Conectados globalmente, coletivos juvenis agem na realidade de seus territórios. Entrevista especial com Regina Novaes

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Com a cabeça no mundo, mas com os pés na sua comunidade. É assim que a professora Regina Novaes analisa a ação coletiva das juventudes do século XXI. “Conectados globalmente, coletivos juvenis agem localmente a partir das especificidades de seus territórios”, reitera. “No contexto atual, é impossível falar em ‘ativismo político’ sem pensar nas narrativas de jovens mulheres; de jovens negros e negras; de jovens LGBT que se autoclassificam como ‘periféricas’. Tais narrativas – entremeadas de poesia, músicas, dança, performances – povoam o espaço público (virtual e presencial) e contribuem para renovar clássicos espaços de militância”, analisa. Mas, para ela, são diferentes militâncias que não iniciam ou desembocam em pertencimentos de grupos já institucionalizados, como  movimentos estudantis e alas jovens de partidos ou igrejas. “Uma possível repercussão dessa atual configuração é a maior convivência de diferentes concepções de militância e uma maior horizontalidade entre elas”, observa.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-LineRegina também observa que é justamente na potência dessa pluralidade de militância, convertida em demandas por igualdade e pela valorização da diversidade, que reside a maior resistência de certos grupos que acusam esses como movimentos de “marxismo cultural”. “Certamente, os combatentes do chamado ‘marxismo cultural’ focalizam o crescimento potencial de uma parcela significativa dessa geração que aproxima sensibilidades, histórias de vida e ações políticas. Não por acaso são eles também os defensores da ‘Escola sem Partido’”, analisa.

Entretanto, por mais dura que possa ser essa repressão, Regina é otimista. “Nada será como antes. Essas experimentações históricas não são apagadas por decreto. Se é verdade que os combatentes do ‘marxismo cultural’ têm essa parcela da juventude militante como alvo preferencial, creio que correm um risco: despertar curiosidade e provocar um aumento de leitores deste autor hoje bastante distante dos jovens militantes do século XXI”, aponta.

Regina Novaes é graduada em Ciências Sociais e mestra em Antropologia Social pela pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo. Entre 2010 e 2016 realizou pesquisas e atuou em consultorias sobre políticas públicas de juventude em Convênios entre a Secretaria Nacional de Juventude e Unesco, trabalhando em colaboração com grupos de pesquisa da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é professora visitante da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio.

A professora estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nos dias 23 e 24 de maio, proferindo as conferências “Juventudes, subjetividade e perfis de militância social, política e religiosa” e “Juventudes, Política e Religião. Desafios e Perspectivas”, que integram o Ciclo de Estudos As Juventudes do Brasil. Mutações e (im)possibilidades. As duas conferências ocorrerão, respectivamente, na Unisinos – Campus São Leopoldo e Unisinos Campus Porto Alegre.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em seus trabalhos, você costuma comparar a juventude com um espelho retrovisor, “que reflete e revela a sociedade com suas diferenças e desigualdades sociais”. Gostaria que você detalhasse essa perspectiva.

Regina Novaes – A ideia de “espelho retrovisor” é útil para chamar a atenção para a impossibilidade de compreender as questões da juventude sem considerar a história e as estruturas das sociedades onde vivem os jovens. Nos dias de hoje, falar de juventude é falar de um tempo histórico específico em que há uma nova divisão internacional do trabalho e a rapidez das transformações tecnológicas. Desde os anos 1980 e 1990, juventudes de todo mundo passaram a viver mais intensamente a tensão local-global e as incertezas de seu tempo histórico. Nunca houve tanta  integração globalizada e nunca foram tão agudos os processos de exclusão.

Mas, ao mesmo tempo em que a juventude pode ser pensada como um “espelho retrovisor”, essa fase da vida tem sua especificidade. Nesse momento da vida não se conta mais com a prometida proteção da infância e ainda não se chegou à almejada autonomia da idade adulta, e nessa transição a juventude torna-se também um “espelho agigantador” que permite ver com maior nitidez os desafios da sociedade.

Portanto, para pensar a juventude brasileira hoje temos que levar em conta as contradições, as desigualdades e as diferenças presentes na sociedade brasileira. E, ao mesmo tempo, pensar de que maneira e intensidade as transformações sociais em curso atingem particularmente os jovens. Ou seja, educação de qualidade, inserção no mundo do trabalho, segurança são questões colocadas para toda sociedade brasileira, mas que se agigantam quando pensamos na grande maioria da juventude brasileira.

