Após a Segunda Grande Guerra, a crença de que as diferenças entre as chamadas “raças” são genéticas tornou-se um tabu. Agora, com o ressurgimento da extrema direita, está de volta.
Por José Carlos Ruy, traduzido e adaptado de Angela Saini, do The Guardian, no Tornado
O racismo cresce na Europa e nos EUA, no rastro do crescimento da extrema-direita – constata o historiador Barry Mehler, que há décadas estuda o renascimento acadêmico desta distorção científica.
Mehler estudou o que ocorreu depois da Segunda Grande Guerra com os cientistas que haviam colaborado com os nazistas, eram eugenistas ou compartilhavam sua visão de mundo racista. “Eu estava focado na continuidade ideológica entre o velho e o novo”, disse ele à repórter Angela Saini, autora do artigo “Why race science is on the rise again” (“Por que a ciência racial está em ascensão novamente”), publicado em “The Guardian” neste sábado (18).
Mehler vê um paralelo entre a rede de intelectuais de extrema-direita e a forma rápida e devastadora com que a pesquisa eugênica foi aplicada na Alemanha nazista, e teme que aquelas brutais atrocidades possam acontecer novamente.
O crescimento da extrema direita é visível. Na Polônia, nacionalistas marcham sob o slogan “Polônia pura, Polônia branca”. Na Itália, um líder de direita ganhou popularidade com a promessa de deportar imigrantes ilegais e virar as costas aos refugiados. Os nacionalistas brancos olham para a Rússia sob o comando de Vladimir Putin como defensor dos valores “tradicionais”. Nas eleições alemãs em 2017 a Alternative für Deutschland (AfD) obteve mais de 12% dos votos. Em 2018 foi denunciado que o Cambridge Analytica, ligado ao ex-estrategista chefe de Donald Trump, Steve Bannon, usou ideias racistas para ganhar apoio dos conservadores brancos. Desde que deixou a Casa Branca em 2017, Bannon tornou-se uma figura chave para os movimentos de extrema-direita e agora espera abrir uma academia de “alt-right” em um mosteiro italiano. Isso lembra os “racistas científicos” depois da Segunda Grande Guerra que, isolados no meio acadêmico, criaram seus próprios espaços e publicações. A diferença agora é que, em parte por causa da internet, é muito mais fácil atrair financiamento e apoio. Na França, em 2018, Bannon disse aos partidários da extrema direita: “Deixe-os chamá-los de racistas, deixe-os chamá-los de xenófobos, deixe-os chamá-los de nativistas. Use isso como um distintivo de honra”.
Nos últimos anos investiguei o crescimento desenfreado dessa espécie de racismo intelectual. Encontrei redes que incluem acadêmicos nas principais universidades do mundo, que procuraram moldar debates públicos sobre raça e imigração, e tornar aceitável a visão de que “estrangeiros” são por sua própria natureza uma ameaça porque são fundamentalmente diferentes.
Dentro dessa cabala estão aqueles que buscam na ciência apoio para suas visões políticas. Alguns se descrevem como “realistas da raça” – porque chamar a si mesmos de racistas ainda é intragável. Eles pensam que há diferenças biológicas inatas entre grupos humanos, tornando nações inteiras “naturalmente” mais inteligentes do que outras. Esses “fatos biológicos” explicariam o curso da história e a desigualdade moderna.
Esses chamados estudiosos são escorregadios – usam eufemismos, gráficos de aparência científica e argumentos enigmáticos. Aproveitando a onda de direita no mundo e usando a internet para se comunicar e publicar, tornaram-se mais ousados. Mas, como Mehler lembra, não há novidade aqui. Esta é uma história que remonta ao nascimento da ciência moderna. A classificação racial sempre foi arbitrária. No século XVIII, cientistas europeus classificaram os povos em tipos humanos, inventando categorias, como caucasianos. Nos séculos seguintes, ninguém pode definir o que agora chamamos de “raça”. Alguns disseram que havia três tipos, outros quatro, cinco ou mais, até centenas.
