Eles também são vítimas do Exército

Assim como nos casos de Evaldo Rosa e Luciano Macedo, familiares de outros jovens fuzilados por soldados no Rio relatam à Pública tentativa de criminalização das vítimas, ausência de socorro e impunidade

Por Natalia Viana, Agência Pública

“De repente chegou o Exército atirando, eu só ouvi quando meu marido gritou e falou: Daiana, corre, se esconde. Eu fui pra trás dos carros que tavam na oficina, e ouvi muito tiro, muito mesmo, aí eu pensei na hora, eu falei, eles mataram meu marido”, descreve Daiana Horrara, esposa do catador Luciano Macedo, morto por fuzilamento no dia 7 de abril, quando tentava resgatar o músico Evaldo Rosa, cujo carro recebeu 62 tiros. Os soldados atiraram 257 tiros de fuzil. “Veio um homem do Exército, um soldado, veio apontando a arma, falou assim: sai daí, sai daí. E eu falei: pelo amor de Deus, meu marido não é bandido. Ele só foi ajudar. Ele olhou pra minha cara e riu, falou assim: ele é bandido sim, que eu vi ele sair de dentro do carro. Eu fiquei sem saber o que fazer”.

Mais de um mês depois da cena, Daiana ainda está em choque; ao descrever a morte do esposo, chora sem parar. Grávida de sete meses, ela lembra que este seria o primeiro filho do casal: “Ele queria muito uma menina. Deus levou ele sem ele saber que era uma menina. Eles tiraram isso de mim, tiraram isso dele. Destruíram a minha vida”.

Daiana é uma das testemunhas oculares do crime pelo qual doze soldados do Exército estão sendo julgados no Tribunal Militar. São acusados de duplo homicídio qualificado, tentativa de homicídio e omissão de socorro. A primeira audiência ocorreu nesta terça-feira, no Rio. Na sessão, Luciana dos Santos Nogueira, esposa do músico Evaldo Rosa dos Santos, também contou que os soldados debocharam dela quando ela afirmou que o marido não era bandido.

Não se trata de um fato isolado. No dia 9 de Maio, familiares de outras vítimas do Exército, fuzilados durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Rio de Janeiro, se reuniram na Casa Pública, em Botafogo, para contar suas histórias de busca por esclarecimentos e Justiça.

Desde 2010, membros do Exército e da Marinha são acusados pela morte de ao menos 34 civis em operações de policiamento, a grande maioria no Rio de Janeiro. Ao longo de oito meses, a Agência Pública levantou e acompanhou a tramitação de diversos casos na Justiça Militar e constatou que nenhum militar foi punido.

Diego Augusto Roger Ferreira tinha 25 anos quando foi alvejado pelas costas também próximo à Vila Militar, em maio de 2018, um ano antes do carro de Evaldo ser fuzilado. Morreu na hora. “Quando aconteceu com o Diego, eles falaram que o Diego já tinha duas passagens”, conta a sua mãe, Ana Cláudia Roger Marcelino, lembrando que o filho teve que prestar trabalhos comunitários quando era menor. “Mas eu quero saber se quando mataram ele, ele estava em ato que provava alguma coisa contrária à conduta dele. Ele não devia nada à Justiça. Aí vai trazer lá o passado dele pra quê? Aí pode matar?”, questiona.

Diego vivia com a avó, Vera Roger Marcelino no bairro de Magalhães Bastos, ao lado da Vila Militar. Naquela noite estava de moto, a um quarteirão da sua casa, quando foi alvejado. Segundo a família, tinha ido buscar gasolina para um primo. Os soldados que o mataram alegaram que ele tentou atropelá-los, e o caso foi arquivado na Justiça Militar por legítima defesa. Agora a família está processando a União e busca reparação na Justiça Civil.

“Meu filho entrou no hospital como bandido, como se tivesse trocado tiro”, revolta-se Irone Santiago, mãe de Vitor Santiago Borges, atingido por dois tiros de fuzil no Complexo da Maré em 12 de fevereiro de 2015. Vitor tinha 27 anos e ficou paraplégico na hora. No entanto, a mãe descobriu que, para a Justiça Militar, Vitor não era tido como vítima, mas como testemunha.