IHU On-Line – Que recortes, diferenças e desigualdades sociais são importantes para entender a multiplicidade de perfis entre os jovens?

Regina Novaes – Existe uma “condição juvenil” comum a todos os/as jovens que vivem em determinado tempo histórico (juventude no singular). Mas a “juventude” nunca é um todo homogêneo. Nesse segmento etário convivem várias “juventudes” (no plural). Jovens da mesma idade têm acessos e oportunidades desiguais e estão sujeitos a diferentes formas de preconceitos e discriminações. No Brasil, entre os recortes que são importantes para entender a multiplicidade de perfis, destacam-se: origem, renda, local de moradia, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, religião, deficiências físicas, emocionais e cognitivas. Desigualdades sociais retroalimentadas por preconceitos e discriminações configuram situações de menor ou maior vulnerabilidade juvenil. Por exemplo: um jovem pobre, negro, morador de uma favela, gay e do candomblé reúne características que o predispõem a situações que resultam em maior vulnerabilidade social.

Mas é importante lembrar ainda que jovens que vivem em condições sociais semelhantes podem ter trajetórias de vida diferenciadas. Entre os fatores que podem modificar positivamente as trajetórias juvenis, podemos destacar: a oportunidade de participar de grupos culturais; o acesso a redes e projetos sociais desenvolvidos por igrejas ou entidades não governamentais e o acesso a políticas públicas voltadas para a juventude. Muitas vezes são mediadores institucionais e/ou mediações pessoais que contribuem para tornar diferentes as histórias de vida de jovens forjadas em um mesmo contexto social. Do diálogo com uma professora, com uma liderança religiosa, com o coordenador de um projeto social pode surgir uma oportunidade para que jovens transformem medos e sofrimentos em formas de participação, em demandas por direitos e por políticas públicas.

Participantes de projetos governamentais (como o ProJovem [1], o ProUni [2], os Pontos de Cultura [3]), bem como jovens ligados às ONGs ou fundações que entrevistei recentemente, enfatizam que nesses espaços experimentaram mudanças subjetivas (como o aumento de “autoestima;” construção de identidades e motivação para ativismos) bem como viram aumentar as redes de apoio e as oportunidades de estudo e trabalho.

IHU On-Line – Como os jovens e adolescentes concebem hoje a ideia de militância? De que forma promovem suas militâncias nesse tempo em que são atravessados pelas lógicas das tecnologias?

Regina Novaes – Os jovens de hoje já cresceram integrando realidade presencial e virtual. As TICs [4] estão presentes na vida cotidiana: na casa, nos templos religiosos, na conformação e na dinâmica de aprendizado escolar, no mundo do trabalho. Também estão nas amizades, namoros, lazer e uso do tempo livre, nas formas de “estar no mundo”. Assim sendo, não há como desconsiderar sua importância nas formas de militância.

Para falar de militância é também preciso falar das transformações tecnológicas que interferem nas formas de militância. Hoje, é impossível falar de militância sem falar de novas tecnologias de informação e comunicação. O ironizado “militante de sofá” faz parte do mundo juvenil atual. Porém, para compreender as novas possibilidades de militância é preciso atentar para diferentes combinações entre redes, territórios e rua que podem ser vistos como partes do espaço público ampliado onde se encontram formas clássicas de organização (como movimento estudantil, sindicatos e partidos) e novos coletivos com diferentes tamanhos e causas.

Nesse novo contexto, o movimento estudantil continua tendo sua importância, mas sua eficácia depende também da articulação com outras iniciativas voltadas para as demandas juvenis como, por exemplo, o movimento hip hop ou o Levante Popular da Juventude [5]. Também os partidos continuam tendo sua importância específica na democracia representativa e para a ação de uma parcela da juventude que os considera como estágio superior de organização, aquele que “dá direção” ao conjunto. Porém, em passado recente, para se fazer presente em certas ocupações das escolas de ensino médio, jovens de partidos políticos – como PT e PSOL – tiveram que acatar as regras estabelecidas pela escola específica e/ou pelas articulações entre escolas (que se fizeram, sobretudo, por meios digitais).