Foi somente no final do século XX que os dados genéticos revelaram que a variação humana é uma questão de gradações pequenas e sutis, cada comunidade local se misturando à seguinte. Até 95% da diferença genética em nossa espécie está dentro dos principais grupos populacionais, não entre eles.
Não se pode definir a raça biologicamente. Quando nos definimos por cor, deixamos de considerar que as variantes genéticas da pele clara sejam encontradas não apenas na Europa e no leste da Ásia, mas também em algumas das sociedades humanas mais antigas da África. Os primeiros caçadores-coletores da Europa tinham pele escura e olhos azuis. Somos todos produto de migrações antigas e recentes. Sempre estivemos juntos no caldeirão.
A ciência racial traçou linhas dividindo o mundo de muitas maneiras diferentes. E o que as linhas significavam mudou em diferentes épocas. No século XIX, um cientista europeu não era exceção ao pensar que os brancos eram biologicamente superiores, assim como poderia presumir que as mulheres eram intelectualmente inferiores. A hierarquia de poder tinha homens brancos de descendência europeia no topo, e eles convenientemente escreveram a história científica da espécie humana em torno dessa suposição.
Como a ciência racial sempre foi intrinsecamente política, não deveria ser surpresa que pensadores proeminentes a usassem para defender a escravidão, o colonialismo, a segregação e o genocídio. Imaginavam que apenas a Europa poderia ter sido o berço da ciência moderna, que apenas os britânicos poderiam construir ferrovias na Índia. Alguns ainda imaginam que os europeus brancos têm um conjunto único de qualidades genéticas que os impulsionam à dominação econômica.
Esse passado não foi deixado para trás. Há uma linha direta entre as antigas ideologias e a nova retórica.
Após a Segunda Grande Guerra, o racismo científico gradualmente se desmoralizou. Mas uma pessoa-chave para mantê-lo foi uma figura sombria chamada Roger Pearson, que hoje tem 91 anos de idade; ele foi oficial no exército britânico na Índia e na década de 1950 começou a publicar boletins informativos, impressos na Índia, explorando questões de raça, ciência e imigração.
Rapidamente, diz Mehler, Pearson ligou-se a pensadores afins em todo o mundo. Ele estava começando a organizar institucionalmente os remanescentes dos acadêmicos pré-guerra que faziam trabalhos sobre eugenia e raça. Incluindo o cientista racial nazista Otmar Freiherr von Verschuer, que durante a guerra fez experiências com partes dos corpos de crianças assassinadas enviadas a ele de Auschwitz.
Uma das publicações de Pearson, a Northlander, foi descrita como uma revista de “Assuntos Pan-nórdicos”, por tratar de temas supostamente de interesse de europeus brancos. Sua primeira edição em 1958 trazia textos sobre os filhos ilegítimos de soldados “negros” que ocupavam a Alemanha, e sobre os imigrantes das Índias Ocidentais na Grã Bretanha. “A Grã-Bretanha ressoa ao som e à visão de povos primitivos e de ritmos da selva”, escreveu Pearson. “Por que não podemos ver a podridão que está ocorrendo na própria Grã-Bretanha?”
Seus textos alcançaram figuras marginais de todo o mundo, pessoas cujas visões eram geralmente inaceitáveis nas sociedades em que viviam. Em algumas décadas, Pearson acabou em Washington DC, e criou publicações como o “Journal of Indo-European Studies” (1973) e o “Journal of Social, Political and Economic Studies” (1975). Em abril de 1982 ele recebeu uma carta do presidente dos EUA, Ronald Reagan, que o elogiava por promover estudiosos que apoiam “uma economia empresarial livre, uma política externa firme e consistente e uma forte defesa nacional”. Pearson usou esse endosso para angariar fundos e mais apoio.