Em vez de investigar os soldados que atiraram contra o carro onde estava Vítor e mais quatro pessoas, o Ministério Público Militar estava investigando o motorista por tentativa de atropelar os soldados. “Então eles alegaram que o meu filho havia furado a blitz. Meu filho não estava dirigindo o carro”, diz Irone. “Aí eu falei não, peraí, e comecei eu mesma a fazer as minhas investigações. Então eles começaram a mudar as versões. Que eles [Vitor e os amigos] estavam bêbados”. Depois de cinco anos lutando por justiça, em 2018 Vitor venceu em primeira instância um processo que condena a União a uma indenização de R$ 950 mil.

Além da tentativa de criminalizar as vítimas, os relatos apontam que os soldados não prestaram socorro e nem auxílio às famílias. Nenhum soldado foi punido por esses crimes e os familiares seguem buscando respostas.

“Você não acredita né? Porque são pessoas que têm que estar ali pra defender a gente, cuidar da gente, e nem um socorro pra minha mãe deram”, resume Fabíola Rocha Reis, cuja mãe, Raimunda Cláudia, foi alvejada por um tiro que provavelmente partiu do Exército durante a ocupação da Maré. No caso dela, nem houve investigação na Justiça Militar. “É uma dor que é inevitável. Amanhã é o dia das mães, não vou ter minha mãe do meu lado por conta de um erro do Estado. E o ruim é que eles não prestam auxílio pra gente em nada”.

Leia os relatos:

Daiana Horrara, esposa de Luciano Macedo, fuzilado quando tentava resgatar o músico Evaldo Rosa, cujo carro recebeu 62 tiros – AF Rodrigues/Agência Pública

Daiana Horrara, esposa de Luciano Macedo, morto no dia 7 de abril de 2019 em Guadalupe

“Naquele dia, eu e meu marido estávamos indo com o carrinho buscar madeira pra construir o nosso barraco, e a gente sempre cortou caminho ali por dentro da favela. Aí paramos numa lanchonete antes de chegar na saída da favela. Comemos um lanche ali, e levantamos. Aí ouvimos uns tiros. Ele me puxou pra trás do carro e falou ‘te esconde, abaixa aqui’.

Quando parou os tiros ele falou ‘vamos sair daqui’. E a gente ia atravessar a rua. Aí parou o carro dessa viúva [de Evaldo Rosa], da Luciana. Ela desceu do carro gritando: ‘me ajuda, alguém me ajuda!’. E o garotinho chorando, gritando muito. Aí meu marido, que gosta muito de criança, ele pegou e falou assim… Pegou e foi falar pra ela, ‘sai daqui’. Puxou o garoto. Ele foi pro lado do carona do carro, pro lado do músico. O músico ainda olhou pro meu marido e tentou falar e abaixou a cabeça de repente. Aí eu falei assim: ‘Luciano, ele já morreu, sai daí’. Ele: ‘não, eu vou tirar ele daqui’.

De repente chegou o Exército atirando, eu só ouvi quando meu marido gritou e falou: ‘Daiana, corre, se esconde’. Eu fui pra trás dos carros que tavam na oficina, e ouvi muito tiro, muito mesmo, aí eu pensei na hora, eu falei: eles mataram meu marido. Eu gritei: ‘Luciano, vem!’. Quando eu olhei pro lado, ele já tava do meu lado e olhou pra mim com a blusa na mão e falou assim: ‘Daiana, me ajuda, me tira do sol’. E eu peguei, arrastei ele, botei ele no pneu do carro onde eu tava escondida e falei: ‘Luciano, não dorme. Não dorme, não’. Ele falou assim pra mim: ‘me tira do sol’.

Nisso veio um homem do Exército, um soldado, veio apontando a arma, falou assim: ‘sai daí, sai daí!’. E eu falei ‘Pelo amor de Deus, meu marido não é bandido. Ele só foi ajudar’. Ele olhou pra minha cara e riu, falou assim: ele é bandido sim, que eu vi ele sair de dentro do carro. E eu fiquei sem saber o que fazer.

Aí os morador começou a gritar: ‘ele é trabalhador, é trabalhador, é morador’

Saía muito sangue, espirrava muito sangue. Eu arrastei ele pro canto do prédio, ele apertou minha mão e falou assim pra mim: fica calma.