De fato, no contexto atual, as diferentes formas de “militância” não iniciam ou desembocam, necessariamente, em pertencimentos institucionais ao movimento estudantil, aos partidos políticos, a outros movimentos organizados. Uma possível repercussão dessa atual configuração é a maior convivência de diferentes concepções de militância e uma maior horizontalidade entre elas. Claro que existem disputas e conflitos (o que é próprio da democracia). Mas a novidade é que não existe monopólio da representação juvenil. Como não há apenas um centro de negociação, a “militância juvenil” se diversifica e seu raio de ação se amplia.

IHU On-Line – A juventude é uma categoria “revolucionária”? Quando e por que se construiu a ideia de que “ser jovem é ser essencialmente revolucionário”?

Regina Novas – No imaginário social são diversas (e contraditórias) as ideias sobre os/as jovens de hoje. Ora se idealiza e valoriza. Ora se critica e desvaloriza. Por isso mesmo, surgem sempre as generalizações indevidas, tais como: a juventude hoje é “individualista, consumista e hedonista”, “egoísta e alienada”. Ou, em outro extremo: os jovens de hoje são os que “sabem das coisas”; “são mais livres, éticos, estéticos e criativos”; “são mais verdadeiros corajosos e generosos”; são “revolucionários”. Generalizações sempre tomam a parte pelo todo. Na verdade, em todas as épocas e lugares, há parcelas da juventude que apenas reproduzem valores e as hierarquias estabelecidas (que poderiam ser classificadas como conservadoras), bem como existem outras parcelas que questionam o estabelecido e propõem mudanças (que poderiam ser classificadas como revolucionárias). Vendo os dois lados, não há como dizer que a juventude é sempre “essencialmente revolucionária”.

Mas, também, não há como deixar de dizer que, ao longo da história, parcelas de juventude têm tido um papel importante nos embates e  transformações sociais. No presente, em tempos de capitalismo flexível, entre os/as jovens há mais chances de (re)invenção da política e de surgimento de novas formas de ativismo. Vivendo mais profundamente as incertezas de seu tempo histórico, produzem ações coletivas que não hierarquizam lutas e pautas entre contradições principais e secundárias, como fizeram jovens de outras gerações. Igualdade e diversidade se misturam em seus ideários e concepções.

Conectados globalmente, coletivos juvenis agem localmente a partir das especificidades de seus territórios (nomeados como favelas, comunidades, conjuntos habitacionais). No contexto atual, é impossível falar em “ativismo político” sem pensar nas narrativas de jovens mulheres; de  jovens negros e negras; de jovens LGBT que se autoclassificam como “periféricas”. Tais narrativas – entremeadas de poesia, músicas, dança, performances – povoam o espaço público (virtual e presencial) e contribuem para renovar clássicos espaços de militância.

IHU On-Line – Quais os desafios para compreender os discursos de ódio que se dão entre os jovens, especialmente em confrontos nas redes sociais?

Regina Novaes – Nas redes circulam informações e desinformações. Práticas digitais expressam modos de pensar e agir existentes na sociedade em que vivem os jovens. Por um lado, a internet serve para exacerbar o  consumismo e o individualismo, bem como servem para potencializar  preconceitos preexistentes (de gênero, de orientação sexual, de raça e etnia, de local de moradia). Serve para criar novas (e sofisticadas) práticas de bullying, fake news, “deep-fakenews”. Mas, por outro lado, as  TICs  também quebram isolamentos, produzem novos afetos, ampliam as possibilidades de identificação entre atores e grupos subalternos, disseminando causas sociais e motivando a criação de novos coletivos juvenis.

Isto quer dizer que as redes oferecem espaços de expressão de confrontos entre os que desejam a manutenção e os que desejam a modificação de ideias e práticas dominantes na sociedade. Ou seja, (como a juventude) as redes também se apresentam como espaços de disputa de valores. Nesse cenário, não há como não pensar a emergência dos “discursos de ódio” como reação à emergência de discursos jovens contra formas de preconceito e discriminação social. Não por acaso, os discursos de ódio incorporam ataque generalizado às políticas públicas de valorização da diversidade e de inclusão social. Tomadas de posição e conquistas de espaços de fala por jovens ativistas incomodam e, na atual conjuntura, ativam medos e conservadorismos latentes.

IHU On-Line – Como os jovens e adolescentes de hoje compreendem e se articulam nos campos político e religioso?

Regina Novaes – Vivemos em um mundo em que há convivência de duas tendências contraditórias. Por um lado, cresce a valorização da diversidade com maior abertura ao hibridismo cultural e ao sincretismo religioso. Por outro lado, evidencia-se o aumento do fundamentalismo, do sectarismo e de violências político-religiosas. E, via internet, como nunca aconteceu antes, diferentes correntes de pensamento e alternativas religiosas se expõem umas às outras.