Keith Hurt, um funcionário em Washington, ficou surpreso ao encontrar redes e associações de pessoas que tentavam manter vivo um corpo de idéias associadas ao passado nos EUA, à situação anterior ao movimento pelos direitos civis, de volta à eugenia no início do século 20. Essas ideias eram desenvolvidas e promovidas, mas de maneira discreta. “Eles tinham seus próprios jornais, suas próprias editoras e podiam publicar e comentar o trabalho uns dos outros”, diz Mehler. “Foi quase como descobrir todo este pequeno mundo dentro da Academia.”
Em maio de 1988, Mehler e Hurt publicaram em “The Nation”, um periódico progressista nos EUA, um artigo sobre o professor de psicologia educacional na Universidade do Norte de Iowa chamado Ralph Scott. Disseram que Scott tinha usado, em 1976 e 1977, sob pseudônimo, fundos de um rico segregacionista para organizar uma campanha nacional antibusing (busing era um meio de resistir contra a segregação nas escolas). Em 1985, a administração Reagan tornou Scott presidente do Comitê Consultivo de Iowa da Comissão dos Direitos Civis dos EUA, um órgão encarregado de impor legislação antidiscriminação. Mesmo depois de assumir seu cargo influente, Scott continuou escrevendo para a publicação de Pearson.
Para os extremistas políticos, este é um jogo de espera. Se conseguirem sobreviver e manter suas redes, é só uma questão de tempo até seu retorno. No livro “The Bell Curve” (“A Curva do Sino” – 1994), o cientista político estadunidense Charles Murray e o psicólogo Richard Herrnstein sugeriram que os americanos negros eram menos inteligentes que os brancos e os americanos asiáticos. Uma resenha na “New York Review of Books” observou que eles fizeram referência a cinco artigos da “Mankind Quarterly”, uma revista fundada por Pearson e Von Verschuer; citaram nada menos que 17 colaboradores daquele periódico. “The Bell Curve” foi amplamente criticado. Um artigo em “American Behavioral Scientist” descreveu-o como “ideologia fascista”.
A “Mankind Quarterly” de Pearson continua sendo impressa, publicada por uma entidade chamada Ulster Institute for Social Research (Instituto Ulster de Pesquisa Social), e juntou-se a uma série de publicações mais recentes – algumas on-line – com pautas semelhantes. Seu editor, o bioquímico Gerhard Meisenberg, disse com naturalidade que existem diferenças raciais na inteligência. “Os judeus tendem a fazer muito bem, chinês e japonês muito bem, e negros e hispânicos não tão bem. As diferenças são pequenas, mas a explicação é que muito e talvez a maior parte disso seja causada pelos genes “, disse. Meisenberg, como outros que pensam como ele, condena os que discordam – em essência, os cientistas sérios – como negadores irracionais da ciência, cegos pela política.
“Acho que experimentamos agora um ambiente muito mais ameaçador,” diz Hurt. “Estamos em uma situação muito pior do que há um par de décadas atrás”. Online, estes “realistas da raça” têm uma feroz obstinação. O autodenominado filósofo canadense Stefan Molyneux, cujo canal no YouTube tem quase um milhão de assinantes, oferece monólogos retóricos há muito tempo. “A mãe natureza é racista”, diz. “Eu estou apenas acendendo a luz.”
O que é preocupante é que os pensadores que fornecem o material brandido on-line tem também presença em espaços de maior credibilidade. No início de maio a bolsa do cientista social Noah Carl no St Edmund ‘ s College em Cambridge, foi cancelada depois que uma investigação confirmou sua colaboração “com indivíduos que eram conhecidos por manter visões extremistas”. Colaborador da “Mankind Quarterly”, Carl tentou se defender dizendo que, no interesse da liberdade de expressão, ele deve poder dizer que os genes “contribuem para as diferenças psicológicas entre as populações humanas”.