Quando eu ouvi a primeira vez [O Exército] falando isso, que foi um acidente, eu senti uma revolta. Eu vou ser sincera: eles botaram a arma na mão de um bandido pra tirar a vida do meu marido. Eles destruíram a minha vida”.

Vera Lúcia Roger Marcelino, avó de Diego Augusto Roger Ferreira, morto em 12 de maio de 2018 próximo à Vila Militar

“O acontecimento foi na véspera do dia das mães do ano passado. Faz um não. Meu neto veio do trabalho. Ele trabalhava na Uruguaiana [centro do Rio de Janeiro] de camelô. Ele chegou em casa do trabalho, aí eu estava saindo pra ir no mercado. Aí ele trouxe aquele presentinho de dia das mães. Aí depois que ele foi cortar o cabelo, eu fui no mercado. Quando eu voltei, ele tava conversando com as meninas, já tinha cortado o cabelo. E eu falei: ‘Diego, vai pra dentro agora e vai tomar um banho, né, cê cortou o cabelo’.

Mas aí daqui a pouco perguntei por ele, o meu outro filho mandou ele comprar um óleo pra botar no carro, porque as meninas pediram o carro dele emprestado pra levar aquelas cestas que elas fazem no dia das mães pra vender. Porque ia ser domingo de manhã pra poder levar as cestas.

Aí Diego só foi comprar o óleo, aí quando eles vêem que ele tava de moto, minha filha… Aí eu peguei e falei assim ‘meu Deus, Diego tá demorando muito com esse óleo’.

Aí chegou uma pessoa, uma vizinha, e falou assim: ‘ô Vera, o Diego foi acidentado’. E eu: ‘mas acidentado? Onde foi?’

Em direção da nossa casa né, ele tava vindo já do posto. Aí os soldados que ficam ali, parece que pediu pra ele parar e de repente ele não escutou, porque ele também tinha um problema de audição. Aí eles atiraram.

Aí quando eu chego, não cheguei nem na metade do caminho porque eu passei mal. Aí eu só escutava: ‘não precisa nem ir que já tá morto. Foi só um tiro, só. Um só, um tiro só’.

Não cheguei a ver. Cheguei, já tinha morrido, aí eu tive que voltar porque eu não ia aguentar também ver ele morto ali.

Eles [os militares] não nos procuraram. Até hoje, nada. Foi muito triste, muito triste”.

Irone Santiago, mãe de Vitor Santiago Borges, alvejado em 12 de fevereiro de 2015 no Complexo da Maré

“No dia doze de fevereiro de 2015, o meu filho saiu de casa pra assistir jogo do Flamengo. E ele tinha combinado com um amigo dele que é sargento da aeronáutica e era a primeira férias dele no Rio. E eles saíram. Então, na volta, pra dentro da favela, que eu moro no complexo de favelas da Maré e o Exército estava ocupando a Maré… Na volta eles foram parados, revistados e prosseguiram. De doze a quinze minutos, eles foram alvejados. Estavam cinco pessoas dentro de um carro branco.

Então, eles alegaram que o meu filho havia furado a blitz. Meu filho não tava dirigindo o carro. Meu filho entrou no hospital como bandido, como se tivesse trocado tiro. Como que ele trocou tiro se uma vez ele foi parado, é revistado e depois diz que trocou tiro?

Eu comecei a fazer as minhas investigações e, assim, claro que morador não quer testemunhar porque eles têm medo, é um medo terrível.

No caso do meu filho, eu fiz todos os papéis. Eu sou mãe, claro, eu fiz papel de detetive, de enfermeira, de médica, advogada… Eu fiz o papel de tudo e fui reunindo todas as provas. Até então, quando eu conheci o doutor João Tancredo, advogado. E foi que o caso do meu filho começou a andar.

Chegaram até a arquivar o caso do meu filho, entendeu? Só que eles tiveram que desarquivar.