Vejamos o que acontece com os jovens no campo religioso. A diminuição do catolicismo entre jovens já estava evidente no Censo de 1991 e se confirmou em 2010. No decorrer desse tempo também foi aumentando o número de jovens evangélicos (Censo de 1991) e jovens “evangélicos não determinados” (Censo de 2010). Por fim, sem se considerarem  ateus  nem agnósticos, houve um significativo crescimento de jovens que têm fé, mas se consideram “sem religião” institucional.

Em cada um destes segmentos há jovens que – mesmo que compartilhem com ideias/valores mais conservadores ou mais democráticos – não se dispõem à participação política. Mas há também jovens que levam suas demandas ao espaço público por meio de identidades religiosas que são motivadoras de tomadas de posições políticas. Entre os jovens católicos  destacam-se várias vertentes das Pastorais da Juventude (PJs). Entre  jovens evangélicos – contrapondo-se publicamente aos conservadores “coronéis da fé” que têm a pretensão de falar por todos os evangélicos – temos, por exemplo, a Rede Ecumênica de Juventude (REJU), a Rede FALE e os jovens que fazem parte da articulação Evangélicos pelo Estado de Direito. Bem como merecem destaque as Igrejas evangélicas inclusivas que agregam jovens LGBT.

Vale lembrar ainda que nos últimos anos aumentam os jovens de religiões de matriz africana que lutam por direitos sociais reafirmando sua negritude e sua ancestralidade como, por exemplo, fazem os jovens ligados à rede “Povos dos Terreiros”. Canais do Youtube são acionados por jovens católicosevangélicos e do candomblé que valorizam a diversidade e condenam preconceitos que produzem sofrimento e exclusão.

Fé com as urgências de justiça e da solidariedade

Além disso, pesquisas registram a existência de grupos de jovens espíritas que se propõem a fazer ações sociais reivindicando direitos da juventude. Também há “jovens sem religião” que expõem sua espiritualidade em ações ecológicas em defesa do meio ambiente. Em resumo, mesmo sendo minorias nas diferentes vertentes religiosas, grupos de jovens têm encontrado caminhos para relacionar questões de fé com as urgências de justiça e da solidariedade. Nos dias de hoje, mais do que nunca, é importante torná-los mais visíveis, conhecidos e reconhecidos.

IHU On-Line – Como compreender os jovens e adolescentes que participam e se inserem nas igrejas, partidos políticos e organizações estudantis, mas manifestam claramente a contrariedade as “doutrinas” e lógicas dessas instituições?

Regina Novaes – De modo geral, nas igrejas e partidos se explicitam tensões entre gerações. Isto porque, embora teoricamente se estimule a presença da juventude, os jovens são constantemente afastados dos processos de tomada de decisão nas igrejas, nos partidos e nas agremiações onde convivem com adultos. Justamente por se encontrar em um estágio transitório da vida, o jovem é visto como aquele que ainda não é. Na escola e demais instituições, ser jovem é residir em um incômodo estado de devir, de vir a ser.

Também em certos espaços de participação social, a juventude é vista como sinônimo de imaturidade, impulsividade e rebeldia exacerbada. Apesar desses desencontros, essas tensões podem ser vistas como produtivas pois elas movimentam as instituições, criam debates e, no decorrer do tempo, impulsionam transformações.

Ao mesmo tempo, é preciso lembrar, que determinadas causas motivam ações individuais ou a formação de coletivos juvenis autônomos. Jovens – como a sueca Greta Thunberg [6] – defendem causas ambientais globais, mas não se alinham a movimentos já institucionalizados. De fato, as novas tecnologias de informação e comunicação se somam à valorização da “ação direta” e impulsionam a multiplicação de formas de participação social fora dos lugares tradicionais da vida política. No Brasil, vale dar destaque também aos grupos culturais que, utilizando diferentes linguagens artísticas, também levam suas causas para o espaço público e onde ganham repercussões políticas.

Jovens e grupos periféricos

São jovens ou grupos culturais juvenis que se definem como periféricos ou periféricas. Usam essa designação não apenas para designar espaços geográficos pobres e violentos onde moram, mas também para falar de pessoas e corpos que sofrem discriminação por questões de raça e etnia, identidade de gênero e orientação sexual. Neste contexto, a palavra “periferia” tornou-se uma espécie de recurso simbólico que politiza ações culturais que ocorrem nos slams [7], nos saraus, em diferentes manifestações da cultura hip hop.