Mas uma declaração divulgada pelo St Edmund ‘ s College afirmou que suas atividades e conexões “demonstram pouca erudição, promovem visões de extrema direita e incitam o ódio racial e religioso”.
Os editores da “Mankind Quarterly”, que tem sido chamado de “jornal supremacista branco”, começaram a afirmar sua presença em outras publicações científicas mais amplamente confiáveis. O editor assistente Richard Lynn fez parte do Conselho editorial da revista “Personality and Individual Differences”, produzida pela Elsevier, uma das maiores editoras científicas do mundo. Em 2017, Lynn e Meisenberg apareciam no Conselho editorial da “Intelligence”, uma revista de psicologia também publicada pela Elsevier.
No final de 2017, o editor-chefe da “Intelligence” disse que aquela presença em sua revista refletia o “compromisso com a liberdade acadêmica”. No entanto, depois de minha investigação descobri que Lynn e Meisenberg haviam sido discretamente removidos do Conselho Editorial no final de 2018.
Um colaborador da “Mankind Quarterly”, que se tornou uma figura importante no movimento de supremacia branca, é Jared Taylor que, em 1990, fundou a revista “American Renaissance”. Uma frase usada por ele para defender a segregação racial, tomada de empréstimo ao zoólogo Raymond Hall, diz que “duas subespécies da mesma espécie não ocorrem na mesma área geográfica”.
Suas conferências na “American Renaissance Foundation” foram descritas pelo falecido antropólogo americano Robert Wald Sussman como “encontros de supremacistas brancos, nacionalistas brancos, separatistas brancos, neo-nazistas, membros Ku Klux Klan, saudosistas do holocausto, e eugenistas”.
Para Hurt, é claro que o racismo científico que prosperou na Europa e nos EUA no início do século 20 e se manifestou mais devastadoramente na “higiene racial” nazista, sobreviveu até o final do século 20 e mesmo além. “A eleição de Trump tornou impossível para muitas pessoas negligenciar isso”, diz.
No passado o pano de fundo havia sido a escravidão e o colonialismo, levando à segregação; agora é a agenda da direita. O nativismo continua a ser um problema, ao lado da reação contra os esforços para promover a igualdade racial.
“Por que ainda existe o racismo científico, depois de tudo o que aconteceu no século 20?”, pergunta o antropólogo estadunidense Jonathan Marks, um lutador anti-racista na Academia. Ele responde à sua própria pergunta: “porque é uma questão política importante. E há forças poderosas à direita que financiam pesquisas para estudar as diferenças humanas com o objetivo de estabelecê-las como base para a desigualdade.”
Há duas falácias aninhadas aqui, diz Marks. A primeira é que a espécie humana vem empacotada em um pequeno número de raças discretas, cada uma com seus próprios traços diferentes. A segunda é a idéia de que há explicações inatas para a desigualdade política e econômica. “Esses caras tentam manipular a ciência para construir limites imaginários ao progresso social.”
Até sua morte em 2012, uma das figuras as mais proeminentes nesta rede do “realismo da raça” foi o psicólogo canadense John Philippe Rushton, cujo o nome é citado regularmente em publicações como “Mankind Quarterly”. Ele teve um obituário bajulador no Globe and Mail, uma importante publicação canadense, apesar de ser notório por sua afirmação de que os tamanhos do cérebro e da genitália são inversamente proporcionais, e que os negros são melhor dotados mas menos inteligente do que os brancos.
Quando o livro de Rushton “Race, Evolution and Behaviour” (“Raça, Evolução e Comportamento”) foi publicado, em 1995, o psicólogo David Barash fez uma resenha arrazadora e o qualificou como “má ciência e preconceito racial virulento gotejando como pus de quase todas as páginas deste livro desprezível.” Em 2019, Rushton continua um ícone intelectual para “realistas da raça” e para a direita.
Centenas de racistas brancos e neonazistas marcham em Charlottesville. Foto: Alejandro Alvarez /Reuters