunidade terapêutica, porém, parte do princípio do isolamento”. 

“No ano passado o Ministério Público fez uma inspeção nacional em comunidades terapêuticas e encontrou violações de direitos humanos em todas as unidades visitadas. Segundo o relatório, foram encontrados até casos de trabalhos forçados, contenção de pessoas à força, falta de profissionais de saúde e agressões físicas”, ressaltou o presidente da CDHM. Helder Salomão. De acordo com o parlamentar, mesmo assim, 2,9 mil vagas em comunidades terapêuticas foram financiadas pelo governo federal até o ano passado. Agora, serão 11 mil vagas financiadas em quase 500 comunidades.

Proibicionismo & interesses

João Telésforo, da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, citou como exemplo de fracasso da internação involuntária o caso da Cracolândia no centro de São Paulo onde, em ações policiais, dependentes químicos foram internados à força. “Delírio ideológico contra a realidade não funciona. E a tramitação de um projeto de lei a toque de caixa por medo do debate, do diálogo com cientistas e com a sociedade civil é mais  um  exemplo  disso.”  

Telésforo informou que 63% das mulheres encarceradas hoje se devem ao tráfico de drogas. A ONU recomendou, em 2017, a adoção de estratégias de redução de danos como forma de lidar com as questões sociais associadas à dependência e ao tráfico de drogas, entre elas o encarceramento em massa de negros e mulheres”. Ele defendeu a discriminalização do uso e o cultivo doméstico de até 6 plantas de maconha. “E quem não quer isso? Os grandes traficantes com helicópteros e submarinos, o proibicionismo sempre gera grandes riquezas, foi assim na Lei Seca”, concluiu.

Daniel Caldeira de Melo, do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, também questionou: “Quem são os verdadeiros traficantes? São os meninos que não têm escola, políticas públicas ou os grandes empresários envolvidos em grandes esquemas de lavagem de dinheiro?”. 

Milícias

De acordo com o deputado Marcelo Freixo, em 2006 haviam 31 mil presos por tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Em 2013, o número saltou para 138 mil. “Por trás desse debate tem um genocídio, essa política de drogas dá legitimidade para matar, é subjetiva para dizer quem é traficante e quem é usuário, quem é humano e quem não é”.

Freixo contestou o aumento das penas para traficantes. “Diz que vai endurecer porque não dialoga com organizações criminosas. Mas, no Rio de Janeiro, um miliciano com 40 autos de resistência tem uma comunidade terapêutica e foi beneficiado pelo governo federal”.

O parlamentar afirmou que vai entrar com um processo para judicializar o Projeto de Lei quanto à criação de um sistema paralelo ao SUS para as comunidades terapêuticas, internação compulsória e a dedução no Imposto de Renda para quem doar para as comunidades terapêuticas.

Rede equilibrada

Erno Harzheim, Secretário de Atenção Primária do Ministério da  Saúde , afirmou que o Decreto não defende uma forma única de abordagem no tratamento de dependências de drogas. “Sabemos que de 30 a 40% das pessoas que buscam esse cuidado apresentam algum grau de sofrimento psíquico e têm que receber o tratamento adequado pelo tempo e formato adequados”. Ele disse que o orçamento do Ministério para este ano é de R$ 1,5 bilhão para saúde mental e que cerca de R$ 150 milhões são para as comunidades terapêuticas.

Harzheim informou também que deste total, as internações em hospitais gerais consomem pouco menos de 5 por cento e as em hospitais especializados, dez por cento. “O restante, 85 por cento, vai para os 2.590 CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), para os 627 serviços residenciais terapêuticos, que ajudam a reverter o viés manicomial e que tem mais de 6 mil pessoas atendidas”.

Já Quirino Cordeiro, secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, justificou as medidas devido a situações como o aumento do consumo de drogas lícitas, a expansão das cracolândias, a superlotação de serviços de emergência e o número crescente de suicídios. “Queremos uma rede equilibrada, não há priorização de formas de tratamento”.

Ele também destacou que a internação involuntária protege o paciente. “Quando ele perde a consciência, pode provocar danos à ele mesmo e também à  outras pessoas e isso é responsabilidade do Estado, não podemos permitir que isso aconteça”.

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