IHU On-Line – Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, na gestão de Michel Temer, houve mudanças significativas nas políticas públicas para a juventude, qual o saldo da atuação anterior da Secretaria Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Juventude?

Regina Novaes – É bom lembrar que só no início dos anos 2000 – momento de agravamento das dificuldades de inserção produtiva de jovens e a  situações de violência – as expressões “políticas públicas de juventude” e “jovem como sujeito de direitos” entraram na pauta do debate público. E, só em fevereiro em 2005 – por meio de uma medida provisória – uma “Política Nacional de Juventude” foi anunciada. Nesse momento, foi criada a Secretaria Nacional de Juventude – SNJ, vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República, cuja tarefa principal é articular e supervisionar os Programas e Ações voltadas para jovens. Criou-se, também, o Conselho Nacional da Juventude – Conjuve com caráter consultivo, cuja tarefa deveria ser a de fomentar estudos e propor diretrizes de políticas públicas de Juventude. Composto por 20 representantes do poder público (17 ministérios e três órgãos de gestores e legisladores) e por 40 representantes da sociedade civil, esse Conselho buscava reunir a diversidade das organizações e diferentes tipo de militância voltadas para a efetivação dos direitos da juventude. E, ainda, o Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJovem um programa de caráter emergencial, inicialmente voltado para jovens de 18 a 24 anos, excluídos da escola e do mercado de trabalho.

A partir daí – não sem dificuldades, tensões e contradições – nos governos Lula e Dilma esses espaços institucionais deram um novo e destacado lugar para a juventude junto ao poder público federal. Porém, ao buscar combinar legalidade e legitimidade, a chamada “Política Nacional de Juventude” foi também cenário de explicitação de disputas não só entre de velhas e novas concepções sobre a juventude e sua diversidade, mas, também, sobre os orçamentos que deveriam ser disponibilizados para responder as demandas anunciadas nas três Conferências Nacionais da Juventude que aconteceram no período.

Como obstáculo, vale destacar também a disputa por recursos no interior do aparelho do Estado onde o recorte “juventude” ainda não tem o reconhecimento já alcançado pelas questões da infância e nem tem a mesma legitimidade das políticas setoriais que operam com lógicas universalistas (educação, trabalho, saúde, cultura, por exemplo).

Avaliações

Por toda a complexidade envolvida na questão, ainda hoje é difícil ter clareza do conjunto de “saldos” do período. Ainda assim, podemos citar três aspectos. Em primeiro lugar, cito o ProJovem cuja metodologia representa um esforço interdisciplinar de buscar o aprendizado através da aproximação entre os conteúdos das matérias e as vivências dos jovens de hoje (uma espécie de “Paulo Freire [8] da juventude”). Nem tudo foi positivo com o ProJovem, mas são muitas as experiências locais que demonstram a eficácia dessa metodologia e a importância de levar em conta o “sujeito jovem” em um Programa que oferece uma oportunidade para aqueles que estão em atraso escolar.

Em segundo lugar, cito o espalhamento da categoria “direitos” e, com isso, a ampliação das possibilidades de pressionar o poder público para a efetivação desses direitos. O anúncio da “Política Nacional de Juventude” motivou a criação de organismos e conselhos da juventude em nível estadual e municipal e, em consequência, produziu dinâmicas de articulação entre diferentes segmentos juvenis e tipos de militância.

Em terceiro lugar, cito a promulgação do Estatuto da Juventude, logo após as manifestações de 2013. Elaborado a partir da gramática dos Direitos, o Estatuto considera as particularidades da condição juvenil do século XXI e se propõe a articular igualdade e diversidade. Mesmo que haja hoje um evidente hiato entre o Brasil legal (o legislado) e o Brasil real (que tem se exibido sem adornos após a derrubada de uma presidenta eleita), o  Estatuto da Juventude poderá se tornar um importante instrumento a ser acionado em novas iniciativas e lutas por direitos conquistados e a conquistar.

IHU On-Line – Como a senhora avalia as perspectivas do atual governo no que diz respeito a políticas públicas para a juventude?

Regina Novaes – O Brasil vive um momento de claro ataque aos direitos anunciados no Estatuto da Juventude e, além disto, em seu conjunto, as reformas anunciadas poderão ter forte impacto negativo na vida (presente e futura) dos jovens brasileiros. Neste cenário, será muito importante uma ampla articulação entre segmentos juvenis e diferentes tipos de militância.