Um ano [depois] eu descobri que meu filho só constava [na investigação da Justiça Militar] como testemunha. Nossa, a gente chorou muito…. Poxa, você saber que seu filho levou dois tiros de fuzil 7.62, e eles dizerem, ainda dizer que meu filho era bandido…

E eu consegui provar, sabe, a gente conseguiu botar isso abaixo, porque assim, uma coisa é você dizer que eu sou uma bandida, mas você também precisa provar. Eu não posso falar de você, eu não posso falar de ninguém aqui só porque é morador de favela, e não provar. Porque tudo tem que ser provado. É isso.

A gente nem responsabiliza tanto, esses rapazes [os soldados]. Sabe por quê? Porque eles obedecem uma hierarquia. Quem tinha que estar lá preso é quem deu a ordem pra eles atirarem. Porque eles receberam ordem. Eles não atiraram simplesmente, não. E porque a maioria, também, desses jovens são moradores, são oriundos de favela.

Então, assim, hoje, se eu estou na luta, hoje, se eu estou na militância, é porque eu quero que outras mães sigam o meu exemplo. Não se abaixem, não se curvem”.

Fabíola Rocha Reis, filha de Raimunda Cláudia, morta no dia 14 de abril de 2015 no Complexo da Maré

“O Exército tava fazendo a Pacificação lá na Maré. Eu tava no trabalho, e aí eu recebi uma ligação de que minha mãe tinha sofrido um acidente. Fiquei bem nervosa, pedi pra socorrerem ela, mas não tinha jeito. Minha mãe tava em casa e, no confronto que teve, tinha um comércio de frente à residência. E aí, quando minha mãe foi na janela pra falar com a menina pra fechar a loja, por conta do tiroteio, ela acabou sendo atingida com uma bala na cabeça, ou seja, não teve como socorrer. Foi tudo muito rápido, eu tava no trabalho tive que sair correndo.

O Exército viu o que aconteceu, não prestaram socorro pra minha mãe, não foram perguntar se ela era do tráfico ou não. Porque é indiferente se é cidadão, trabalhador ou alguém que tenha envolvimento… Não deveria ser assim. Eu acho que vida é vida, independente do que cada um faz.

E, assim, você não acredita né? Porque são pessoas que têm que estar ali pra defender a gente, cuidar da gente, e nem um socorro pra minha mãe deram.

Minha irmã na época tinha onze anos, foi quem desceu pra pedir socorro pra minha mãe. Eu cheguei e não tive mais o que fazer. É bem complicado. Essa história já tem quatro anos. E é uma dor que é inevitável. Amanhã é o dia das mães, não vou ter minha mãe do meu lado por conta de um erro do Estado né e, assim, o ruim é que eles não prestam auxílio pra gente em nada. Não querem saber se tem um filho menor, se tem alguém pra cuidar.

Porque hoje eu virei mãe. Tenho 28 anos, tenho uma filha de 14, porque eu não ia largar minha irmã, falar ‘se vira, vai pedir pro Estado te socorrer’, né?

Então eu tenho que me desdobrar em duas, tenho que trabalhar muito mais, tenho que correr muito mais atrás pra poder dar um apoio pra minha irmã, porque se não fosse eu, quem seria?

O Estado foi lá perguntar se ela tinha alguém pra dar comida pra ela, pra levar ela pro colégio? Pra saber se ela tá bem, se quer ir ao médico? Não tenho. Não tem.

São forças que eram pra ser pessoas mais treinadas, que deveriam saber o que fazer, mas é totalmente o contrário. Eles são muito perdidos. Não tem um meio termo de chegar e querer ajudar, de querer né, tá ali presente pra dar alguma força, não. Ou eles chegam lá atirando, realmente é assim, chegam do nada, uma muvucona, e sai da rua, sai da rua, e te empurram e te revistam. É muito triste, porque todo dia é uma coisa diferente, e a gente não vê a mudança para que isso não venha a acontecer novamente.

Teve a minha mãe, teve o filho da Irone, agora teve essa família dos 80 tiros, que, assim, a gente vem tendo dor atrás de dor e não tem mudança para não ter mais dores, evitar novas famílias a sentir essas dores.

É muito triste, é muito dolorido pra quem passa por isso”.

Imagem: Familiares de vítimas do Exército foram entrevistados por Natalia Viana, codiretora da Agência Pública , e Thales Treiger da Defensoria Pública da União – AF Rodrigues/Agência Pública

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