O “Direito à cidadania, à participação social e política e à representação juvenil” se destaca, em primeiro lugar, no Estatuto da Juventude. Com relação a “participação juvenil” nos dias de hoje, temos que dar conta de diferentes formas de engajamento, tais como: movimento estudantil, pertencimento partidário, coletivos com causas específicas, pertencimento religioso engajado, grupos culturais, ciber-militância, entre outros. Mas, é importante ainda destacar que estas formas não são necessariamente excludentes. Isto é, podem ser simultâneas, sucessivas ou se alternar trajetória de vida de um mesmo ou uma mesma jovem. Ou seja, oferecemos uma foto de um momento, mas há movimentos e deslocamentos contínuos de jovens dentro do campo de possibilidades de participação que hoje se configura para os jovens brasileiros.

O desafio hoje é encontrar meios para envolver jovens ligados aos grupos progressistas das igrejas; das organizações políticas e sindicais; aos movimentos e grupos ligados às culturas de periferia; aos coletivos com causas diversas, aos “militantes de sofá”; bem como também aos jovens “virgens de protesto” que (como em 2013) possam ser sensibilizados e convocados via redes virtuais, etc. A pergunta é “o que podemos fazer juntos?”, para assegurar direitos conquistados e evitar o desmonte. Trata-se hoje de, realmente, fazer valer a expressão “valorização da diversidade”. Trata-se de abrir mão da busca de homogeneização e de hegemonia a favor de ações que se façam a partir da ideia de “unidade na diversidade” que a conjuntura atual está a exigir. 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Regina Novaes – Aproveito também a ocasião para retomar um ponto. Dissemos aqui que uma das características mais importantes desse campo de possibilidades de participação juvenil é a constante imbricação entre demandas por igualdade e pela valorização da diversidade. Que relação essa característica pode ter com a expressão “marxismo cultural” que hoje circula entre os defensores do atual presidente da presidente da República?

Até onde pude entender, esta expressão disseminada entre discípulos de Olavo de Carvalho [9], evoca uma cruzada contra uma suposta  hegemonia de esquerda na sociedade. Em entrevista recente ao Valor Econômico (17 de maio deste ano), o músico Lobão [10] afirmou que ele mesmo tem “uma tese de que temos um totalitarismo cultural de esquerda desde 1922 com a Semana de Arte Moderna [11]”. Mas, o que para mim ficou claro na entrevista de Lobão é que entre os que combatem o “marxismo cultural” não há consenso teórico sobre onde e como se expressa esse “fenômeno” e nem há consenso sobre a melhor maneira de combatê-lo. Se existe essa indefinição, qual seria a interpretação predominante hoje no Brasil entre os apoiadores de Bolsonaro? Minha hipótese é que os atuais combatentes do “marxismo cultural” têm um alvo preferencial: querem desmobilizar e criminalizar as diferentes formas de militâncias juvenis das quais falamos no decorrer dessa entrevista.

Tais militâncias relacionam “naturalmente” demandas voltadas para a igualdade (que remeteria ao marxismo do qual a grande maioria dos ativistas pouco ouviu falar) com a diversidade ( que evoca o “cultural” isto é abertura em relação às mudanças de valores e de comportamento). Tais militâncias atingem hoje um circuito bem mais amplo do que aquele que caracterizava as vanguardas artísticas da Semana de Arte Moderna de 1922, e mesmo de outras vanguardas artísticas e políticas que a sucederam. É isso que causa grande preocupação. E causa temor principalmente porque não se circunscreve a uma vanguarda circunscrita ao centro da sociedade, mas chega aos jovens das periferias. Pode estar no movimento estudantil, mas está também no movimento hip hop, nos slams onde mulheres poetas em versos misturam questões econômicas, violência doméstica, estupros e abusos sexuais; onde jovens poetas negros usam palavras certeiras para expressar opressões causadas pelo pertencimento de classe, pelo lugar de moradia, pelo racismo e homofobia.

Nada será como antes

Certamente, os combatentes do chamado “marxismo cultural” focalizam o crescimento potencial de uma parcela significativa dessa geração que aproxima sensibilidades, histórias de vida e ações políticas. Não por acaso são eles também os defensores da “Escola sem Partido” [12]. Eles bem sabem que não é Partido específico que está em jogo. O que querem é diminuir as chances de reflexão crítica nas escolas, silenciando os temas transversais que agora são chamados de “ideológicos”. Querem “cortar o mal pela raiz”.

No entanto, experiências recentes mostram que esse combate não será fácil. Nas fotos e nos relatos do processo das ocupações nas escolas jovens do ensino médio acoplaram às suas reivindicações educacionais específicas palavras de ordem contra preconceitos raciais, machistas e homofóbicos.

Esses e outros segmentos juvenis também lograram convocar e se agregar por meio da consigna “ele não” no processo eleitoral de 2018. Nada será como antes. Essas experimentações históricas não são apagadas por decreto. Se é verdade que os combatentes do “marxismo cultural” têm essa parcela juventude militante como alvo preferencial, creio que correm um risco: despertar curiosidade e provocar um aumento de leitores deste autor hoje bastante distante dos jovens militantes do século XXI.

Notas:

[1] ProJovem: programa unificado de juventude que visa ampliar o atendimento aos jovens excluídos da escola e da formação profissional e foi criado a partir da integração de seis programas já existentes – Agente Jovem, Saberes da Terra, ProJovem, Consórcio Social da Juventude, Juventude Cidadã e Escola de Fábrica. Hoje, esses programas atendem a 467 mil jovens. O público algo se centrava em jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social (fora da escola e dos cursos de formação e qualificação profissional). O objetivo foi reintegrar esses jovens ao processo educacional, promover sua qualificação profissional e assegurar o acesso a ações de cidadania, esporte, cultura e lazer. (Nota da IHU On-Line)

[2] Programa Universidade para Todos – Prouni: é um programa do Governo Federal do Brasil criado com o objetivo conceder bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior. Ele foi instituído pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Foi criado em 2004, a partir do PL 3.582/2004 encaminhado ao Congresso Nacional. Até 2013, o Prouni permitiu o acesso ao ensino superior a 1,2 milhão de jovens, sendo que 1.116 IES particulares participam atualmente do programa, com uma média equivalente a uma bolsa para cada 10,7 alunos pagantes o que é significativo pois 74% das matrículas do ensino superior brasileiro estão nas faculdades particulares, correspondendo a 5,2 milhões de alunos. (Nota da IHU On-Line)

[3] Pontos de Cultura: são projetos financiados e apoiados institucionalmente pelo Ministério da Cultura do Brasil (MinC) e implementados por entidades governamentais ou não governamentais. Visam à realização de ações de impacto sociocultural nas comunidades. O Ponto de Cultura é a ação prioritária e o elemento de articulação entre as demais atividades do Programa Cultura Viva do MinC. Em abril de 2010, havia 2,5 mil Pontos de Cultura instalados em 1 122 cidades brasileiras, atuando em redes sociais, estéticas e políticas. Um aspecto comum a todos é a diversidade cultural e a gestão compartilhada entre poder público e comunidade. (Nota da IHU On-Line)

[4] Tecnologias da informação e comunicação – TICs: é uma expressão que se refere ao papel da comunicação (seja por fios, cabos, ou sem fio) na moderna tecnologia da informação. Entende-se que TIC consistem de todos os meios técnicos usados para tratar a informação e auxiliar na comunicação, o que inclui o hardware de computadores, rede, telemóveis, bem como todo software necessário. Em outras palavras, TIC consistem em TI bem como quaisquer formas de transmissão de informações e correspondem a todas as tecnologias que interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos dos seres. Ainda, podem ser entendidas como um conjunto de recursos tecnológicos integrados entre si, que proporcionam, por meio das funções de hardware, software e telecomunicações, a automação e comunicação dos processos de negócios, da pesquisa científica, de ensino e aprendizagem entre outras. (Nota da IHU On-Line)

[5] Levante Popular da Juventude: organização de jovens militantes voltada para a luta de massas em busca da transformação da sociedade. (Nota da IHU On-Line)

[6] Greta Ernman Thunberg (2003): ativista do clima sueca. Ela é conhecida por protestar fora do prédio do parlamento sueco para divulgar as alterações climáticas (Fridays For Future). O IHU publicou inúmeros textos sobre as ações de Greta. Entre eles “Com Greta Thunberg para o futuro do planeta”; ”Vocês não agiram a tempo”: o discurso de Greta Thunberg ao Parlamento britânico”; e “O mundo pertence a Greta e às suas irmãs”. (Nota da IHU On-Line)

[7] Poetry slam (traduzido literalmente do inglês, “batida de poesia”): é uma competição em que poetas leem ou recitam um trabalho original (ou, mais raramente, de outros). Estas performances são, em seguida, julgadas por membros selecionados da plateia ou então por uma comissão de jurados. Geralmente, as notas vão de zero (a pior) a dez (a melhor). Retiram-se, então, as melhores e as piores notas, mantendo-se apenas as três notas do meio. Dessa forma, a maior nota que uma pessoa pode tirar é trinta, e a menor é zero. (Nota da IHU On-Line)

[8] Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. Como diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Recife, obteve sucesso em programas de alfabetização, depois adotados pelo governo federal (1963). Esteve exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi também professor da Unicamp (1979) e secretário de Educação da prefeitura de São Paulo (1989-1993). É autor de A Pedagogia do Oprimido, entre outras obras. A edição 223 da revista IHU On-Line, de 11-06-2007, teve como título Paulo Freire: pedagogo da esperança. (Nota da IHU On-Line)

[9] Olavo de Carvalho (1947): não tem nenhum título acadêmico formal. Costuma ser apresentado como escritor, conferencista, ensaísta, jornalista, filósofo e ex-astrólogo nascido em Campinas (SP). É um dos principais nomes no discurso do conservadorismo brasileiro. Militou no PCB de 1966 a 1968, mas posteriormente decepcionou-se com a ideologia e tornou-se anticomunista convicto. Trabalhou em revistas e periódicos, passando por veículos como Folha de S.Paulo, Planeta, Bravo!, Primeira Leitura, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Globo, Época e Zero Hora. Atualmente escreve para o Diário do Comércio. Seu primeiro livro, A imagem do homem na astrologia, foi lançado em 1980. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota é de 2013 e vendeu algo próximo de 320 mil exemplares. Também escreveu O Jardim das Aflições (1995) e O Imbecil Coletivo (1996). Mora atualmente em Richmond, no estado norte-americano de Virgínia. Segundo ele, um dos motivos para sua mudança do Brasil para os Estados Unidos, em 2005, foi a chegada do PT ao poder. O cineasta pernambucano Josias Teófilo, dirigiu o documentário O Jardim das Aflições, que aborda a vida doméstica, biografia e filosofia de Olavo de Carvalho, rodado na residência dele nos EUA. O filme foi realizado com recursos captados através de financiamento coletivo e lançado em 2017. Ao todo foram quase 3 mil doadores e arrecadação de R$ 320 mil. No festival Cine PE, realizado de 27 de junho a 3 de julho de 2017, O Jardim das Aflições foi premiado em três categorias: melhor montagem, júri popular e melhor filme. (Nota da IHU On-Line)

[10] Lobão (1957): cantor, compositor, escritor, multi-instrumentista, editor de revista e apresentador de televisão brasileiro. Sua carreira musical é marcada por grandes parcerias; compôs sucessos como Me chama, muito famosa na voz de vários intérpretes, e Vida louca vida, conhecida na voz Cazuza. Apesar de ter surgido e conseguido sucesso no ambiente marginal e underground do rock brasileiro nos anos 1980, Lobão vem dialogando com diversos gêneros, como o samba, ao longo de sua carreira. Tem emitido opiniões conservadoras e polêmicas, ao mesmo tempo em que elogia Olavo de Carvalho e o Instituto Ludwig von Mises Brasil. Apresentou-se em palcos de manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff. (Nota da IHU On-Line)

[11] Semana de Arte Moderna: também chamada de Semana de 1922, ocorreu em São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele ano, no Teatro Municipal. Representou uma verdadeira renovação de linguagem, na busca de experimentação, na liberdade criadora da ruptura com o passado e até corporal, pois a arte passou então da vanguarda para o modernismo. Participaram da Semana nomes consagrados do modernismo brasileiro, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Tácito de Almeida, Di Cavalcanti entre outros. (Nota da IHU On-Line)

[12] Programa Escola sem Partido [ou apenas Escola sem Partido]: é um movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib. Ele e os defensores do movimento afirmam representar pais e estudantes contrários ao que chamam de “doutrinação ideológica” nas escolas. Ganhou notoriedade em 2015 desde que projetos de lei inspirados no movimento começaram a ser apresentados e debatidos em inúmeras câmaras municipais e assembleias legislativas pelo país, bem como no Congresso Nacional. (Nota da IHU On-Line).

Regina Novaes (Foto: fundacaotidesetubal)

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